quinta-feira, fevereiro 02, 2017

Realidade é esquecimento consensual no filme "Os Esquecidos"


Desculpe, caro leitor, o trocadilho involuntário mas o filme “Os Esquecidos” (The Forgotten, 2004) acabou sendo esquecido pela crítica e público. E com razão! Foi um filme que explorou elementos clássicos do gnosticismo pop hollywoodiano. Mas naquele momento, a safra de filmes gnósticos revelava filmes muito mais memoráveis como as sequências de “Matrix”, “A Passagem”, “Vanilla Sky” ou “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças”. O filme conta com um argumento poderoso (a mãe que lembra do filho morto em um acidente, mas todos ao redor insistem em dizer que a criança jamais existiu), mas o roteiro é inverossímil sem conseguir definir o tom narrativo – alguma coisa entre sci fi, mistério e thriller policial. Apesar disso, “Os Esquecidos” é uma filme didático: mostra como os temas do esquecimento, paranoia e conspirações são articulados dentro de uma narrativa gnóstica. Ecoando filmes clássicos como “Dark City” e “Amnésia” de Christopher Nolan, mostra que a chamada “realidade” pode ser o produto de um esquecimento consensual.

Os Esquecidos (The Forgotten, 2004) é um filme peculiar. Primeiro, porque é um daqueles filmes difíceis de serem resenhados sem incorrer a spoilers.

Segundo, os spoilers talvez não prejudicam a experiência de assistir ao filme: Os Esquecidos  possui uma narrativa tão ruim que exige demais do espectador a suspensão da incredulidade. Saber o que vem depois de um suspense tão mal contado certamente ajuda o espectador a acompanhar a estória – pelo menos para aqueles que adoram narrativas sobre abduções alienígenas.

Então, o que este filme está fazendo aqui no Cinegnose? Além de ser o típico filme que só consegue ser salvo pelo elenco (Juliane Moore e Dominic West dão a credibilidade que faltou ao roteiro), Os Esquecidos é uma oportunidade didática para conhecer os principais elementos que compõem a especificidade do filme gnóstico em relações aos outros filmes de mistério, thriller, drama ou suspense.

O filme até explora uma ideia poderosa e icônica: a mãe que lembra do filho morto em um acidente, mas todos ao redor insistem em dizer que a criança jamais existiu. Só nessa breve sinopse já estão embutidos alguns principais elementos do filme gnóstico: esquecimento, conspiração e paranoia. A realidade que nos rodeia foi criada a partir de uma espécie de esquecimento consensual. É o que nos permitiria viver nesse mundo com uma consciência feliz e alienada. Porém, alguns conseguem reter fragmentos dessa memória apagada, tornando-se pessoas dissonantes. O destino delas será a conspiração e a paranoia.

Embora o diretor Joseph Rubin tivesse em mãos um poderoso argumento ao estilo da velha série Além da Imaginação, o roteiro ficou inverossímil com um amontoado de agentes repressores (o psicólogo, agentes federais e policiais municipais) que olham os heróis correndo de um lado para o outro enquanto, de repente, pessoas são sugadas para o céu e o telhado vai pelos ares.


O tom incerto da narrativa (atmosfera de mistério, thriller policial, sci fi, drama familiar, tudo costurado com sequências inverossímeis) comprometeu uma excelente ideia.

Porém, O Esquecidos é um excelente filme didático para aqueles que estudam o gnosticismo pop em Hollywood. E como encontramos nesse filme ecos de excelentes produções gnósticas da época como Cidade das Sombras (Dark City, 1998) e Amnésia (Memento, 2000).

O Filme - aviso de spiolers à frente


Telly (Julianne Moore) está de luto pela perda do filho de 9 anos, Sam, em um acidente aéreo, há pouco mais de uma ano. Ela está obcecada pela memória do filho: visita diariamente seu quarto, olha fotografias e assiste a vídeos enquanto fragmentos de memórias povoam sua mente. Seu marido, Jim (Anthony Edwards), parece ter superado a tragédia e pacientemente tenta ajudar Telly a superar o trauma, junto com o seu psiquiatra, Dr. Munce (Gary Sinise).

Porém, de repente algo estranho acontece: os vídeos com Sam desapareceram, as fotos parecem que foram alteradas e o seu filho desapareceu delas. Jim e Dr. Munce passam a tentar convencê-la que esse filho é imaginário, consequência do trauma de um aborto. Telly estaria supostamente criando falsas memórias de um bebê perdido.

A única pessoa que parece acreditar em Telly é o seu vizinho alcoólatra Ash (Dominic West) que também teve o filho morto nesse mesmo acidente aéreo. Claro que Telly teve que fazer muito esforço para que Ash recuperasse as memórias do seu próprio filho e se juntasse a ela na luta para denunciar alguma estranha conspiração.


A partir do momento em que Telly e Ash levam o caso à polícia local, entram em cena agentes federais da Agência de Segurança Nacional (NSA) na sua forma cinematográfica mais estereotipada: pessoas com sobretudos, em carros escuros sem identificação, levando pessoas sob custodia enquanto dizem que não têm liberdade para “discutir o assunto”.

Enquanto isso, a polícia local, liderada pela investigadora Anne Pope (Alfre Woodard), nada mais faz do que chegar nas cenas de crimes e coçar a cabeça enquanto tenta em vão dar sentido a tudo.

Mas das sombras emerge uma figura desconhecida (Linus Roache) com feições imóveis que parece se interessar por Telly e Nash, observando-os atento, com um olhar fixo e sinistro.

O que parecia um thriller policial muda de figura, principalmente quando um dos agentes da NSA começa a revelar para Telly e Ash o segredo por trás do desaparecimento das crianças naquele voo – ele é violentamente sugado para o céu, junto com o telhado, numa cena bizarra e inesperada. Na verdade uma cena que cheira a um “Deus Ex Machina” – expressão aplicada para roteiro mal conduzido no qual uma sequência-chave exige uma solução arbitrária e inverossímil para a dar continuidade à narrativa.

Realidade é esquecimento consensual


A narrativa simplista e arbitrária de Os Esquecidos deixa mais esquemático os clássicos elementos do filme gnóstico. Apesar de tudo, um filme excelente para estudiosos desse gênero de filme.

Aproximando do final, principalmente depois da bizarra cena “Deus Ex Machina”, descubramos que há alguma experiência de abduções alienígenas em andamento. E o que é pior: os agentes federais nada mais fazem do que dar cobertura para essas experiências extraterrestres.

A virtude do filme é não cair no célebre clichê em associar abduções com experiências genéticas aliens com seres humanos. Os propósitos são mais “espirituais”: o misterioso alien que observa tudo das sombras quer estudar a especificidade do vínculo entre mães e filhos terrestres. Eles até conseguiram quantificar esse vínculo. Mas sabem que há algo mais qualitativo ou espiritual.

Temos aqui ecos do filme Cidade das Sombras no qual seres humanos são confinados em uma cidade cenográfica para que os aliens estudem a alma humana.


Também Os Esquecidos se filiam a mudança dos filmes gnósticos no século XXI: dos filmes CosmoGnósticos como o Cidade das Sombras (a ilusão do mundo é criada tecnologicamente pela realidade virtual, como em Matrix – ilusão consensual), passamos para os PsicoGnósticos – a ilusão da realidade criada pelos traumas do psiquismo.

Os Esquecidos sugere que a realidade não passaria de uma espécie de “esquecimento consensual”. Demiurgos (sejam aliens, Estados totalitários, corporações etc.) nos impõe o esquecimento, a base da consciência feliz.

Mas algumas pessoas ainda conseguem reter fragmentos dessas memórias deletadas, criando o mal estar e, por fim, a paranoia – ao lado da melancolia e do estranhamento (a sensação de ser estrangeiro em ambientes familiares), a paranoia é um dos estados alterados de consciência que possibilitariam o despertar do sono do esquecimento.



Ficha Técnica

Título: Os Esquecidos
Criador: Joseph Ruben
Roteiro:  Gerald Di Pego
Elenco:  Julianne Moore, Dominic West, Christopher Kovaleski, Anthony Edwards, Gary Sinise
Produção: Revolution Studios, Jinks/Cohen Company
Distribuição: Sony Pictures Entertainment
Ano: 2004
País: EUA

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