Os filmes-catástrofes hollywoodianos sempre
tiveram um papel bem freudiano: criar o objeto fóbico de medo para oferecer um
bode expiatório capaz de espiar o mal estar da sociedade. Para quê? Para manter
as pessoas na linha esquecendo dos seus problemas de obediência e disciplina
com as obrigações que a sociedade cobra. Como fazer uma releitura dos clichês
hollywoodianos desse subgênero? O filme sul-coreano “O Livro do Apocalipse” (“In-yu-myeol-mang-bo-go-seo,
2012) nos oferece uma surpreendente abordagem alternativa de zumbis, ameaça de
robôs e meteoros que caem na Terra, temas tradicionais dos filmes apocalípticos
ocidentais. Humor negro, “non sense”, Budismo e Gnosticismo se combinam em três
contos onde o objeto fóbico é invertido: zumbis, robôs e alienígenas
transformam-se em oportunidades para as pessoas repensarem a si mesmas e a
sociedade.
A partir do clássico O Planeta dos Macacos (1968), o cinema Ocidental se esmerou com
muito mais frequência em oferecer especulações sobre o fim do mundo e distopias
apocalípticas: catástrofe nuclear, praga zumbi, distopias robóticas, invasões
aliens, meteoros caindo na Terra, entre outras inumeráveis alternativas para
exterminar a raça humana.
Em postagem anterior observávamos que os
filmes-catástrofes hollywoodianos têm
uma característica fóbica: a criação do medo coletivo por qualquer aspiração de
mudança. Como Freud observava, todo objeto fóbico foi no passado uma fonte de
prazer. A culpa o transformaria em objeto de medo e ameaça.
Por isso, o filme-catástrofe oferece a
possibilidade de “naturalizar” as crises: monstros, aliens, zumbis, robôs e
cataclismos cósmicos viram bode expiatório para espiar o mal estar da
sociedade. Por isso, em todo o filme-catástrofe é ao mesmo tempo um julgamento
moral (quem morrerá e quem sobreviverá?) e a oportunidades de famílias ou pais
separados reconquistarem afetos mútuos.
Mas do que renovação em um subgênero tão
saturado, o filme sul-coreano O Livro do
Apocalipse (In-yu-myeol-mang-bo-go-seo,
2012) é um comentário satírico com humor negro e algumas doses de séria
reflexão filosófica e até mesmo gnóstica.
Os diretores Yim Pil-sung e Kim
Jee-woon ao mesmo tempo satirizam e
fazem uma reflexão desse verdadeiro cerne ideológico dos filmes-catástrofes no
Ocidente: moralismo e manutenção da ordem familiar e social mediante busca de
inimigos que pretendem nos exterminar.
O Livro do
Apocalipse é uma antologia de
três variações distintas sobre o tema apocalipse: a praga zumbi; os robôs e a
ameaça da Inteligência Artificial; a colisão de um gigantesco meteoro com a
Terra. São três temas-clichê dos filmes-catástrofe ocidentais, mas com uma
surpreendente releitura que subverte a ideologia ocidental: a manutenção da
ordem dos papéis sociais através do mesmo fóbico.
A dupla de diretores sul-coreanos oferece
inesperadas variações subversivas sobre temas hollywoodianos tão batidos:
zumbis que não querem comer cérebros, mas subverter os papéis sociais; um robô
que não quer destruir a humanidade, mas ajuda-la a alcançar a iluminação
budista; e um meteoro que vai bater na Terra não como catástrofe cósmica ou
plano maligno alienígena, mas resultante de uma prosaica compra em um estranho
site de venda on line.
O Filme
A primeira estória chama-se “Brave New
World”. Uma conto ao mesmo tempo violento e cômica da propagação de um agente
patógeno que produz uma pandemia zumbi e o fim da civilização. O ponto de
partida é como as nossas práticas alimentares podem nos matar. Tudo começa
quando um jovem geek (Ryo Seung-bum) come uma maçã podre que depois vai parar
na lama tóxica do lixo da sua casa, vazando depois para toda a cadeia alimentar
– não demora muito para aquele lixo ser reciclado e transformar-se em alimento
para o gado.
A infecção logo atinge seres humanos que
passam a ter estranhas mudanças de comportamento: as pessoas contaminadas
passam a ser mais impulsivas, desobedientes e assertivas. O próprio
protagonista geek, outrora
introvertido e tímido, torna-se agressivo e extrovertido.
O auge do episódio é quando, em um
telejornal, os convidados do debate sobre a pandemia zumbi (divididos entre a
hipótese de arma química da Coréia do Norte ou conspiração do Ocidente) começam
a manifestar os primeiros sintomas: cada um manda às favas o debate e começa a
fazer o que dá na telha: cantar, tocar flauta etc.
O segundo episódio, “Criatura Celestial”, é
filosoficamente mais sério: situada em um futuro próximo no qual as atividades
básicas humanas estão automatizadas por máquinas e robôs, acompanhamos o dilema
de um técnico corporativo chamado a um mosteiro budista para verificar um robô
com um “estranho” comportamento: de servo de atividades banais, o autômato não
só adquiriu consciência espiritual como, para os monges, ele é o próprio Buda.
O robô está à beira de chegar ao estado espiritual do Nirvana.
Com um rosto melancólico e uma voz
hipnótica, o servo robô sempre fala através de paradoxos Zen como, por exemplo,
“encha sua consciência com o vazio!”.
O veredito da empresa fabricante é que um
robô com consciência espiritual é uma ameaça ao homem – como uma máquina pode chegar
ao Nirvana sem ter passado pelo círculo cármico humano das reencarnações?
Exterminadores serão enviados para destruir o robô.
O último conto é o surreal “Happy
Birthday”: um meteoro se aproxima da Terra até que fotos da Nasa fazem uma
estranha revelação: é uma gigantesca bola de bilhar número oito com um endereço
inscrito apontando para a Coréia do Sul.
Na verdade tudo começa com uma menina que
perdeu a bola de bilhar do seu pai. Desesperada, rouba o cartão de crédito do
seu tio para comprar uma bola nova em um site de compras on line. Mas parece que era um site muito estranho e de procedência
desconhecida...
Do cristianismo ao gnosticismo
O argumento central do primeiro episódio se
fundamenta no simbolismo da maçã do Gênesis bíblico, citado no final do conto:
“De todas as árvores do jardim podes comer, mas da árvore do conhecimento do
bem e do mal não deverás comer porque seguramente morrerás”. Todos aqueles
contaminados pelo “mal” (a infecção originada em uma maçã) tornam-se
socialmente disfuncionais: compulsivamente desobedientes, mandando às favas o
cumprimento dos papéis esperados pela sociedade.
Uma curiosa releitura da mitologia zumbi:
antes dos humanos tornarem-se mortos-vivos, o primeiro passo é a impulsividade,
desobediência e civil e total anomia.
Mas o episódio “Criatura Celestial” é a
mais interessante releitura dos clássicos do apocalipse hollywoodiano. Por que
desde o computador HAL de 2001 de
Kubrick a Inteligência Artificial (IA) é tão ameaçadora para o homem? Porque a
IA é descorporificada, isto é, máquinas ou robôs não têm “desejos e compulsões”, como confessa
o robô de O Livro do Apocalipse.
Enquanto Hollywood vai pelo caminho das
implicações, por assim dizer, “nietzschianas” da IA, em O Livro do Apocalipse a interpretação é budista e gnóstica. Filmes
como Transcendence (2014, clique aqui) ou Lucy (2014, clique aqui) mostram superinteligências
cujo único propósito é o “desejo de potência” – uma IA quer apenas expandir-se
de forma amoral, até não sobrar nenhum espaço para os humanos com seus corpos
inúteis. O que sobreviverem serão escravizados, como em Matrix.
Mas o filme sul-coreano vai por outro
caminho: sem desejos e compulsões da carne, uma IA evoluiria espiritualmente de
forma rápida, sem a necessidade de queimar o carma na “roda do Sansara – o
fluxo contínuo da existência e suas sucessivas encarnações.
O robô é “cheio da vazio”, como diz o
protagonista autômato, e, portanto, mais próximo do Nirvana. O vazio da mente e
da percepção é o caminho da iluminação – nesse ponto Budismo e Gnosticismo se
encontram ao negar a ilusão criada pelas nossas percepções que apenas são
“classificatórias” – como o conto nos apresenta, servem apenas para distinguir
um relógio de parede de um robô autônomo, por exemplo.
É a evidente utopia tecnognóstica, mas sem
o componente de negação ideológica: qual hardware vai possibilitar essa
emancipação espiritual, de qual empresa ou governo?
No filme, ao contrário, o robô se rebela
passivamente (no melhor estilo da desobediência civil de Gandhi) contra a
empresa que o fabricou – a UR Robotics acredita que uma máquina com consciência
espiritual é uma ameaça aos humanos.
Mas o robô da UR acredita que os humanos
ainda são superiores a ele. Por que? Para ele os humanos já alcançaram a
iluminação espiritual. Apenas esqueceram disso, enquanto ele ainda tem que
conquistar. É o tema gnóstico clássico do esquecimento.
Alienígenas na Deep Web?
O último episódio é totalmente surreal e non sense. Mais uma vez, o tema da
desobediência e quebra da ordem: uma menina por conta própria busca na Internet
repor a bola de bilhar do pai que ela perdeu. Mas inadvertidamente entrou na
Deep Web e encontrou um estranho site de compras on line que parece atender toda a Galáxia... e a bola de bilhar
pedida não é tão convencional.
Nos três episódios de O Livro do Apocalipse está presente o tema da ruptura de ordens, sejam
elas sociais, familiares, corporativas ou mesmo cósmicas. Um intrigante exemplo
de como é sempre possível novas releituras dos velhos clichês hollywoodianos.
Mesmo com a estranha combinação do humor negro, non sense, Budismo e Gnosticismo.
Ficha Técnica |
Título:
O Livro do Apocalipse
|
Direção:
Yim Pil-sung e Kim Ji-woon
|
Roteiro:
Yim Pil-sung e Kim Ji-woon
|
Elenco:
Ryoo
Seung-bum, Koh Joon-hee, Kim Kang-woo, Kim Gyu-ri, Park Hae-il,
|
Produção: Gio
Entertainment
|
Distribuição:
Well Go USA Entertainment
|
Ano:
2012
|
País: Coréia do Sul
|
Postagens Relacionadas |