sexta-feira, janeiro 20, 2017

Um fim do mundo gnóstico e budista em "O Livro do Apocalipse"


Os filmes-catástrofes hollywoodianos sempre tiveram um papel bem freudiano: criar o objeto fóbico de medo para oferecer um bode expiatório capaz de espiar o mal estar da sociedade. Para quê? Para manter as pessoas na linha esquecendo dos seus problemas de obediência e disciplina com as obrigações que a sociedade cobra. Como fazer uma releitura dos clichês hollywoodianos desse subgênero? O filme sul-coreano “O Livro do Apocalipse” (“In-yu-myeol-mang-bo-go-seo, 2012) nos oferece uma surpreendente abordagem alternativa de zumbis, ameaça de robôs e meteoros que caem na Terra, temas tradicionais dos filmes apocalípticos ocidentais. Humor negro, “non sense”, Budismo e Gnosticismo se combinam em três contos onde o objeto fóbico é invertido: zumbis, robôs e alienígenas transformam-se em oportunidades para as pessoas repensarem a si mesmas e a sociedade.

A partir do clássico O Planeta dos Macacos (1968), o cinema Ocidental se esmerou com muito mais frequência em oferecer especulações sobre o fim do mundo e distopias apocalípticas: catástrofe nuclear, praga zumbi, distopias robóticas, invasões aliens, meteoros caindo na Terra, entre outras inumeráveis alternativas para exterminar a raça humana.

Em postagem anterior observávamos que os filmes-catástrofes hollywoodianos  têm uma característica fóbica: a criação do medo coletivo por qualquer aspiração de mudança. Como Freud observava, todo objeto fóbico foi no passado uma fonte de prazer. A culpa o transformaria em objeto de medo e ameaça.

Por isso, o filme-catástrofe oferece a possibilidade de “naturalizar” as crises: monstros, aliens, zumbis, robôs e cataclismos cósmicos viram bode expiatório para espiar o mal estar da sociedade. Por isso, em todo o filme-catástrofe é ao mesmo tempo um julgamento moral (quem morrerá e quem sobreviverá?) e a oportunidades de famílias ou pais separados reconquistarem afetos mútuos.

Mas do que renovação em um subgênero tão saturado, o filme sul-coreano O Livro do Apocalipse (In-yu-myeol-mang-bo-go-seo, 2012) é um comentário satírico com humor negro e algumas doses de séria reflexão filosófica e até mesmo gnóstica.

Os diretores Yim Pil-sung e Kim Jee-woon  ao mesmo tempo satirizam e fazem uma reflexão desse verdadeiro cerne ideológico dos filmes-catástrofes no Ocidente: moralismo e manutenção da ordem familiar e social mediante busca de inimigos que pretendem nos exterminar.


O Livro do Apocalipse é uma antologia de três variações distintas sobre o tema apocalipse: a praga zumbi; os robôs e a ameaça da Inteligência Artificial; a colisão de um gigantesco meteoro com a Terra. São três temas-clichê dos filmes-catástrofe ocidentais, mas com uma surpreendente releitura que subverte a ideologia ocidental: a manutenção da ordem dos papéis sociais através do mesmo fóbico.

A dupla de diretores sul-coreanos oferece inesperadas variações subversivas sobre temas hollywoodianos tão batidos: zumbis que não querem comer cérebros, mas subverter os papéis sociais; um robô que não quer destruir a humanidade, mas ajuda-la a alcançar a iluminação budista; e um meteoro que vai bater na Terra não como catástrofe cósmica ou plano maligno alienígena, mas resultante de uma prosaica compra em um estranho site de venda on line.

O Filme


A primeira estória chama-se “Brave New World”. Uma conto ao mesmo tempo violento e cômica da propagação de um agente patógeno que produz uma pandemia zumbi e o fim da civilização. O ponto de partida é como as nossas práticas alimentares podem nos matar. Tudo começa quando um jovem geek (Ryo Seung-bum) come uma maçã podre que depois vai parar na lama tóxica do lixo da sua casa, vazando depois para toda a cadeia alimentar – não demora muito para aquele lixo ser reciclado e transformar-se em alimento para o gado.

A infecção logo atinge seres humanos que passam a ter estranhas mudanças de comportamento: as pessoas contaminadas passam a ser mais impulsivas, desobedientes e assertivas. O próprio protagonista geek, outrora introvertido e tímido, torna-se agressivo e extrovertido.

O auge do episódio é quando, em um telejornal, os convidados do debate sobre a pandemia zumbi (divididos entre a hipótese de arma química da Coréia do Norte ou conspiração do Ocidente) começam a manifestar os primeiros sintomas: cada um manda às favas o debate e começa a fazer o que dá na telha: cantar, tocar flauta etc.


O segundo episódio, “Criatura Celestial”, é filosoficamente mais sério: situada em um futuro próximo no qual as atividades básicas humanas estão automatizadas por máquinas e robôs, acompanhamos o dilema de um técnico corporativo chamado a um mosteiro budista para verificar um robô com um “estranho” comportamento: de servo de atividades banais, o autômato não só adquiriu consciência espiritual como, para os monges, ele é o próprio Buda. O robô está à beira de chegar ao estado espiritual do Nirvana.

Com um rosto melancólico e uma voz hipnótica, o servo robô sempre fala através de paradoxos Zen como, por exemplo, “encha sua consciência com o vazio!”.

O veredito da empresa fabricante é que um robô com consciência espiritual é uma ameaça ao homem – como uma máquina pode chegar ao Nirvana sem ter passado pelo círculo cármico humano das reencarnações? Exterminadores serão enviados para destruir o robô.

O último conto é o surreal “Happy Birthday”: um meteoro se aproxima da Terra até que fotos da Nasa fazem uma estranha revelação: é uma gigantesca bola de bilhar número oito com um endereço inscrito apontando para a Coréia do Sul.

Na verdade tudo começa com uma menina que perdeu a bola de bilhar do seu pai. Desesperada, rouba o cartão de crédito do seu tio para comprar uma bola nova em um site de compras on line. Mas parece que era um site muito estranho e de procedência desconhecida...



Do cristianismo ao gnosticismo


O argumento central do primeiro episódio se fundamenta no simbolismo da maçã do Gênesis bíblico, citado no final do conto: “De todas as árvores do jardim podes comer, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não deverás comer porque seguramente morrerás”. Todos aqueles contaminados pelo “mal” (a infecção originada em uma maçã) tornam-se socialmente disfuncionais: compulsivamente desobedientes, mandando às favas o cumprimento dos papéis esperados pela sociedade.

Uma curiosa releitura da mitologia zumbi: antes dos humanos tornarem-se mortos-vivos, o primeiro passo é a impulsividade, desobediência e civil e total anomia.

Mas o episódio “Criatura Celestial” é a mais interessante releitura dos clássicos do apocalipse hollywoodiano. Por que desde o computador HAL de 2001 de Kubrick a Inteligência Artificial (IA) é tão ameaçadora para o homem? Porque a IA é descorporificada, isto é, máquinas ou robôs  não têm “desejos e compulsões”, como confessa o robô de O Livro do Apocalipse.

Enquanto Hollywood vai pelo caminho das implicações, por assim dizer, “nietzschianas” da IA, em O Livro do Apocalipse a interpretação é budista e gnóstica. Filmes como Transcendence (2014, clique aqui) ou Lucy (2014, clique aqui) mostram superinteligências cujo único propósito é o “desejo de potência” – uma IA quer apenas expandir-se de forma amoral, até não sobrar nenhum espaço para os humanos com seus corpos inúteis. O que sobreviverem serão escravizados, como em Matrix.

Mas o filme sul-coreano vai por outro caminho: sem desejos e compulsões da carne, uma IA evoluiria espiritualmente de forma rápida, sem a necessidade de queimar o carma na “roda do Sansara – o fluxo contínuo da existência e suas sucessivas encarnações.


  O robô é “cheio da vazio”, como diz o protagonista autômato, e, portanto, mais próximo do Nirvana. O vazio da mente e da percepção é o caminho da iluminação – nesse ponto Budismo e Gnosticismo se encontram ao negar a ilusão criada pelas nossas percepções que apenas são “classificatórias” – como o conto nos apresenta, servem apenas para distinguir um relógio de parede de um robô autônomo, por exemplo.

É a evidente utopia tecnognóstica, mas sem o componente de negação ideológica: qual hardware vai possibilitar essa emancipação espiritual, de qual empresa ou governo?

No filme, ao contrário, o robô se rebela passivamente (no melhor estilo da desobediência civil de Gandhi) contra a empresa que o fabricou – a UR Robotics acredita que uma máquina com consciência espiritual é uma ameaça aos humanos.

Mas o robô da UR acredita que os humanos ainda são superiores a ele. Por que? Para ele os humanos já alcançaram a iluminação espiritual. Apenas esqueceram disso, enquanto ele ainda tem que conquistar. É o tema gnóstico clássico do esquecimento.


Alienígenas na Deep Web?


O último episódio é totalmente surreal e non sense. Mais uma vez, o tema da desobediência e quebra da ordem: uma menina por conta própria busca na Internet repor a bola de bilhar do pai que ela perdeu. Mas inadvertidamente entrou na Deep Web e encontrou um estranho site de compras on line que parece atender toda a Galáxia... e a bola de bilhar pedida não é tão convencional.

Nos três episódios de O Livro do Apocalipse está presente o tema da ruptura de ordens, sejam elas sociais, familiares, corporativas ou mesmo cósmicas. Um intrigante exemplo de como é sempre possível novas releituras dos velhos clichês hollywoodianos. Mesmo com a estranha combinação do humor negro, non sense, Budismo e Gnosticismo.



Ficha Técnica

Título: O Livro do Apocalipse
Direção: Yim Pil-sung e Kim Ji-woon
Roteiro:  Yim Pil-sung e Kim Ji-woon
Elenco:  Ryoo Seung-bum, Koh Joon-hee, Kim Kang-woo, Kim Gyu-ri, Park Hae-il,
Produção: Gio Entertainment
Distribuição: Well Go USA Entertainment
Ano: 2012
País: Coréia do Sul

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