segunda-feira, janeiro 30, 2017

I Ching, Cinema e mundos quânticos na série "The Man in The High Castle"


Qual a relação entre o milenar livro-oráculo "I Ching", o Cinema no século XX e a hipótese dos Múltiplos Mundos da Física Quântica? A busca dessas conexões é o desafio para o espectador que assiste à série da Amazon Studios “The Man In The High Castle” (2015 - ) livremente inspirado no livro do escritor sci-fi gnóstico Philip K. Dick de 1962. Um mundo invertido no qual os países do Eixo (Alemanha, Japão e Itália)  ganharam a Segunda Guerra Mundial e os EUA, destruídos pela Grande Depressão, foram conquistados pelo Reich e o Império do rei Hirohito. Porém, a posse de estranhos rolos de filmes de procedência misteriosa passa a ser politicamente importante tanto para Resistência como para Hitler: neles, outros mundos são revelados. Tal como no I Ching, devemos encontrar o imutável em mundos fugazes e em constante mutação. Mas pode tornar-se uma arma política: o controle do Tempo, passado e futuro de toda a humanidade.

Todos historiadores sabem que Hitler era obcecado pelo cinema. Muitos até especulam que a sua performance cênica em comícios tinha um quê de Chaplin e dos galãs canastrões dos filmes da época. Portanto, sua obsessão pelos filmes seria muito mais do que ver neles uma ferramenta de propaganda ou diletantismo estético.

Mas, e se Hitler tivesse um interesse pela arte cinematográfica muito mais específico e secreto? Não apenas como mera estratégia de propaganda,  mas o interesse por certos tipos de filmes que apresentassem futuros alternativos os quais deveria evitar, ajudando a formar o sonhado Reich de mil anos sobre a Terra.

Livremente inspirado no livro do escritor gnóstico sci fi Philip K. Dick, a série da Amazon Studio The Man in The High Castle (2015-) mescla o aspecto fundamental da obra de K. Dick (o que entendemos por “realidade” como um contínuo de muitos mundos que se interpenetram) com muitos aspectos da chamada “parapolítica” – o Poder pensado muito além do campo tradicional da economia e política, mas também por motivações esotéricas e ocultistas.  

No livro homônimo de 1962, K. Dick mostrava uma História alternativa do pós-guerra pela lente da distopia, do romance e da ficção-científica. A estória se desenrolava nos Estados Unidos de 1962: quinze anos depois das potencias do eixo (Alemanha, Itália e Japão)  terem derrotados os Aliados na Segunda Guerra Mundial, os EUA foram divididos – da Costa Oeste até as Montanhas Rochosas ficou sob domínio japonês; e a Costa Leste sob o domínio do Império Nazista. E no Meio Oeste e Sudoeste, a chamada Zona Neutra sob forte tensão entre forças nazistas e do império japonês.


Um estranho mundo invertido


A realidade descrita por K. Dick parece um estranho mundo invertido. Os EUA não conseguiram superar a Grande Depressão dos anos 1920, tornando-se isolacionista e evitando envolver-se com a Segunda Guerra Mundial. O começo do fim foi a derrota naval para o Japão em Pearl Harbor e a explosão nuclear sobre Washington.

No livro, Hitler fica incapacitado pela sífilis e o novo chanceler nazista prossegue com o Império Colonial Nazi, massacrando as raças consideradas inferiores – massacram judeus em todo o mundo e comete genocídio maciço na África.

Nesse cenário conturbado surge um livro considerado proibido, cujo autor é o “Homem do Castelo Alto”, mostrando um futuro alternativo sobre como seria a História conforme a conhecemos – o Dia D, a derrota do Eixo e a vitória dos Aliados. O I Ching, o milenar oráculo chinês, tem papel fundamental na vida das pessoas e até mesmo na narrativa desse livro proibido. Uma verdadeira “ficção” dentro de outra obra de ficção.

Se no romance original o pivô é um livro que conta como seria a História se Hitler tivesse perdido, na série criada por Frank Spotnitz o Homem do Castelo Alto coleta estranhos rolos de filmes que são entregues por membros da Resistência. Ocasionalmente, agentes e espiões da SS conseguem roubar esses filmes para entrega-los diretamente a Hitler, em Berlim.

A natureza desses filmes e o motivo pelo qual Hitler e o Homem do Castelo Alto têm não só interesse por eles, mas também  o porquê de mantê-los em segredo do público é o mistério por trás das, até aqui, duas temporadas. Membros da Resistência são aconselhados a não assistirem o conteúdo dos rolos de filmes, mas apenas passarem para frente, escondendo-os dos nazistas até chegarem ao Homem do Castelo Alto.


A série altera o conteúdo do livro de K. Dick de três formas cruciais: o livro é substituído por rolos de filmes de natureza misteriosa coletados tanto por Hitler como pelo Homem do Castelo Alto; na série Hitler ainda continua vivo, porém com a saúde abalada pela idade; e, principalmente, a aproximação entre I Ching, Cinema e a existência de mundos alternativos capazes de interagirem mutuamente.

A Série


 Juliana Crain (Alexa Davalos) mora em São Francisco e acaba se envolvendo com a Resistência ao tentar descobrir o destino de sua meia-irmã Trudy, desaparecida logo depois de dar a Juliana um  carretel de um filme intitulado “O Gafanhoto Torna-se Pesado” que retrata a história alternativa em estilo documental mostrando um mundo no qual os Aliados ganharam a guerra.

Esse rolo pertence a uma série de filmes coletados por alguém conhecido como “O Homem do Castelo Alto”. Juliana acredita que essas fitas retratam uma realidade alternativa que esconde uma verdade maior sobre como o nosso mundo deveria ser.

Juliana deverá levar o filme para um contato da Resistência na Zona Neutra. Lá conhecerá Joe Blake, um agente duplo sob o comando do Obergruppenführer da SS John Smith – Rufus Sewell. Sua missão é roubar esse filme para a SS entregar a Hitler, além de delatar nomes-chave da Resistência.


Paralelo a isso, desenrola uma conspiração envolvendo traição e espionagem entre o Império Japonês e Nazista: Nobusuke Tagomi (Joel De La Fuente), Ministro do Comércio japonês em São Francisco, se encontra em segredo com Rudolph Wegener (Carsten Norgaard), oficial nazista sob o disfarce de um empresário em um encontro supostamente comercial. Ambos estão preocupados com o vácuo de poder depois da morte de Hitler e o ataque nazista contra o império japonês que viria imediatamente – os nazistas tecnologicamente estão muito à frente dos japoneses. Enquanto a aviação comercial alemã é feita por imponentes aviões à jato parecidos com Concordes e a conquista espacial já tenha alcançado a Lua e Marte, os japoneses ainda se deslocam em navios e aviões convencionais.

Wegener que passar secretamente o know how da bomba nuclear para os japonês. O plano é equilibrar militarmente as duas potencias, criando uma espécie de Guerra Fria que impeça a deflagração de um conflito bélico.

A partir daí a série enreda-se em uma sequência de conspirações na disputa de poder no interior do comando do Reich, os planos japoneses em secretamente criar uma bomba nuclear ainda mais potente e destruir Nova York, o atentado ao príncipe herdeiro em São Francisco e a suspeita da SS estar por trás, a triste constatação de a Resistência ser ainda mais cruel do que os próprios nazistas, a tentativa de transformar a morte natural de Hitler em um atentado japonês como pretexto para deflagrar o ataque nuclear final contra o império japonês etc.


Muitos Mundos quânticos – aviso de spoilers à frente


“O Gafanhoto Torna-se Pesado”, título do misterioso rolo de filme, é uma alusão ao capítulo 12 do livro bíblico do Eclesiastes sobre a fugacidade da vida e a chegada à velhice quando as coisas pequenas podem se transformar em grandes fardos. A própria existência desses filmes representa a fugacidade do que compreendemos como realidade – a possível existência de muitos mundos alternativos que se abrem como bifurcações a cada momento-chave histórico ou pessoal.

A marca registrada da obra de K. Dick é certamente influência da chamada Interpretação dos Muitos Mundos (MWI em inglês), interpretação da mecânica quântica feita em 1957 por Hugh Everett – múltiplos mundos estariam nascendo a cada momento em múltiplas ramificações a cada escolha, incorrendo na chamada “decoerência quântica”. A questão é: a MWI permitiria a hipótese que esses mundos possam interagir ou que sinais possam ser trocados entre os mundos? No âmbito da Física Quântica há uma discussão em torno da hipótese dos Mundos em Choque (MC) – clique aqui.

Em The Man In The High Castle essa possibilidade é o ponto chave do controle político em jogo. Cinema é propaganda (a principal ferramenta usada pelos nazis na História). Mas é apenas uma narrativa construída para as massas aderirem ao Estado. Porém, de onde vem o Poder real?


I Ching e o Tempo


Na obra de K. Dick essa resposta é clara: no controle do Tempo e da Teleologia – a imposição de metas, fins e objetivos últimos para a Natureza e a humanidade. Todo poder, seja religioso ou estatal, tem que criar tanto uma Cosmogonia quanto uma Escatologia – mitos sobre de onde viemos e para onde iremos, a Origem e o Fim de tudo: seja o Paraíso (o Catolicismo), o Apocalipse (os Neopentecostais), a sociedade sem classes (o Comunismo) ou o fim da História no mercado (o Capitalismo).  

Não é à toa que a sede do Reich em Berlim é apresentado como uma espécie de gigantesco Vaticano, cuja imensa cúpula abriga um colossal espaço para milhares de pessoas assistirem aos discursos do Führer.
Os filmes de origem misteriosa são coletados tanto por Hitler como pelo “Homem do Castelo Alto” com um objetivo que fica bem claro ao longo das duas temporadas: estudar as informações dos diversos mundos alternativos, estudando as causas e os efeitos possíveis nas tomadas de decisão.

Além dos filmes, o I Ching é outro canal de contato aos mundos desse multiverso imaginado por K. Dick. Além de fonte de sabedoria com seus aforismos, o milenar livro chinês é também um oráculo que busca a ordem em um mundo em constante mutação. Vemos na série o ministro do Comércio japonês fazendo consultas ao I Ching por meio do jogo das 50 varetas para obter respostas.

O problema do I Ching é formular a pergunta correta. Essa aproximação inicial exige meditação prévia. O que fará, em uma dessas profundas meditações, o ministro Tagomi ser acidentalmente transportado para o mundo alternativo no qual os japoneses foram derrotados.


No mundo apresentado pela série onde realidade e ficção se misturam também não é à toa que os japoneses são obcecados pela busca da “historicidade”, pela busca da essência da verdade – muitos são clientes da loja “American Artistic Handcrafts” do personagem Robert Childan (Brennan Brown) em São Francisco: loja de relíquias da história americana que promete peças autênticas “com historicidade”. Na verdade muitas delas são fakes e produzidas pelo marido de Juliana (Frank Frink, membro da Resistência) cujo dinheiro será entregue à máfia Yakuza.

Sophia em um mundo sem mocinhos e bandidos


Outra grande virtude da série é a impossibilidade para o espectador distinguir mocinhos e bandidos. A Resistência cada vez mais demonstra ser tão cruel quanto os nazis e mesmo o mais sanguinário dos oficiais da SS, John Smith, é um marido dedicado aos filhos e à família.

Aqui entra o recorrente tema da obra de K. Dick: a protagonista feminina encarnando o mítico personagem de Sophia – o aeon que busca o melhor na natureza humana para despertar a luz espiritual esquecida em cada um de nós para nos reconectarmos à Plenitude perdida.


Juliana será o ponto constante em um mundo em mutação, como o I Ching. Ela reconhece a humanidade em cada um dos lados, procurando a verdade por trás do jogo de sombras da política. Por isso, a certa altura, passa a ser perseguida tanto pela Resistência como pelos nazistas e a polícia secreta japonesa, a Kempeitai.

Já no final, o próprio Homem do Castelo Alto reconhecerá em Juliana a constante, sempre presente nos diversos rolos de filmes em múltiplos personagens nos diferentes mundos alternativos. Como uma autêntica narrativa gnóstica, Juliana é a chave, o elemento constante em inúmeras variáveis. O ponto imutável buscada na série tanto pelo I Ching como nos filmes que revelam a fugacidade desse multiverso.  

Por isso, The Man In The High Castle se assemelha a uma casa de espelhos  dentro da qual vemos apenas imagens que se refletem e se invertem, sem conseguirmos distinguir o reflexo daquilo que foi refletido.

Seria o Universo uma realidade dentro de outra realidade alternativa e assim por diante? Uma ficção dentro de outra ficção? Será que a realidade que conhecemos nos livros de História e filmes documentários que vemos na TV e no Cinema não passam de estratégias para esconder uma estranha realidade? Estratégias políticas e religiosas de controle do Tempo e da Cosmogonia? Controle do passado e do futuro?


Ficha Técnica

Título: The Man In The High Castle
Criador: Frank Spotnitz
Roteiro:  Frank Spotnitz baseado em livro de Philip K. Dick
Elenco:  Alexa Davalos, Rupert Evans, Luke Kleitank, Joel de la Fuente, Rufus Sewell
Produção: Amazon Studios, Big Light Productions
Distribuição: Amazon Prime Video
Ano: 2015 -
País: EUA

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