segunda-feira, outubro 16, 2017

Curta da Semana: "The Disappearance of Willie Bingham" - quando a justiça é privatizada


A atual agenda internacional das privatizações toma conta da grande mídia e do discurso de políticos e economistas. Preocupado com o alcance e consequências dessa panaceia que toma da opinião pública, o diretor australiano Matt Richards imaginou um futuro próximo no qual as privatizações alcançariam o sistemas judiciário, prisional e o próprio Estado de Direito. Resultado: o Direito e a Justiça viram commodities. E os limites entre a civilização e a barbárie começam a desaparecer. Combinando sci-fi, horror e humor negro, o curta “The Disappearance of Willie Bingham” (2015) mostra num futuro próximo na Austrália a “Amputação Progressiva”, nova forma de punição criada por um sistema judiciário privatizado que substitui a pena de morte, no qual a concessionária busca formas socialmente “sustentáveis” de punição: traga lucro para a empresa gestora, sirva de exemplos para “escolas problemáticas” e satisfaça o impulso de vingança das vítimas.

A constituição do Estado de Direito e de uma esfera pública na qual cidadãos se comportam como corpo público sob as regras de uma comunidade de interesses públicos que se sobrepõem aos privados (pessoais, de classe, corporação etc.) foi um dois principais passos civilizatórios para a sociabilidade.

E ao lado disso, também o papel civilizatório da ética judaico-cristã no ordenamento jurídico do Estado moderno democrático e dos princípios humanistas do Direito – no lugar do “olho por olho, dente por dente” da antiga Lei do Talião, os princípios da dignidade humana: empatia, compaixão, amor, justiça, perdão etc.

Sem tudo isso, a humanidade correria o risco de retroceder à barbárie, tornando a pacificação social um objetivo impossível de ser alcançado.

Porém, na atualidade o que vem se imponto é a agenda das privatizações na defesa da necessidade do chamado Estado mínimo, colocando em risco a existência de uma esfera pública de interesses – o interesse público administrado por interesses privados (sejam corporativos, ONGS, fundações etc.) que se travestem como públicos através de uma imagem construída pela mídia, publicidade e relações públicas.


As consequências do avanço dos interesses privados sobre a comunidade pública de interesses já foi tema de diversos filmes hipo-utópicos (subgênero sci fi no qual o futuro é figurado a partir da projeção das mazelas do presente): Robocop, Distrito 9, Metropia, a série brasileira 3%, Black Mirror etc.

  Mas nada como o curta australiano The Disappearance of Willie Bingham (2015) do cineasta Matt Richards, com uma incomoda combinação de horror com sátira política – misteriosamente fantástico, tragicômico, mas profundamente enraizado nas tendências da realidade atual.

Inspirado num pequeno conto chamado The Wilbur Bledsoe Amputations de Michael Fawcett, Richards mostra a ruína gradual de muitas liberdades civis sob a aparência de segurança e proteção num mundo onde as pessoas abandonaram o senso de compaixão e justiça. Tudo sob o beneplácito da privatização do próprio sistema judiciário que abre as portas para a barbárie – afinal, o cidadão, agora transformado em cliente, tem sempre razão.

O Curta


Em um futuro próximo, o sistema judiciário e prisional australianos foram privatizados. Em consequência, os limites entre o Direito e a vingança foram dispensados ao ponto que, aqueles que se sentirem lesados, feridos ou que perderam de forma criminoso um membro da família, poderão ser tão cruéis quanto o próprio criminoso.


Willie Bingham (Kevin Dee) encontra-se condenado por assassinato e preso no sistema prisional que oferece uma radical alternativa em substituição à pena de morte. Chama-se “Amputação Progressiva” no qual o marido da esposa assassinada instrui os médicos a sequência das partes do corpo que serão cirurgicamente amputadas no condenado como penitência física do seu crime.

Um supervisor (interpretado por Gregory Fryer) é nomeado para garantir que Willie permaneça vivo e saudável por toda a sua trajetória do “tratamento”.

Até porque além das partes amputadas e órgãos do condenada serem comercializados pela empresa que gerencia o sistema, Willie também é levado para escolas com crianças problemáticas para ser exibido como um exemplo que desmotive outros crimes no futuro – o que, como mostrado no curta, parece não ter o menor impacto sobre jovens de escolas públicas caindo aos pedaços.

Enquanto os cirurgiões amputam cada parte do corpo de Willie, o marido da esposa assassinada observa através de parede envidraçada para não só se certificar da execução da amputação, mas também para sentir o prazer da vingança.


Willie aos poucos torna-se uma sombra silenciosa de si mesmo, na medida em que cada parte dos membros é retirada, para depois partir para órgãos e até partes do próprio rosto. Até tornar-se uma massa de carne desfigurada, ainda viva, em silêncio esperando o final de cada mês no qual será levado num tour em escolas para ser exibido como caso exemplar.

Enquanto isso, acompanhamos paralelo a própria decadência do marido da vítima que comanda a “amputação progressiva”: a cada sessão, crescem as olheiras, os olhos ficam mais fundos, a barba cresce e o abatimento toma o semblante – as repetidas sessões de vingança envenenam o psiquismo.

Hipo-utopia e a Justiça socialmente “sustentável”


A via crucis de Willie Bingham nos faz não apenas refletir sobre os limites dos dispositivos de segurança do Estado que supostamente são usados para nos proteger. Mas também como a racionalmente cínica lógica gerencial corporativa (o futuro que nos espera com atual agenda selvagem de privatizações do Estado e dos interesses públicos) pode invadir a área que tenta garantir os limites entre a sociabilidade e a barbárie: o Estado de Direito.

Se a pena de morte é ineficaz (paradoxalmente a criminalidade aumenta nos países que adotam pena de morte, segundo dados da ONG Penal Reform International – clique aqui.), então a criminalidade, a condenação e a pena precisam, pelo menos, tornarem-se socialmente “sustentáveis”: fonte de lucro para a empresa gestora “concessionária”, apresentar uma face pública politicamente correta de “exemplo” para a comunidade e uma vítima-cliente satisfeita ao ver atendido seu impulso mais básico de vingança.

 De resto, é o atual mecanismo de funcionamento da sociedade de consumo: atender aos nossos vícios, compulsões e pulsões mais inconscientes e instintivas, transformando-se em iscas para “fidelização” a produtos e serviços.


Portanto, o curta australiano é um grande exemplo daquilo que chamamos de filme “hipo-utópico” – distinto dos outros subgêneros como a utopia e a distopia – sobre essas distinções leia o artigo científico desse humilde blogueiro - clique aqui.

São filmes sci-fi onde a alta tecnologia (no curta, substituído pelo horror) convive com todas as mazelas da sociedade atual, porém exageradas pela estética expressionista e surrealista – favelas e cortiços, deterioração urbana, precarização do trabalho, lixo que se confunde com seres humanos que necessitam ser controlados, confinados ou descartados. Principalmente a figura do imigrante, do refugiado e do estrangeiro. No curta, o condenado.

Em The Disappearance of Willie Bingham, uma projeção no futuro da atual apologia pela privatização dos serviços públicos. Até o momento em que transforme a Justiça e o Direito em commoditie.

Assista ao curta abaixo. Legendas disponíveis em inglês, francês e espanhol.




Ficha Técnica

Título: The Disapparence of Willie Bingham (curta)
Diretor: Matt Richards
Roteiro: Matt Richards baseado em conto de Michael Fawcett
Elenco:  Kevin Dee, Gregory Fryer, Raymond Thomas, Albert Goikhman
Produção: Four Anchor Island
Distribuição: Vimeo
Ano: 2015
País: Austrália

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