quinta-feira, julho 27, 2017

Série "América": é preciso pressa para ver o que está desaparecendo


Em novembro de 1989 ia ao ar pela extinta Rede Manchete a série brasileira “América”, dirigida por João Moreira Salles em parceria com o filósofo e roteirista Nelson Brissac Peixoto. Narrada pelo ator José Wilker, a série foi o resultado de uma viagem de quatro meses percorrendo 20 mil quilômetros através dos EUA – a primeira civilização na qual a História e a memória foram substituídos pelo movimento, velocidade e aceleração para o futuro que, paradoxalmente, virou um simulacro somente acessado através telas. Sem passado, Hollywood preencheu a ausência da memória da nação por uma sedutora mitologia que depois irradiou para o mundo. Composto por cinco episódios (“Movimento”, “Mitologia”, “Blues”, “Velocidade” e “Tela”), a série narra não só os impactos dessa cultura no cotidiano, na guerra, na política e na religião, mas também como criou o mal estar da alienação e estranhamento por meio do “olhar do exilado” dos três personagens principais da nossa época: o Viajante, o Detetive e o Estrangeiro.

“Seria incorreto afirmar que a América não possui uma história. Ela existe e é riquíssima. Mas é sempre uma história que privilegia o futuro em detrimento do seu passado. Para trás há sempre um vazio que precisa ser preenchido e por isso a América inventa”.

Esse é o tom da série América (1989), composta de cinco episódios e que foi ao ar pela extinta TV Manchete naquele mesmo ano. Inspirado no livro homônimo do filósofo francês Jean Baudrillard e baseado no livro Cenários em Ruínas do filósofo Nelson Brissac Peixoto (co-autor do roteiro da série), América era mais uma série de uma emissora cuja proposta inicial era fazer uma programação para a “classe alta” - para assistir à série clique aqui.

Por isso investiu pesado em séries de documentários como Xingu – a terra mágica dos índios e Kuarup (1985), ambos dirigidos por Washington Novaes, Japão, uma Viagem no Tempo (1985) de Walter Salles, China, o Império do Centro (1987) e América (1989) dirigidas por João Moreira Salles.

Durante quatro meses uma equipe de seis pessoas percorreu os Estados Unidos numa viagem de 20 mil quilômetros, registrando lugares onde o homem perde lugar para a imensidão de paisagens desoladas como desertos, highways, viadutos, postos de gasolina, lanchonetes e motéis.

Gravada em vídeo, resultando num total de 110 horas de material e mais de sessenta entrevistas, foi reduzido a pouco mais de quatro horas de programa explorando a mitologia norte-americana baseada no cinema hollywoodiano, na literatura policial e pela poesia de escritores que partilham um “olhar do exilado”, de estrangeiros no próprio país – um lugar cuja ausência de memória foi preenchida pela mitologia cinematográfica e pastiches de imagens de segunda mão: de referencias de outros lugares e História do planeta, porém estilizados pela indústria do entretenimento dos EUA.


A estrada e a viagem


América foi dividida em cinco episódios cujos títulos sintetizariam a essência de uma visão de mundo que foi irradiada para todo o planeta: Movimento, Mitologia, Blues, Velocidade e Telas.

O fio condutor dos cinco episódios é a estrada, as viagens, o próprio espaço em movimento, criando aquilo que se chamaria “uma arquitetura de beira de estrada”, diante da qual o homem, memória e permanência desaparecem para dar lugar à velocidade e aceleração informada pelas telas – do para-brisa dos automóveis às telas da TV e dos computadores.

E o nascimento dos três personagens que compõem os arquétipos modernos. Três modos de constituição da subjetividade na cultura contemporânea, a saber: o Viajante, o Detetive e o Estrangeiro.  A sociedade baseada no movimento em direção ao futuro deixando o passado para trás no retrovisor deu o Viajante; a mitologia literária e cinematográfica criou o Detetive; e a massificação da telas e a banalização das imagens e do real gerou o Estrangeiro – aquele que busca o sublime, o “olhar da primeira vez”, aquilo que permanece apesar da banalização e mesmice de simulacros que substituem o real.

Como vimos em postagens anteriores desse Cinegnose, esses três personagens seriam as três formas da condição humana gnóstica experimentar a alienação e estranhamento em relação ao mundo.


A Série


No primeiro episódio, “Movimento”, América faz uma interessante contraposição dos EUA com o seu vizinho México, em uma pequena vila na fronteira. México é a antítese estadunidense, pois lá há um respeito pelo tempo e para tudo que permanece – “sua história é tão sólida quanto a pedra”. Os monumentos e espaço dizem aos mexicanos quem eles são e sua referência no mundo.

Ao contrário, nos EUA “o que importa é o futuro”: a sua formação territorial e a arquitetura de estradas e das cidades é da estética do desaparecimento – paisagens em torno de freeways, avenidas, viadutos e o carro como o objeto-ícone.

Essa constante ressignificação da prática espacial do deslocamento vai marcar a cultura, a geopolítica e o cotidiano da sociedade. De início a criação de uma cultura da concorrência, meritocracia, corrida para a ascensão social e um profundo individualismo. E depois, a geopolítica imperialista de expansão da pax americana para todo o planeta.

A “marcha para o Oeste” e o encontro do “obstáculo natural”, os indígenas, acabou criando a primeira mitologia dos EUA imortalizada pelo cinema: o western, o cowboy, o mito da fronteira e dos foras da lei.

Sem um passado ou memória, Hollywood as preencheu com as imagens do cinema, a começar pelos filmes western. A série América mostra cidades com nomes de países (Brazil, Paris, Líbano etc.) nas quais muitas vezes encontramos simulacros de monumento desses países, como o Arco do triunfo, por exemplo. Las Vegas é o seu paradigma: reproduções hiperreais de pirâmides e esfinges egípcias, Torre Eiffel e castelos medievais de outras épocas e lugares.


A mitologia e o bluesman


“Mitologia” é o segundo episódio. Se ser americano é esquecer, o ver substitui a memória. Mas agora, uma memória de uma América mítica habitada pelo star system. Mas que também, por outro lado, ressignificou o mal estar do estranhamento de um país cujo sentido escapa: a figura do Detetive, imortalizado pelo ator Humphrey Bogart e o seu personagem, o detetive Sam Spade, a quintessência do filme noir – o homem comum e íntegro que luta para sobreviver em um mundo hostil, às voltas com enigmas cuja solução remete a algum passado esquecido.

Mas América vai em busca da primeira figura dissonante e rebelde da cultura norte-americana: o bluesman. No terceiro episódio, “Blues”, vemos como a batida melancólica do Blues criou um personagem destoante do american way of life americano: ele prefere a estrada e encruzilhadas ao invés do emprego e a família.

Da escravidão e racismo do Sul, o bluesman transforma-se num viajante que parte para o Norte, Chicago, a cidade do dinheiro, dos clubes de jazz e gravadoras. Por isso, a estrada é o seu lar. Um Viajante que, na mitologia da América, será ressignificado na cultura pop com a rebeldia de Elvis e James Dean, os ícones da motocicleta, a estrada e a contracultura como no filme Sem Destino (Easy Rider, 1969).


O real desaparece na velocidade


Porém, todo esse imaginário da estrada, viagem, movimento e busca do futuro se esgota nos cemitérios de automóveis, nas ruínas dos motéis, lanchonetes e drive-ins de beira de estrada, substituídos pelos bunkers dos shopping malls de subúrbios e supermercados.

No episódio “Velocidade” a série chega a um paradoxo: a aceleração do movimento chega a um estranho estado de inércia no qual o futuro, a própria paisagem e o real desaparecem. O Viajante, aquele personagem dissonante imortalizado pelo blues, transforma-se em passageiro – a viagem transformou-se em traslado: “Pega-se um trem que na cidade se transformará em metrô e chega-se ao escritório. No fim repete-se em sentido inverso. De um lado ou de outro não há mais nada para se ver. A viagem urbana se transformou num simples intervalo, sem nenhum valor intrínseco separando a chegada da partida. O passageiro vê um intervalo como um mal necessário, assim como o intervalo comercial na TV”.

No último episódio, “Tela”, é apresentada uma interessante história das janelas:  primeira de todas a porta separando  o que esta dentro do que está fora; depois a própria janela, uma abertura na fachada que permite ver o que esta ao lado; em seguida o para-brisa do carro uma janela móvel que a princípio busca o que estava longe; e finalmente a quarta e última janela: a televisão uma janela falsa que se abre para um dia sem nenhuma relação com a realidade.


A religião, a guerra e a política


O episódio analisa o impacto da tela na religião (os igrejas eletrônicas que rompem com a liturgia da presença), na guerra (a própria Guerra não passa de um recurso cênico; o aparato militar existe mais para ser visto do que para ser utilizado. Se não o fosse, a decisão não partiria de um presidente), na política (o conflito entre a necessidade de estabelecer estratégias sensatas e de longo prazo e a possibilidade de convertê-las em notícias para a TV, veículo que vive do efêmero) e o terrorismo (atentados programados para aparecerem na TV).

A série termina de forma otimista, vislumbrando na globalização e na conexão mundial através das telas e redes de comunicação que naquele momento iniciava (1989 era o ano da queda do Muro de Berlim e o fim do bloco comunista) uma saída para a banalização do real através do império das imagens: o olhar do Estrangeiro. Aquele olhar que ainda não foi anestesiado pelas imagens banalizadas e que tenha uma relação direta com pessoas e objetos.

Porém, o que as décadas posteriores demonstraram foi que a globalização não foi a do mundo, mas da mitologia norte-americana. A banalização do mundo através do simulacro das imagens tornou-se planetária migrando para outras plataformas: do velho monitor de TV das mídias de massas para as telas de computadores e dispositivos móveis, agora conectados globalmente em tempo real.

Assista à série no YouTube: clique aqui.

Ficha Técnica

Título: América (série)
Diretor: João Moreira Salles
Roteiro:  João Moreira Salles, Nelson Brissac Peixoto
Elenco:  entrevistas com David Byrne, Jean Baudrillard, Paul Virilio, Robert Frank, Joseph Brodsky, Deborah Bright entre outros
Produção: Videofilmes, Rede Manchete
Distribuição: Rede Manchete, YouTube
Ano: 1989
País: Brasil

Postagens Relacionadas












Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review