Uma mulher tenta desesperadamente ligar para
seu namorado, sentindo-se culpada por um desentendimento que poderá colocar fim
na relação. É tarde da noite, e ela desce as escadarias de uma passagem
subterrânea para, lá dentro, encontrar o Mal. Ou a si mesma. Esse é o curta
russo “The Crossing” (2016) que explora um dos temas preferidos do terror: os
subterrâneos. Porões, metrôs, garagens subterrâneas, tuneis etc., ao mesmo
tempo que nos fascinam, também nos apavoram. O medo que pode ser tanto
interpretado como um arquétipo gnóstico (a metáfora da condição humana
prisioneira nesse mundo), como compreendido pelo viés psicanalítico: nos
subterrâneos está o nosso inconsciente – culpas e traumas dos quais queremos
nos livrar. Mas o reprimido sempre retorna, transformado em monstros e pesadelos.
The Crossing é um curta de terror russo inspirado nos
primeiros filmes de John Carpenter. Dirigido por Arseny Syuhin, o curta explora
dois simples elementos: uma passagem subterrânea em uma cidade qualquer e um
telefone celular.
Ela liga para o seu namorado para tentar se
reconciliar ou pedir desculpas depois de algum tipo de desentendimento. Parece
ser tarde da noite. Tensa, desce as escadarias para o subterrâneo quando alguém
apressado do nada aparece e passa esbarrando nela. Temos todos os elementos e a
atmosfera que indicam que algo de terrível acontecerá com ela.
The Crossing foi filmado em uma passagem subterrânea real
durante três noites, com um equipamento bem simples: uma câmera Blackmagic,
tripé e uma equipe de apenas três pessoas. E depois, uma impressionante edição
e efeitos digitais.
O curta explora um dos exemplares
pertencente a um grupo de elementos sempre presente nos filmes de terror: os
subterrâneos – metrôs, cavernas, porões, tuneis, passagens, garagens
subterrâneas. Lugares nos quais sempre o Mal está a espreita, não só para matar
mas para também aprisionar o protagonista ou mesmo a sua alma depois da morte.
Ao lado do tema da cabana remota na
floresta, o subterrâneo é um dos tropo
mais utilizados em narrativas de terror. O Mal sempre aflora dos subterrâneos,
às vezes para nos atrair e aprisionar; outras vezes para invadir a esfera
familiar, entrar nos quartos quando dormimos ou fazemos sexo. E, para salvar a
civilização, o duelo final será na esfera pública da sala de visitas ou na sala
de jantar, o lugar de união familiar.
Um arquétipo gnóstico
Esse clichê do gênero pode ter uma dupla
leitura: gnóstica e psicanalítica.
Os subterrâneos possuem um evidente
simbolismo da própria condição humana como prisioneira, como uma espécie de
microcosmo do Mal que nos mantem presos nos seus limites.
Mas o interessante é que nem sempre na
História os subterrâneos tiveram esse simbolismo – foram lugares sagrados de
busca da sabedoria na escuridão. No local que era como uma incubadora dos
sonhos.
Um imaginário antiquíssimo do período
pré-socrático: aqueles que se iniciavam nesses lugares sagrados participavam de
uma jornada no reino dos mortos na esperança de encontrar uma divindade que
seria seu amigo ou mentor.
Cavernas eram lugares de cura e conexão com
o mundo transcendental para além dos nossos sentidos.
A partir de Platão a caverna será
apresentada como uma parábola da limitação da percepção derivada da experiência
sensorial, portanto, um lugar de onde devemos escapar para encontrar a verdade.
Essa parábola mostra a visão de mundo do ignorante, que vive no senso comum, e
do filósofo na eterna busca da verdade. Aprisionado no interior de uma caverna,
limita-se a ver sombras nas paredes projetadas do mundo exterior - o Mundo das
Ideias, oposto ao mundo das coisas sensíveis.
Ou seja, foi a partir da inauguração do período
racional e metafísico na História, no qual os mitos foram expulsos como
superstições, que os subterrâneos passaram a ter essa conotação maligna. A
abstração da Razão nos aprisionou nos reinos subterrâneos, negando-os o acesso
à Verdade lá fora.
Esse arquétipo gnóstico que nos lembra
daquele imaginário pré-socrático é o que anima nove em cada dez filmes seja de
terror, thrillers de ação ou sci fi – lugares de perigo ou discórdia onde o
herói é atacado pelo vilão ou monstro, onde perseguições de carro terminam em
destruição em série. Ou nas cavernas misteriosas de um planeta distante no
filme Alien (1979) repletos de
sinistros ovos que infectam a tripulação da nave Nostromo e transforma cada um
em potencial hospedeiro de uma criatura predadora.
Subterrâneos do inconsciente
A leitura psicanalítica é óbvia: os
subterrâneos são o próprio inconsciente humano, aquilo que deve ser negado,
reprimido pela sociedade por ser o Estranho – “uncanny”.
Em The
Crossing está a culpa – a protagonista sente-se culpada pelo
desentendimento amoroso e tenta desesperadamente fazer a ligação para se
reconciliar.
Freud dizia que o inconsciente pode se
manifestar de três maneiras: pelo ato falho, pelo sonho e através da neurose –
desordem psíquica caracterizada como um mecanismo de defesa do ego diante da
pulsão ou fantasia ameaçadora à estabilidade e harmonia. Fobias, obsessões e
psicoses são algumas manifestações dessa desordem.
É a própria matéria-prima dos filmes de
terror – fobias do escuro, subterrâneos, cobras, aranhas etc.
Por isso, a neurose transforma-se em prisão
íntima: sem solução, a cena do trauma é repetida ao infinito a cada medo,
pânico ou sensação de ameaça. Assim como a protagonista do curta The Crossing,
prisioneira nas paredes daquela passagem subterrânea.
Dessa maneira, a leitura psicanalítica
acaba conectando-se com a gnóstica: na verdade, não são os subterrâneos que nos
aprisionam, mas o próprio psiquismo projetado. Vivemos prisões íntimas, como é
bem explorado em narrativas PsicoGnósticas como Vanilla Sky (2001), A
Passagem (Stay, 2005) ou Revolver
(2005, clique aqui).
ПЕРЕХОД - THE CROSSING (A Short Horror Film) from Shell Shock on Vimeo.