O cinema não inventou o beijo. Apenas o
tornou mais icônico nas relações dos amantes. Porém, Hollywood deu continuidade
a uma, por assim dizer, ocupação semiótica da boca e do beijo atribuindo a eles
novas representações simbólicas de velhos significados: distinção de classes,
de gêneros e substituto do ato sexual. Da mesma forma, o hindu “Kama Sutra” não
inventou o beijo, mas atribuiu a ele a comunhão erótica que o Ocidente fez
questão de reprimir e controlar desde os persas e romanos, submetendo-o à ordem
do Poder. No cinema, o beijo transformou-se na alienação do desejo ao
submetê-lo ao espectador voyeur que, com a boca aberta, também espera o beijo.
Porém, a pipoca sublima a compulsão enquanto nos filmes atuais ou o beijo se
submete à performance e eficácia ou à reconciliação dos casais diante do
apocalipse nos filmes-catástrofe.
Para o maior dramaturgo brasileiro, Nelson
Rodrigues, a boca era o verdadeiro lugar da desvirginização: suas
protagonistas, mesmo após o coito, por pudor se recusavam a beijar a boca dos
seus amantes.
Rodrigues tinha consciência de que, mais do
que o ato sexual, no beijo está a comunhão perfeita entre dois amantes – o
encontro entre dois órgãos que são, ao mesmo tempo, objetivamente penetrante e
penetrado. As línguas se esfregam, ocorrendo uma interpenetração física real: a
boca como órgão passivo e a língua como ativo. Mais que o coito que é apenas um
ato parcial no qual há um ativo e outro passivo. Um ato submetido à matriz
fálica que governa a própria sociedade – o Poder.
Não foi à toa que na Índia antiga o Kama Sutra dedicou um capítulo inteiro
aos modos de beijar. Mais do que erótico, o beijo na boca era a verdadeira
comunhão, tão importante quanto o ato sexual em si.
O beijo hierárquico
Quando Alexandre, O Grande, invadiu a Índia
em 326 AC os gregos conheceram essa natureza totalmente diversa do beijo
erótico. Mas no Ocidente já havia ocorrido uma ocupação semiótica da boca e do
beijo: beijos nas mãos e no rosto como representação da posição hierárquica das
pessoas – o domínio da matriz fálica sobre o órgão bucal, impedindo a sua
libertação erótica tão conhecida pelos hindus.
Por exemplo, entre os persas homens da mesma
posição social se beijavam com uma bitoca. E aqueles de posição inferior, um
beijo na bochecha.
Na ordem marcial dos romanos, as diferenças
hierárquicas do beijo foram ainda mais sistematizadas. Eles distinguiam um
beijo na mão e na bochecha (osculum)
de um beijo nos lábios (basium) e um
beijo profundo e apaixonado (savolium).
Numa época de analfabetismo generalizado, o
beijo era um signo para representar acordos que eram selados e delimitação das
classes sociais. O status social de um romano era determinado pela parte do
corpo que podia beijar o imperador, da bochecha ao pé.
O “beijo santo”
Com o declínio do império romano e a ascensão
do Cristianismo novas representações do beijo e da boca começaram a surgir.
Embora no Velho Testamento bíblico, no “Cânticos dos Cânticos”, relembre essa
natureza erótica do beijo (“Que ele me beija com os beijos da sua boca, porque
teu amor é melhor do que o vinho”), os cristãos espiritualizaram o beijo – o
“beijo santo” associado à transferência de espírito ou ainda o “beijo da
caridade” de São Paulo.
Mas fora da Igreja, o beijo ainda era uma
forma de cimentar as diferentes posições sociais – súditos e vassalos beijavam
a túnica do rei ou os chinelos e o anel do Papa.
O beijo romântico subversivo
Após a queda definitiva de Roma, a lembrança
do beijo erótico aprece ter desaparecido por mais de mil anos para, no século
XI, ressurgir com o romântico amor cortês dos trovadores medievais.
O beijo de Romeu e Julieta é emblemático
desse movimento, que procurou reconectar o beijo com suas origens eróticas da
antiguidade (se bem que sublimado pelo “amor romântico”). Porém, foi uma tentava
livrar do beijo o domínio da matriz fálica do Poder – remover o namoro do
controle da família e da sociedade e celebrar o amor romântico como força
libertadora, autodeterminadora e potencialmente subversiva.
Assim como os perigos da Aids e doenças
venéreas foram instrumentalizados para controlar essas formas subversivas de
amor, também no passado o mito do vampiro também foi explorado como uma
representação dos perigos para a saúde e reputação para aqueles que teimem em
fugir do controle da sociedade e da família – o amante inadvertidamente correrá
sempre o risco de beijar a pessoa errada...
Mas vampiros e sífilis não foram o suficiente
para inibir a imaginação incendiária do beijo erótico que subverte todo o poder
fálico – a divisão social e sexual entre dominantes e dominados, ativos e
passivos.
O beijo voyeurista do cinema
A civilização da imagem, iniciada pela
fotografia e cinema, iria cumprir de forma mais eficiente esse papel repressor,
inclusive trazendo os próprios vampiros (de Nosferatus a Drácula) para as telas
cinematográficas.
O beijo tornou-se um objeto alienado do
desejo: passou a ser representado através da perversão voyeurista como se o
espectador observasse tudo por um buraco de fechadura. Não é à toa que, ao lado
dos filmes sobre a paixão de Cristo, o filme pornográfico foi um dos primeiros
gêneros bem sucedidos no primeiro cinema.
Com a imagem, temos o dispositivo de controle
perfeito do beijo: à distância observamos um casal se beijando na tela. A forma
alienada de prazer se impõe: o prazer perverso e ilusório de o casal não saber
que está sendo observado pelo espectador. O gozo é o do poder do olhar –
voyeurismo. Mais uma vez, dessa vez na civilização das imagens, o beijo erótico
é controlado pela matriz fálica do poder. Dessa vez, não mais pela repressão
pura e simples. Mas através da exibição de bocas que se tocam, porém como
objetos platônicos e inalcançáveis.
De início, o beijo no cinema (malgrado todas
as dificuldades técnicas iniciais para representá-lo imageticamente – os rostos
que desapareciam sob cabelos errantes, sombras que se projetavam sobre as bocas
tornando o beijo invisível etc.) foi semioticamente dominado por duas funções:
marcar as posições ativa (masculina) e passiva (feminina) e como substituto do
ato sexual.
Beijo, a boca aberta e a pipoca
A promoção dos galãs como Rodolfo Valentino,
Errol Flynn e Douglas Fairbanks criou a imagerie do beijo cinematográfico: o
herói-galã, mais alto, se inclina sobre a mulher que com o rosto voltado para
cima, espera passivamente a boca do amante.
É sintomático que enquanto nas telas via-se o
beijo ativo, na plateia tínhamos espectadores no escuro, todos com as bocas
abertas como se passivamente também aguardassem serem beijados pelo ícone do
galã. Certamente a pipoca foi o mecanismo de sublimar esse potencial perversão
sexual. Pelo menos com a pipoca, as bocas abertas passaram a ter uma função.
É claro que no início do cinema ocorreram
transgressões que, mais tarde, foram eliminadas pelo enquadramento moral e
político do Código Hays em 1934, código de autocensura de Hollywood que passou
a determinar uma série de regras restritivas.
Por exemplo, há um beijo apaixonado entre
dois homens no melodrama mudo Wings
(1927) sobre a Primeira Guerra Mundial. Três anos depois em Marrocos (1930), Marlene Dietrich, com
smoking e cartola, beijou uma mulher enquanto cantava numa boate cuja audiência
incluía Gary Cooper.
O simbolismo do beijo no cinema atual
Com o avanço das técnicas cinematográficas, a
função do beijo como sugestão do ato sexual desapareceu. Como tudo no cinema,
até o coito pode ser simulado com atores não completamente nus em posições
estratégicas e um design de áudio adequado para sugerir o ato real.
Nos anos 1960-70 Hollywood torna-se
transgressora com a contracultura – um cinema marcado pelo realismo misturado
com desespero, cinismo e paranoia protagonizados por personagens sociopatas,
alienados, revoltados e esquizoides. Blow
Up, Perdidos na Noite, Descalços no Parque, Um Estranho no Ninho, Straw Dogs, O
Fantasma do Paraíso, O Poderoso Chefão, Taxi Driver já são filmes nos quais
o beijo, ao mesmo tempo em que se torna mais realista aproximando-se da
comunhão do Kama Sutra ou da desvirginização real de Nelson Rodrigues, assume
outros simbolismos subversivos.
Porém, a partir dos conservadores anos 1980
da era Reagan-Thatcher, o beijo novamente é semioticamente ocupado pela família
e sociedade: nos filmes de terror quem faz sexo é punido por Jason, Fred Krueger
etc. Apenas os castos, aqueles jovens que resistirem a todas as tentações,
beijam-se na boca para, depois, derrotar o monstro ou o serial killer.
Ao mesmo tempo, nos filmes-catástrofe, é o
momento em que, no meio do caos e do perigo, os heróis se beijam para tudo
parar diante dos casais que se reconciliam, pais separados que retornam, e para
ser selado tudo aquilo que reabilitará a família. Mesmo diante do Apocalipse.
Mesmo no filme pornográfico, o locus no qual se esperaria a redenção de
tudo aquilo que a sociedade rejeitou e controlou desde o Kama Sutra, o beijo
rende-se a performance e eficácia da ordem meritocrática: agora trata-se de
técnica, potência, desempenho, que perpetuará a matriz fálica ativo/passivo.
O beijo-performance. Para depois ser postado nas fotografias em redes
sociais: quantas pessoas você beijou nesse carnaval?
O que há para ler: NAZÁRIO, Luiz. Sexo: A Alienação do Desejo, São Paulo: Brasiliense, 1987; DANESI, Marcel. The History of the Kiss! The Birth of Popular Culture, Palgrave McMillan, 2013.
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