“O Diabo Mora Aqui” (2015), de Dante Vescio e
Rodrigo Gasparini, filia-se a uma nova safra de filmes de terror brasileiros
como “Quando Eu Era Vivo”, “Trabalhar Cansa” e “Mar Negro” – produções
nacionais que procuram uma terceira via entre a paródia e o “filme de arte”:
filmes com “cara de cinema” por seguirem as convenções do gênero, porém com uma
abordagem brasileira com folclore, religiosidade e lendas urbanas nacionais.
Filmes que revelam a essência do gênero do terror, principalmente o
“exploitation”: um atalho para o inconsciente coletivo de um país e de uma
cultura. No caso de “O Diabo Mora Aqui”, com a clássica narrativa de jovens em
uma fazenda num lugar remoto no interior de São Paulo que sem querer libertam o
Mal, revela como o Brasil supostamente moderno e globalizado ainda é assombrado
pelos fantasmas do seu inconsciente coletivo: o passado escravocrata que não
consegue ser redimido condenando-nos ao ciclo vicioso de ódio e autodestruição.
No cinema o gênero terror sempre foi uma espécie de atalho para o inconsciente seja da cultura, seja dos arquétipos da espécie humana. Lembre dos zumbis de George Romero no seminal A Noite dos Mortos Vivos (1968), uma incisiva crítica ao racismo no momento em que os EUA explodiam em conflitos raciais; O Massacre da Serra Elétrica simbolizando a “América Profunda”, o inconsciente cultural da intolerância dos red necks; ou todos os dramas edipianos (sexualidade e culpa) no terror exploitation (sub-gênero caracterizado por sexo, violência, muito sangue e bizarrices) nos filmes dos monstros Jason e Fred Krueger.
Enquanto isso no Brasil, o terror sempre teve
esse atalho negado primeiro por filmes que, voluntária ou involuntariamente,
faziam paródia do gênero como os de Zé do Caixão ou o chamado “terrir” de Ivan
Cardoso – A Maldição da Múmia ou As Sete Vampiras.
E segundo, o horror abordado como “filme de
arte” no qual o medo é abandonado em nome de um estilo como As Filhas do Fogo (1978) de Walter Hugo
Khouri.
Ou seja, um terror reprimido por camadas de
metalinguagens que não deixam vir à tona toda a força inconsciente do medo.
Em tempos recentes, isso parece estar mudando
no cinema brasileiro com produções que buscam uma, por assim dizer, terceira
via: fizer filmes “com cara de cinema” no qual as convenções do gênero que
estamos acostumados a ver nas produções estrangeiras são levadas a sério, porém
com um tratamento brasileiro – a abordagem de temas do folclore e lendas
urbanas nacionais.
O inconsciente da classe média
Filmes recentes como Trabalhar Cansa (clique aqui) ou Quando Eu Era Vivo (clique aqui), revelam o inconsciente da
classe média urbana brasileira – a religiosidade e lendas urbanas mescladas com
os problemas cotidianos. Ou ainda as
lendas urbanas e folclore explorados fora dos centros urbanos tematizadas por
Rodrigo Aragão em Mar Negro (2013) e A Noite do Chupacabras (2011).
Paradoxalmente, são filmes com as convenções
do terror exploitation hollywoodiano,
mas falam muito mais do inconsciente cultural brasileiro do que rolos e rolos
de filmes com paródias e estilizações que tentam emular o existencialismo
europeu.
O Diabo Mora Aqui (2015) é mais um bem
vindo filme dessa nova safra do terror nacional, dirigido por Dante Vescio e
Rodrigo Gasparini. Premiado pelo Festival FilmQuest nos EUA e selecionado em
festivais do cinema fantástico pelo mundo como o Sitges (Catalunha), o filme
arrancou ovação da plateia da 19a Mostra de Cinema de
Tiradentes, em 2016, nos seus assustadores minutos finais.
O filme pega um formato bem conhecido: a
narrativa do horror da cabana isolada em um lugar remoto na qual um grupo de
jovens irá involuntariamente libertar o Mal. Mas trata esse clichê
hollywoodiano através de uma ferida ainda não cicatrizada do inconsciente
nacional: o passado escravocrata.
Mais do que isso: como o Brasil jovem
pretensamente moderno e globalizado ainda é assombrado pelos fantasmas das
vítimas da escravidão. Eles ainda estão lá, presos nos porões e quartos bem
trancados do “Brasil profundo” à espera de que o ingênuo otimismo da
modernidade os liberte para assombrar o futuro.
O clichê hollywoodiano exploited é transposto para uma fazenda colonial do interior de São
Paulo, isolada no meio do nada. Quatro amigos vão passar o final de semana
naquele local, sem saber que no plano astral está sendo ainda travada uma luta
não do Bem contra o Mal, como seria nos padrões maniqueístas do cinema
comercial. Mas por uma guerra de vingança e destruição mútua entre um antigo
senhor de escravos, conhecido pelas atrocidades com os negros, e suas vítimas
que lhe impuseram uma terrível maldição no final da vida. Uma batalha sem fim
na qual espíritos vingativos, magia negra e vodu ameaçam arrastar o grupo de
jovens que considera tudo apenas mais uma lenda urbana.
O Filme
Uma das referências óbvias do filme é Ouija – Jogos dos Espíritos (2014).
Quatro jovens em uma fazenda isolada da era colonial se divertem assustando um
ao outro com as lendas que cercam aquele local. Tal como no jogo Ouija, decidem
descer no porão para invocar o espírito da antigo proprietário, conhecido como
Barão do Mel – Ivo Müller.
Lá estão as marcas da vingança que os
escravos impuseram ao Barão. Produtor de mel com dezenas de colmeias na
fazenda, aterrorizava física e mentalmente os escravos, gerando muitos filhos
ilegítimos com suas esposas e mães. Para o Barão, a sociedade seria como uma
colmeia: o senhor deve dominar a rainha para manter todas as abelhas obedientes
exercendo cada uma cegamente suas funções.
Farto de sentir medo, um escravo chamado
Luciano matou o Barão, enquanto a mãe matava o filho bastardo recém-nascido.
Seus espíritos estariam aprisionados naquele porão.
Os descendentes até hoje acreditam que devem
uma vez por ano impedir o renascimento daquela criança, que ressuscitaria o
Barão do Mel das paredes do porão,
martelando um enorme prego no lugar onde o bebê está enterrado.
Para aqueles jovens modernos e antenados,
tudo não passa de mais uma lenda do folclore e brincam com o ritual como fosse
um tabuleiro ouija. Mas descobrirão da pior maneira possível que aquele final
de semana coincide com a noite na qual os descendentes dos escravos terão que
renovar o ritual de maldição.
Mas o Barão do Mel, preso nas paredes, tem um
plano: manipular a mente da jovem psicologicamente problemática do grupo
(Alexandra – Mariana Cortines), convencendo-a de matar Sebastião (Pedro
Caetano) e Luciano (Felipe Frazão), os jovens descendentes dos escravos que
invadirão a casa da fazenda para renovar a maldição.
Crítica social
Embora O
Diabo Mora Aqui beba na fonte das convenções do terror exploited, a narrativa não cai no maniqueísmo da luta do Bem contra
o Mal. O grupo de jovens, o Barão do Mel e espíritos e descendentes dos
escravos transitam entre o niilismo, preconceito, vingança e autodestruição.
Não há heroísmo, lutas épicas ou libertação: há apenas um eterno retorno como
se aquela região vivesse um ciclo vicioso de dor e ódio.
Estamos no choque entre passado e futuro: um
grupo de jovens que representa o Brasil moderno e urbano – o jovem veste uma
camiseta com estampa do personagem Spock de Jornada
nas Estrelas, as referencias da cultura pop nas conversas, a jovem
Alexandra com atitude gótica e alternativa etc.
E no porão da casa grande da fazenda o
inconsciente de um País que não consegue se redimir das suas atrocidades do
passado.
A grande virtude do filme é a sua evidente
crítica social de um País que não consegue alcançar o futuro: os jovens
urbanos, supostamente filhos da modernidade, ecoam os mesmos preconceitos do
passado rural e escravocrata. Assustados, os jovens trancam as portas achando
que Luciano e Bento são assaltantes que querem roubar a fazenda.
Um passado que não consegue ser redimido,
simbolizado, tornado consciente e evocado em seus próprios termos. Os fantasmas
do passado apenas tratados ou pela negação (a escravidão acabou em algum lugar
no século XIX) ou pela paródia, ironia ou cinismo – falar em tom pós-modernoso
sobre “lendas urbanas” enquanto os “fornecedores” se encontram com o Brasil
urbano através de elevadores e entradas “de serviço”.
Em
tempos atuais de rebeliões e massacres em presídios, saques em shoppings de
centros urbanos e racismo e intolerância diariamente estampados nas high tech redes sociais, o título do
filme adquire um novo sentido: de fato, “O Diabo Mora Aqui”!
Ficha Técnica |
Título: O Diabo
Mora Aqui
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Ditetor: Rodrigo
Gasparini, Dante Vescio
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Roteiro: Guilherme Aranha, Rafael Baliú
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Elenco: Pedro
Caetano, Pedro Carvalho, Mariana Cortines, Clara Verdier, Ivo Müller, Sidney
Santiago
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Produção: Marluco Visão
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Distribuição: Pandora Filmes
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Ano: 2015
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País: Brasil
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