No começo esse humilde blogueiro achava que o
curta “Being Batman” (2016), de Ryan Freeman, fosse mais uma sátira sobre o
super-herói. Até perceber que o curta é um documentário com um personagem real
que vive na cidade de Brampton, em Ontário, Canadá. Um homem que acredita ser o
próprio Batman e que os acontecimentos trágicos da sua vida fizeram-no se
conectar sincronicamente ao personagem fictício de Bruce Wayne. Todas as noites
Stephen Lawrence sai da sua “batcaverna” a bordo de uma réplica do batmóvel do
filme de 1989 de Tim Burton para vigiar as ruas da cidade. No curta “Being
Batman” Lawrence dá depoimentos sobre a sua vida como Batman. Mostra sua casa
transformada em batcaverna, suas armas e a rotina noturna. Isso não é cosplay:
Lawrence diz ser o próprio Batman!
Era julho de 2015, estrada 401 em Napanee na
província de Ontário, Canadá. Caos no trânsito em um final de domingo quando
motoristas retornavam das suas casas de campo. A estrada ficou obstruída por
curiosos que observavam uma cena inusitada: Batman, o Cavaleiro das Trevas em
pessoa, com seu batmóvel estacionado no acostamento por problemas mecânicos.
Capô levantado, Batman pacientemente procurava o problema no motor.
O
Cavaleiro das Trevas era na verdade Stephen Lawrence (que prefere ser chamado
de “Batman de Brampton”). Ele estava voltando de um show de caridade em um
shopping de Kingston, Ontário, quando ouviu um ruído desconcertante em seu
batmóvel. Estacionou e saiu para averiguar qual era o problema, causando todo o
alvoroço.
Lawrence, 39 anos, faz mais do que um cosplay
de Batman. Ele vive o personagem 24 horas desde os 14 anos. Começou a praticar
ninjutsu e colecionar armas marciais. Até o pai morrer e passar por sérios
problemas familiares, aumentando ainda mais a identificação com o personagem
Bruce Wayne.
O curta documentário Being Batman (2016), de Ryan Freeman, oferece-nos um pequeno
vislumbre da vida de Stephen Lawrence – ele é o Bruce Wayne da vida real,
completo, com equipamentos e arsenal que varia qualquer cosplayer ficar verde
de inveja!
Com um visual impressionante (contando com
imagens de um drone e assistente de câmera), o curta acompanha os habituais
passeios noturnos pelas ruas da sua cidade e faz uma visita a sua “batcaverna”,
repleta de equipamentos, armas e pequenos gadgets como um bat relógio neon e
computadores com protetor de tela com a bat marca. E, claro, o painel do batmóvel.
Aliás, o bat veículo foi construído a partir
de um velho carro de polícia, um Chevrolet Caprice, com a carroçaria réplica do
filme de 1989 de Tim Burton, feita por Glenn McCullagh.
Sincronismos
Assim como as ruas escuras pelas quais Batman
cruza todas as noites, há também uma escuridão dentro de Stephen Lawrence: no
curta ele faz reflexões sobre os “sincronismos” entre a sua vida e a de Bruce
Wayne – as perdas do seu pai e da sua família e a necessidade de usar a roupas
de Batman e armas marciais como uma forma de defesa do self diante da
sociedade.
No curta, Lawrence argumenta que todos nós
mobilizamos defesas internas para enfrentar os problemas do dia-a-dia. Chamamos
essas defesas de “personalidade”. Portanto, ele nada mais faz do que expor para
todos essas defesas através da roupa de Batman.
Lawrence deixa claro que sabe distinguir
entre a realidade e a ficção: para ele, a realidade foi o histórico pessoal de
perdas que o conectou com a ficção de Bruce Wayne. “Isso não é uma aula de
atuação, não é apenas um personagem, é realmente quem eu sou!”, afirma
Lawrence.
A voice-over
de Lawrence dirige toda a narrativa, tornando o curta impactante e emocionante
para assistir.
Para o diretor Ryan Freeman, “Stephen vive
uma vida única e as pessoas rapidamente o julgam como estranho. Ele me disse
que 50% das pessoas o consideram louco e a outra metade o acham incrível.
Através desse filme, a minha esperança é que o público se conecte com a
história de Stephen e todos nós possamos entender um pouco mais um do outro”.
Mas o Batman de Brampton sai todas as noites
pela cidade espancando e prendendo criminosos? Bem, estamos no Canadá, e o
máximo que Batman faz é encaminhar bêbados para suas casas e ajudar a trocar pneus de carros de motoristas femininas. A polícia local o
tolera e permite que ele faça suas rondas noturnas.
Uma fábula real
A questão do curta é: em um mundo que ama
seus super-heróis, o que acontece quando um homem assume completamente um
desses personagens fictícios? O curta de Freeman não toma partido do debate.
Apenas procura um olhar mais interior da rotina dessa lenda urbana canadense.
Mitos e heróis são tão velhos quanto a
própria humanidade. Porém, esses personagens sempre viveram em um panteão
mítico, divino, religioso ou sagrado, distante da vida real dos mortais. Suas
narrativas lendárias sempre serviram para inspirar religiões, filosofias ou até
mesmo teorias científicas. Isto é, serviam muito mais como modelos éticos,
morais ou mesmo cósmicos para dar sentido às nossas ações na sociedade, às
nossas realizações públicas – algo como ter filhos, escrever um livro e plantar
uma árvore.
O Batman de Brampton é uma fábula real, o
paroxismo das nossas relações com os mitos da cultura pop. Parece que cada vez
mais estamos desistindo das nossas vidas e da sociedade para queremos ser os
próprios arquétipos. Os mitos que sempre ajudaram a humanidade a fazer a
História, estão deixando de nos inspirar para se transformarem em rota de fuga
da nossa própria história.
Stephen Lawrence fala que viver o personagem
fictício Batman lhe traz uma inesperada liberdade. É uma afirmação sintomática:
as suas jornadas noturnas pelas ruas de Brampton é um benefício social ou
apenas para o próprio self? Em nome da vigilância da Lei e da Ordem, o Batman
de Brampton busca apenas expiar a escuridão interior em rondas noturnas?
A mesma pergunta poderia ser aplicada ao
Batman ficcional. Afinal, por que ao invés de colocar a bat roupa para espancar
criminosos, Bruce Wayne não usa sua fortuna para financiar cuidados com a saúde
e combater a pobreza em Gotham?
Sociólogos como Richard Sennett já
denominaram esse fenômeno como um sintoma do declínio da vida pública. O
declínio da sociabilidade e da vida pública fariam surgir aquilo que Sennett
chamava de “ascetismo mundano”, cujas origens estariam, paradoxalmente, no
protestantismo – para alcançarmos a salvação não basta apenas ter fé e uma vida
estoica e asséptica. É necessário demonstrá-la, performar para os outros e para
Deus sua fé. Como uma espécie de testemunho público da sua fé privada.
Assim como faz diariamente o Batman de
Brampton. E assim como histericamente fazem evangélicos e neo-pentecostais
bradando sua fé para os outros.
É nesse momento que os limites entre a
realidade e a ficção, verdade e mentira começam desaparecer e o simulacro
substitui a própria realidade. Na busca da liberdade na ficção, podemos no meio
do caminho esquecermos quem realmente fomos um dia. Ou será que é exatamente
isso que procuramos, assim como o Batman de Brampton?
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