O mundo das
altas finanças está de olho no ensino superior brasileiro: empresas de private
equity, banco de investimentos e fundos de investimentos nacionais e
estrangeiros estão por trás dos grandes grupos da oligopolização do setor. Para
justificar a tendência consultores, analistas, conselheiros e gestores falam em
“inserção do ensino superior no mundo global”, “internacionalização do ensino
superior”, “cooperações vencer-vencer” etc. Como sempre, a verdade está em
outra cena: descobriram que a educação é o melhor negócio (legal) de todos os
tempos. Diferente de muitos outros negócios, a sua mão de obra (a resiliência
dos professores), sua “clientela” (alunos que tendem a esquecer) e o seu insumo
(a liquefação do conhecimento em informação) são bem peculiares. O que tornam
as possíveis resistências, críticas ou até mesmo ativismos fáceis de serem
geridos. Vamos listar cinco peculiaridades que tornam a educação um negócio
imperdível: a folha de parreira da titulação, a Síndrome da Vida de Inseto, a
amnésia discente, ausência de espírito de corpo e o fetiche da “uberização”
tecnológica da educação.
Certamente a
imaginação artística não é páreo para o surrealismo daquilo que chamamos por
realidade. Nos anos 1970 Raul Seixas cantava que a “solução é alugar o
Brasil!”. Só que o cantor não viveu o suficiente para ver o quanto sua crítica
estava aquém da imaginação fértil de políticos e economistas dessas plagas.
O Brasil está
sendo é vendido mesmo: aeroportos, usinas, distribuidoras de água e energia, riquezas
naturais, partidos políticos e, por que não,... universidades privadas?
Esqueça aqueles
donos de faculdades folclóricos, membros de conselhos de clubes de futebol,
donos de antigos cursos de admissão ou de escolas técnicas e supletivos... e
alguns até se aventuravam a vender máquinas caça-níquel em favelas de São
Paulo...
Esqueça aqueles
empresários locais e provincianos que pensavam em lucros extraídos da produção
em larga escala nas chamadas “faculdades de boca de metrô”, “universidades
pé-de-chinelo”, “fábrica de diplomas” etc.
Esqueça de
todos eles, porque o ensino superior privado ficou na mira das fusões e
aquisições, incorporações e abertura de capitais de fundos de investimentos
estrangeiros – com a participação de empresas de private equity, banco de
investimentos e fundos de investimentos como UBC Pactual, GP Investimentos,
Capital Group (EUA), Fundo Pátria ou a KKR (EUA) participando em grandes empresas
educacionais que oligopolizam o ensino superior brasileiro como a Kroton
Educacional (Anhanguera, Unopar etc.), a norte-americana Laureate International
Universities (Anhembi-Morumbi, FMU entre outras).
Efeitos imediatos
Os efeitos do
interesse no ensino superior desse mundo das altas finanças já são sentidos. Só
para ficar no exemplo mais recente: a demissão de 220 professores da FMU/SP no
mês de junho e a reestruturação curricular que reduz linearmente 25% das aulas.
Sem falar no
caso desse desafortunado blogueiro, demitido no ano passado (depois de ter
perdido o prazo de validade, após 30 anos de casa) da Universidade Anhembi
Morumbi, cujo curso também sofreu redução curricular de 25% - modus operandi Laureate.
Embora
consultores, analistas, conselheiros, gestores e toda essa miríade novos cardeais
da administração e da chamada ciência econômica falem em “inserção do ensino
superior no mundo global”, “internacionalização do ensino superior”,
“cooperações vencer-vencer” entre outros eufemismos para explicar essa mudança
estrutural no ensino superior, na verdade escondem a descoberta de que educação
é o melhor negócio de todos os tempos – principalmente por causa da natureza
peculiar da mão-de-obra principal (professores), sua clientela (alunos) e o seu
insumo (conhecimento).
Escolástica versus capital global
Confesso que acreditava
que a universidade, por descender diretamente do método escolástico medieval,
seria a última coisa que atrairia o interesse do grande capital dos global
players.
Razão pela qual
esse humilde e ingênuo blogueiro optou pela carreira acadêmica – acreditava
que, apesar da exploração da mais-valia absoluta perpetrada pelos capitalistas
locais, pelo menos o insumo trabalhado pelo professor ainda resistiria às
formas de quantificação da linha de montagem – o professor era explorado, mas
não despojado do seu saber.
Porém, após as
incansáveis pesquisas qualitativas, prospecção de mercado, análises de perfis
sócio-psicográfico, benchmarking, público alvo e testes de conceito, os novos
demiurgos do ensino superior vislumbraram o tesouro que tinham em mãos: um
negócio de natureza psicográfica, social e ideológica bem especial.
Vamos listar
cinco traços do mundo acadêmico que devem ter feito crescer os olhos dos
gestores:
(a) A folha de parreira da titulação
Professores
ostentam orgulhosos nas suas Plataforma Lattes, seus títulos de Mestrado e
Doutorado, livros ou artigos publicados em revistas científicas. Nos processos
de reconhecimento de cursos nas universidades privadas ou na proximidade das
visitas dos técnicos do MEC e avaliações do Enade, coordenadores correm atrás
da produção científica dos professores.
Logo os novos
professores descobrem aquilo que os mais antigos melancolicamente já
perceberam: o divórcio entre a pesquisa científica e conhecimento adquirido no
cumprimento dos créditos na pós-graduação e o trabalho didático exigido em sala
de aula.
Se na pesquisa o
professor lida com o conhecimento (produção científica), em sala de aula,
através da chamada “metodologia ativa”, transforma-se em gestor de efeitos de
conhecimento (informação) – o ofício do professor primeiro é engessado e depois
diluído no teach-learning previsto minuto
a minuto em planilhas Excel.
Mas nos
anúncios publicitários dessas universidades falam em professores “mestres e
doutores” como se isso quisesse dizer alguma coisa na prática de ensino
universitária.
A verdade está
em outra cena: titulações acadêmicas funcionam muito mais como folhas de
parreira para esconder a nudez dessas instituições: o abismo entre a Ciência e
a tecnicização do conhecimento reduzido por slogans como “empreendedorismo”, “foco
na criatividade”, “pro-atividade” etc.
(b) Professores e a Síndrome da “Vida de Inseto”
O leitor deve
lembrar da animação da Pixar Vida de
Inseto (A Bug’s Life, 1998). Se sim, deve lembrar também do circo de
insetos de um empresário embusteiro chamado P.T. Flea. O circo tinha sido
contratado pela formiga protagonista chamada Flik, com a missão de afugentar os gafanhotos que
escravizavam seu formigueiro.
Mas os insetos
artistas foram enganados pelo empresário charlatão: eles pensavam que apenas
fossem encenar que eram guerreiros, e não protagonizar uma guerra real contra a
gangue de gafanhotos.
Indignado com o
oportunismo do patrão, o louva-deus mágico Manny protestava: “Como ousa! O
senhor é o charlatão nessa história. Aproveitando-se das almas de artistas
infelizes, sedentas por atenção...”.
Com salários
atrasados, os pobres artistas insetos se submetiam a P.T. Flea unicamente por
carência de reconhecimento e atenção de pequenos públicos.
Muito se fala
da decantada “paixão por ensinar” (aliás, slogan do grupo Kroton) para
caracterizar o ofício do professor, transformando a profissão numa espécie de
sacerdócio. Mas é inegável que muito da resiliência do professor vem, em muitos
casos, dessa necessidade psíquica por atenção, da conquista de corações e
mentes do público, seja qual for.
No final, essa
Síndrome de Vida de Inseto vira a energia da resiliência de um ofício que se
liquefaz: com um cotidiano em sala de aula totalmente divorciado da produção
científica pessoal, pelo menos alguém presta mínima atenção ao que o professor
fala.
(c) Amnésia discente
O que se torna
oportuno nessa guinada radical das demissões em massa, reestruturações
curriculares arbitrárias para redução de aulas, “uberização educacional” (sobre
esse conceito clique aqui) e diluição do conhecimento em informação é que a
“clientela” discente sempre se renova.
Sem parâmetros
para fazer comparações entre passado, presente e futuro, novas turmas entram
nas universidades privadas e acham que tudo sempre foi assim. O conhecimento
histórico será sempre de curto prazo, limitados aos quatro anos em média do
curso superior.
Um ótimo
negócio: diferente de outros produtos, o ensino superior conta com o
esquecimento como um importante insumo – mesmo aquelas turmas de anos avançados
que, chocados, testemunham ondas de demissões e as reestruturações preparadas
para as novas turmas ingressantes, sabem que estão na reta final da sua, por
assim dizer, “vida acadêmica”.
Por isso, é
melhor esquecer, pegar o diploma e cair fora.
(d) Ausência do espírito de corpo discente
Mas é claro que
essa amnésia discente somente é possível com uma importante doutrinação
ideológica que já começa nos filmes publicitários e nos materiais informativos
das universidades privadas – Internet, folders etc.
Para o negócio
do ensino superior não existe “corpo discente”. Existe apenas “o discente”, e é
para ele, e somente ele, que fala toda a comunicação publicitária e acadêmica.
A retórica é
individualista, jamais coletiva. Afinal, desde o primeiro momento que senta na
sua carteira e olha para frente, o aluno
já está sendo preparado para a precarização,
trabalho desregulamentado, salários miseráveis, patrões invisíveis escondidos
por trás de plataformas tecnológicas e transações econômicas misteriosas na
sombra do espaço digital.
Por isso, é cada um por si e
todos, obrigatoriamente, “inovadores”, “empreendedores”, “focados em
resultados”, “internacionalizados” e assim por diante com tantos eufemismos tão
etéricos que acabam quase se tornando algum tipo de tratado de metafísica.
Diretórios Acadêmicos
(oportunidade para criar um centro de convivência acadêmica, mantenedor da
memória histórica e do espírito de corpo) são obviamente desestimulados ou
simplesmente proibidos. No lugar, estimula-se a criação de associações
atléticas, nas quais a prática esportiva é pretexto para organizar cervejadas,
carnafolias, carnafacul entre outros eventos etílicos com péssimo gosto
musical...
(e) Uberização da educação
Nada como o
avanço tecnológico, principalmente dos aplicativos. Afinal, o discurso da
educação atual identifica-se cada vez mais com as novas tecnologias digitais,
tomadas como objetos fetichistas – algo assim como fossem máquinas que, por si
mesmas, ensinassem enquanto o professor “facilita” o processo.
Um projeto da
prefeitura de Ribeirão Preto/SP, apelidado de “Uber da educação” ou “Professor
Delivery”, prevê o pagamento avulso de aulas da rede pública para professores
acionados por um aplicativo – após receber a chamada pelo aplicativo no
celular, o professor teria 30 minutos para aceitar a tarefa e uma hora para
chegar na escola.
Tudo a título
precário, sem vínculo empregatício. Professores seriam acionados sempre quando
um profissional da rede municipal faltasse – sobre a notícia clique aqui.
Nesse clima de
“reformas” que varre a agenda da grande mídia e da política nacional, essa é
certamente uma experiência seminal e de vanguarda cujos resultados serão
ansiosamente aguardados pelo oligopólio educacional.
Assim como
olham atentos para experiências como a do inspirador Vale do Silício na
Califórnia: a criação de uma universidade “revolucionária” sem professores – a universidade
chama-se “42”, número que seria o “sentido da vida”, segundo o clássico sci-fi O Guia do Mochileiro das Galáxias – sobre a notícia clique aqui.
Porém, abaixo
do equador, não será necessário tanto investimento tecnológico: bastam um
smartphone, a Síndrome da Vida de Inseto docente e a amnésia discente na
efêmera “vida acadêmica”, por assim dizer.
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