Apesar de contar com dois vencedores do Oscar
(Kevin Spacey e Christopher Walken) a comédia romântica familiar “Virei um
Gato” (Nine Lives, 2016) foi destruída pela crítica: o que esses atores
consagrados estão fazendo nessa catástrofe? Eles devem ter contas pesadas para
pagar! Mas para o Cinegnose esse filme é um trunfo que confirma uma tese: desde
que o Gnosticismo deixou de ser uma exclusividade de filmes cults e foi adotada
pelos filmes populares a partir dos anos 1990, os elementos gnósticos deixaram
de figurar apenas em sci-fis e dramas cerebrais, para também incursionar em
comédias, thrillers e outros gêneros. Por trás de camadas de clichês de uma comédia popular,
“Virei um Gato” nos conta a narrativa gnóstica de transformação íntima através
da jornada espiritual no corpo de um gato e, principalmente, por um “salto de
fé” ao mesmo tempo literal e simbólico, a exemplo de filmes gnósticos mais sérios como “Vidas em
Jogo” (1997) e Vanilla Sky (2001).
Os críticos definem o filme como uma
“catástrofe” e “perda de tempo”. Um filme que conta com dois vencedores do Oscar,
Kevin Spacey e Christopher Walken. O que, para esses mesmos críticos, somente
pesadas contas pessoais para pagar talvez possam explicar o porquê de grandes
atores desperdiçarem talento numa canoa furada. Algo assim como o talento de Meryl Streep
afundando com todo elenco no musical Mamma
Mia!
Um filme cujo argumento poderia ser resumido
da seguinte maneira: um bilionário do setor imobiliário fica preso no corpo de
um gato. Uma mistura dos clichês dos anos 80 sobre os efeitos de mudanças de corpos e sobre pais workholics que deixam de dar atenção aos filhos nos anos
1990.
É Virei
um Gato (Nine Lives, 2016), uma
comédia familiar que certamente num futuro próximo será programada para as
sessões da tarde da TV nas férias da criançada.
Ainda para esses impiedosos críticos, com filmes
como Virei um Gato o diretor Barry Sonnenfeld continua destruindo sua reputação
construída em filmes como MIB – Homens de Preto e Família Adams.
Gnosticismo em gêneros fílmicos
Então, por que esse filme figura aqui no Cinegnose? Comédias como essa comprovam
uma das teses desse humilde blogueiro nas incursões diárias que o blog faz
mapeando elementos do Gnosticismo no cinema popular: desde que as narrativas e
arquétipos gnósticos passaram a atrair roteiristas, diretores e produtores de
Hollywood, o Gnosticismo saiu da sua fase cult (em filmes de arte como Zardoz ou O Homem Que Caiu na Terra) para ingressar no cinema para as massas.
Isso significa que os elementos gnósticos
deixaram de ser exclusividade de gêneros como ficção científica ou drama para
espalhar-se por outros gêneros como animações, comédias, thrillers. Inclusive,
deixando de ser exclusivas adaptações de escritores gnósticos como Philip K.
Dick (Blade Runner, Minority Report, Os
Agentes do Destino etc.) para ser absorvidos por roteiristas pouco
conhecidos como Gwyn Lurie e Matt Allen que escreveram Virei um Gato.
Por baixo das camadas de clichês de uma
comédia familiar e pueril, estão lá elementos gnósticos da transformação íntima
do protagonista através de uma jornada espiritual no corpo de um gato. Mas,
principalmente, o elemento do “salto de fé”, espinha dorsal da narrativa que
envolve um arranha-céu de Nova York e o salto literal do protagonista,
lembrando o desfecho de filmes gnósticos de outros gêneros como Vida em Jogo
(1997) e Vanilla Sky (2001).
O Filme
Tom Brand (Kevin Spacey) é um rico bilionário do setor imobiliário, egoísta e narcisista o suficiente para
sua vida girar em torno da obsessão da altura da torre que levará a marca da
sua empresa, a Firebrand. Porém, uma outra torre construída em Chicago ameaça
impedi-lo de ter o mais alto símbolo fálico do Hemisfério Norte. Rico, egoísta,
temperamento explosivo e obcecado pelo tamanho do seu símbolo fálico... Talvez,
Tom Brand tenha vagamente se inspirado em Donald Trump.
Preocupado com os detalhes da sua obra, a
contragosto tem que arrumar algum tempo para comprar o presente da sua filha de
11 anos do segundo casamento. Tom vai parar num misterioso pet shop
especializado em gatos em um beco repleto de felinos com olhares desconfiados. Lá
encontra Felix Perkins (Christopher Walken) que mais parece o Chapeleiro Maluco
de Lewis Carroll.
Um gato peludo, o Sr. Bola de Pelos,
escolhe-o (detalhe importante, os gatos escolhem sempre as almas mais
problemáticas). No caminho para a festa da filha, obcecado em ultrapassar o
arranha-céu de Chicago, Tom passa pela sua torre para discutir mais detalhes da
construção. Na cobertura do arranha-céu, tem uma discussão com o seu CEO e é atingido por um
raio. Tom Brand e o gato caem do topo da torre. Resultado: enquanto seu corpo
está em coma na UTI, sua alma ficou presa no gato presente da sua filha.
O misterioso Felix Perkins é o único que
consegue conversar com ele no corpo do gato e o alerta: para retornar ao seu
corpo que está morrendo na UTI, Tom deverá não apenas se modificar
espiritualmente, mas também empreender um sacrifício pela sua família.
Enquanto isso, o ambicioso jovem CEO, Ian Cox
(Mark Consuelos), planeja a venda da Firebrand para fundos de investimentos, na
iminência da morte do seu dono. Com a venda, ele e o Conselho de Acionistas
embolsarão uma grande fortuna.
Portanto, o tempo corre contra Tom: não só o
seu corpo mas também a própria empresa está morrendo. A mudança de caráter de
Tom deverá ser autêntica. E a prova, a descoberta de algum tipo de sacrifício
que deverá aceitar em benefício da família que sempre deixou em segundo plano.
A jornada espiritual do Viajante
Virei Um
Gato parte de uma
premissa que é própria do Romantismo dos
séculos XVIII-XIX que, de tão repetida, tornou-se um clichê: o casal concentra
em si todas as chances do Universo: é autossuficiente em concentra em si todas
as promessas de felicidade. Por isso, entra em confronto com o Mal perene do
mundo. É a cisão entre o sonho e a realidade – ou o casal está unido contra a
maldade do mundo ou um deles está alienado de si mesmo ameaçando a destruição
do próprio casal.
O Romantismo foi um dos momentos do revival do Gnosticismo na história da
cultura, com esse enfoque de que o mundo é intrinsecamente mal, e, para
enfrenta-lo, temos que fazer uma reforma íntima – resolver a alienação de nós
mesmos para que o casal se fortaleça e confronte o mundo inautêntico.
Nos estudos do Gnosticismo através dos
filmes, vimos ao longo dos anos que haveria três formas de empreender essa
reforma: através dos estados de suspensão,
paranoia e melancolia, respectivamente correspondendo aos personagens do Viajante, do Detetive e do Estrangeiro
– sobre esses conceitos clique aqui.
Virei um
Gato explora o primeiro
tipos de personagem: o Viajante. Tom Brand é rico, bem sucedido e famoso.
Porém, falta algo. É necessária uma jornada espiritual (o “jogo”) para que
todos os conceitos esquemáticos que organizam sua consciência sejam colocados
em “suspensão” para encontrar a “gnose” – a transformação íntima.
O “Jogo” (a jornada espiritual que pode ser
tanto um jogo literal – um game virtual como Vidas em Jogo ou eXistenZ,
1999 – como na metáfora de troca de corpos como em Virei um Gato) é o que
empurrará o protagonista ao “sacrifício”, representado nesses filmes como o
“salto de fé”. Em geral, no desfecho da narrativa.
Tom Brand/Bola de Pelos se joga do alto da
torre para salvar seu filho mais velho, membro do Conselho da empresa que tenta
salvar a empresa do seu pai em coma. A queda é a metáfora do estado de
suspensão: todas as polaridades (sim/não, certo/errado, realidade/ilusão etc.)
são colocadas em suspensão. Estamos aqui na essência do filósofo gnóstico
Basilides (século II DC): a suspensão é o silêncio que suspende todas as
polaridades ilusórias, as abstrações do pensamento que criam a ilusão do mundo.
No último sacrifício e no silêncio da mente
que sobrevém à queda, Tom Brand retorna ao seu corpo transformado, pronto para
enfrentar, junto com sua esposa, a maldade perene do mundo representada pelo
ambicioso CEO.
Essa narrativa gnóstica transpassa todos os
gêneros: de filmes consagrados como Vanilla
Sky a obscuros filmes-clichê da Sessão da Tarde como Virei um Gato.
Ficha Técnica |
Título: Virei um
Gato
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Diretor: Barry Sonnenfeld
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Roteiro: Gwyn Lurie e Matt Allen
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Elenco: Kevin
Spacey, Christopher Walken, Jennifer Garnen, Robbie Amel
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Produção: Europa Corps,
Fundamental Films
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Distribuição: Europacorp
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Ano: 2016
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País: Canadá, França, China
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