A política brasileira parece estar sendo
dirigida pelos misteriosos desígnios das “coincidências”. Os exemplos mais
recentes: a morte do ministro do STF Teori Zavascki no Triângulo das Bermudas da
política em Paraty e a prisão do pobre homem rico “foragido” Eike Batista,
repletos das sempre recorrentes “coincidências” e timings oportunos envolvendo
a onipresente TV Globo. Qualquer tentativa de explicar essas “coincidências”
(rapidamente definidas pela narrativa midiática como “fatalidades” das
“trapaças da sorte”) é logo rotulada como “teoria conspiratória”. Mas o show
midiático da “caça” ao “foragido” Eike Batista acrescenta alguns ingredientes a
mais: o chamado Efeito Heisenberg, no qual a mídia cobre um evento criado por
ela mesma; e o linchamento midiático: depois dos petistas agora são as
celebridades, subprodutos da própria mídia. Linchamento que combina
entretenimento e expiação da dor e introjeção da culpa pelo fracasso
profissional e pessoal de milhões de brasileiros no naufrágio da crise
econômica. Mesmo no seu fim, Eike Batista se tornou útil como um lixo midiático
reciclável no bode expiatório da vez.
O ano de 2017 parece que inicia como o ano
das “coincidências”. A uma semana da homologação das denúncias-bombas da
Operação Lava-Jato, o relator ministro do STF Teori Zavascki por coincidência
morre em um acidente aéreo no Triângulo das Bermudas da política brasileira em
Parathy. Logo depois a ministra Carmen Lúcia faz às pressas as homologações,
porém mantendo tudo em “sigilo de Justiça”.
Também por coincidência, o ministro da casa
civil, Eliseu Padilha, tinha dito no dia anterior ao velório de Zavascki que “a
morte vai fazer com que a gente tenha um pouco mais de tempo...”.
E também por coincidência o empresário Eike
Batista deixa o Brasil através do Aeroporto do Galeão rumo aos EUA, dois dias
antes da Polícia Federal dar uma batida na sua mansão. O mandato de prisão foi
expedido dia 11 e por coincidência, em um timing perfeito, doze dias depois
Eike passa pelo guichê da Polícia Federal no aeroporto com direito a carimbo e
“boa viagem”.
Embora com endereço sabido nos EUA, a grande
mídia considerou Eike “foragido” e com um passaporte alemão, planejando escapar
dos longos braços da Lei.
Pronto para retornar ao Brasil no aeroporto
John Kennedy, coincidentemente lá estava uma equipe da TV Globo (mas Eike não
estava “foragido”?) a qual concede entrevista no check in.
Coincidentemente, um repórter da Globo
consegue comprar uma poltrona ao lado do empresário “foragido” para gravar um
pequeno vídeo descrevendo a tranquila noite de sono de Eike.
Timing da suíte jornalística
No Brasil, sua estadia vira um tour de force televisivo: Eike de
camburão, no IML, entrando no presídio, Eike agora careca (ou apenas
confiscaram sua peruca?)...
Mais uma “coincidência”: enquanto muitos
alvos da Lava Jato como Marcelo Odebrecht levam vários dias para prestar
depoimento após a prisão, com a live
action televisiva de Eike foi diferente: no dia seguinte à prisão já esteva
prestando depoimento, com total cobertura através das imagens aéreas do
Globocop, acompanhando-o pelas ruas do Rio de Janeiro.
Timing perfeito como se o evento estivesse muito
tempo antes roteirizado, garantindo a suíte da cobertura telejornalística.
Qualquer tentativa em compreender como é
possível a política brasileira estar à mercê de sequências de coincidências é
imediatamente rotulada como “teoria conspiratória”. Afinal, a narrativa
dominante é a da grande mídia, sempre descontextualizada e apostando na
fatalidade ou nas “trapaças da sorte”, como disse o ministro do STF Luís
Roberto Barroso – será que a declaração foi alguma fina ironia?
Mas a “fuga” e “captura” do “foragido” Eike
Batista deixa de ter os aspectos trágicos das coincidências envolvendo a morte
de Teori Zavascki para adentrar na ironia do chamado Efeito Heisenberg midiático e em um campo mais sombrio da psicologia de massas: o cultivo diário dos linchamentos para alimentar uma latente personalidade autoritária coletiva que legitimará um futuro
distópico que ora está sendo silenciosamente gestado no País. E Eike Batista transformado num surpreendente lixo midiático reciclado que ganha nova utilidade no xadrez político.
(a) O Efeito Heisenberg Eike Batista
Conceito criado por Neil Gabler numa alusão
ao princípio quântico (o observador não pode observar qualquer coisa sem
alterar o observado), o “Efeito Heisenberg” é o resultado da onipresença da
mídia na sociedade: na medida em que a vida está sendo cada vez mais vivida
para a mídia, esta começa cada vez mais a cobrir a si mesma e o seu impacto
sobre a sociedade – sobre o conceito clique aqui.
Eike foi uma dessas felizes correspondências
que alimentam a atual hegemonia midiática sobre processos políticos e
econômicos: de um lado alguém sedento pelas luzes das câmeras de TV e do outro
um jornalismo também sedento por personagens que sustentem scripts
pré-estabelecidos pela pauta dos “aquários” das redações – a pauta do
empreendedorismo e meritocracia como únicas saídas para uma sociedade se
autorregular e se livrar do Estado deficitário e corrupto.
Nos bons tempos do homem mais rico do Brasil
e o sétimo do mundo pelo ranking da Forbes, jornais, revistas e TVs incensavam
Eike como alguém “que trabalha muito, compete honestamente, gera empregos e não
se envergonha da riqueza”. Enquanto Eike gostava de ostentar seus carrões,
mansões e se deixava fotografar ao lado de celebridades globais como Luciano
Huck nas concorridas festas, a grande mídia chegava ao ápice da bajulação:
“Eike Xiaoping” estampado na capa da Veja e “Eike para presidente” em artigo
publicado pela Folha em 2012 que chegava a defini-lo como algum tipo de
fenômeno sociológico:
“Ser rico no Brasil sempre foi uma ofensa sociológica. Eike Batista chegou para acabar com isso. Ele não é só um bilionário desinibido, confiante, assumido. O pai de Thor é também carismático, empreendedor genuíno, obcecado com o cabelo, nosso primeiro Donald Trump, com bestseller nas livrarias e um senso de autopromoção que pode levá-lo, quem sabe, a subir a rampa do Palácio do Planalto”(MALBERGIER, Sérgio, “Eike Para Presidente”, Folha, 19/01/2012.
Hoje, tanto Eike como Trump são execrados
pela grande mídia. Produtos midiáticos que parecem ter perdido o prazo de
validade. Enquanto Eike foi útil como prova de que o empreendedorismo genuíno
poderia substituir o estatismo lulopetista, mereceu as luzes da ribalta.
Hoje a mesma mídia que o criou agora
descarta, jogando-o ironicamente no colo petista de Lula e Dilma, mesmo
sabendo-se que no Conselho de Administração das empresas de Eike estivessem a
ministra do STF Ellen Gracie (indicada por FHC ao Supremo) e os ex-ministros da
Era FHC Pedro Malan e Rodolpho Tourinho Neto.
Mesmo no final da trajetória do pobre milionário,
o Efeito Heisenberg continuou como se a mídia quisesse reciclar o lixo
rejeitado: a “coincidente” cobertura da TV Globo foi um verdadeiro exercício
metalinguístico de ostentação de poder da emissora não só no campo político
como no próprio campo midiático – achou o “foragido” no aeroporto
norte-americano e o acompanhou por toda viagem como se escoltasse o troféu.
Quem sabe, para evitar que mais uma “trapaça da sorte”, ao estilo Teori Zavascki, ceifasse a vida de tão
importante delator.
Chegando no Brasil, Eike foi pego pela
Polícia Federal na cabeceira da pista, enquanto, na área de desembarque, o
restante da imprensa esperava em vão. Em rede nacional foi uma evidente
demonstração de força, na qual a Globo demonstrou de forma inequívoca que ainda
é ela que dá as cartas no País. E o restante da mídia é mera câmara de eco das narrativas globais.
(b) O linchamento de Eike Batista
O filósofo e sociólogo Theodor Adorno resumia
da seguinte maneira a dinâmica psíquica da personalidade autoritária: “quem é
duro consigo mesmo, adquire o direito de ser duro com os demais e se vinga da
dor que não teve liberdade de demonstrar, que precisou reprimir”. Com isso
Adorno queria explicar como o fenômeno da personalidade autoritária foi
matéria-prima psíquica da psicologia de massas que deu historicamente
sustentação ao nazi-fascismo – a busca de bodes expiatórios nos quais foi
projetada a dor interna de cada um, resultado da introjeção da culpa pela
humilhação e derrota num contexto de crise econômica. A dor que a sociedade
proíbe a manifestação por meio da introjeção.
O outro lado do Efeito Heisenberg do show da
prisão de Eike Batista é o seu conteúdo psíquico destinado para as massas: as
imagens “chocantes” de Eike careca e de chinelos da outrora celebridade
milionária, sendo conduzido por agentes penitenciários e policiais federais,
atiça o velho ritual do linchamento físico e moral – mesmo que sejam apenas
signos visuais criados pela e para a mídia.
Assim como nas proto-celebridades do reality
Big Brother Brasil, com Eike é o show histérico do linchamento no qual o homem
anônimo se vinga das celebridades: o prazer sádico em descobrir alguém
supostamente em situação pior que a sua. Afinal, esse é o prazer dos programas
reality horror do final de tarde, de Datena a Mercelo Rezende.
Linchamentos midiáticos como os que
testemunhamos com Eike Batista poderá ser a preparação do terreno psíquico de
massas para algo muito maior e sombrio no futuro.
Theodor Adorno |
(c) Eike Batista como lixo midiático reciclado
Em épocas de “flexibilização” das leis
trabalhistas e da aprovação a toque de caixa de todas as PECs que tornarão a
vida ainda mais dura na qual é cada um por si, é necessário criar o substrato
psíquico que legitime a nova ordem e faça as pessoas engolirem a dor por meio
da culpa.
Diariamente a grande mídia bombardeia
soluções individualistas para a crise do país: o pequeno empreendedor, o pequeno
empresário, o plano de saúde privado, o plano de aposentadoria privada, o
financiamento estudantil da universidade privada, a start up etc. Nenhuma
solução coletiva através de programas públicos que gerem empregos pela expansão
da cadeia produtiva. Apenas soluções privadas: “uma ideia, um negócio”.
Não é à toa que o Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) está a ponto de transformar-se em
agência da mega-sena, ao invés de financiador de políticas públicas de
desenvolvimento.
Esse modelo meritocrático (o mito de que o
mercado sempre recompensará talentos individuais) inevitavelmente produz muito
mais perdedores do que vencedores. Só que dessa vez sem o amparo de um Estado
de Bem Estar Social, apenas contando com a sorte de um dia ter o bilhete da
loteria sorteado.
Por isso a derrota sempre será introjetada no
psiquismo individual – também a dor social é privatizada: dor e humilhação por
que supostamente não preencheu direito o currículo, porque não se esforçou o
suficiente, porque é preguiçoso, porque não acreditou o suficiente em Deus, não
tem pensamento positivo e assim por diante. Ou simplesmente porque é burro e um
loser.
Nesse cenário psíquico tão duro para o
indivíduo, sempre exigindo uma dose extra de repressão de um superego severo e
implacável (afinal, por razões competitivas, as fraquezas jamais devem ser
demonstradas), bodes expiatórios midiáticos são a válvula de escape perfeita
por unir entretenimento com expiação.
O moralismo da caça aos “marajás”, depois aos
petistas e, agora, celebridades em decadência, é o plano perfeito para criar
consenso em uma sociedade onde é cada um por si.
E Eike Batista, mesmo no seu fim, ainda é
útil como uma espécie de lixo reciclado midiaticamente. Reciclagem ideológica como
punição sádico-meritocrática para que as hordas dos derrotados reciclem também
o ódio e a dor
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