Por que diante do precipício ao mesmo tempo em que temos medo, também sentimos o impulso de saltar para o fundo do abismo? Em 1844 o
filósofo S∅ren Kierkegaard disse que isso deriva da ansiedade da descoberta de
sermos livres para saltar ou não saltar. E sempre temos medo daquilo que mais
desejamos. “Passageiros” (Passengers, 2016) retoma essas ideias do filósofo
dinamarquês, inclusive com a referencia do abismo: só, no espaço sideral,
diante do vazio do Universo, o homem teme por descobrir que é livre, como se
retornasse ao mito do Paraíso, antes de Adão e Eva terem descoberto a árvore do
conhecimento. “Passageiros” é mais uma amostra da recente guinada metafísica de
Hollywood sob camadas de entretenimento e efeitos digitais. Assim como a
animação “WALL-E” (2008), também faz uma releitura gnóstica do Gênesis bíblico:
como o homem, prisioneiro numa gigantesca espaçonave-resort que ruma para a
destruição, pode conquistar a liberdade e autoconhecimento.
Passageiros (2016) é um ótimo exemplo sobre a guinada
metafísica dos filmes hollywoodianos: o mix de mitologias e simbolismos filosóficos.
Mais precisamente, sobre como, sob a superfície de entretenimento com muito
efeitos digitais, os filmes comerciais desfiam sérios conceitos filosóficos
tendo com fio condutor a mitologia gnóstica.
Lembrem de filmes como Lucy, Ex-Machina e Transcendence onde o conceito nietzschiano de
“vontade de potencia” é introduzido por meio da discussão TecnoGnóstica da
Inteligência Artificial; ou os simbolismos freudianos da interpretação dos
sonhos aplicados em uma narrativa PsicoGnóstica no filme A Passagem (Stay, 2005).
E não poderia ser de outra forma: um diretor
nórdico (Morten Tyldum, O Jogo da
Imitação) introduz conceitos filosóficos do filósofo dinamarquês
Kierkeegard em uma narrativa que faz uma alusão invertida do mito de Adão e Eva
do Gênesis bíblico em uma narrativa da jornada do herói gnóstico – acordar
prisioneiro em cosmos que caminha para a entropia e destruição.
Uma gigantesca espaçonave (simbolicamente de
forma helicoidal do DNA humano) atravessa a galáxia em uma viagem de 120 anos
para uma colônia em um remoto planeta transportando milhares de pessoas em
câmaras de hibernação. Porém, uma má função resulta no despertar prematuro de
um passageiro, 90 anos mais cedo da chegada prevista. Ele se vê sozinho numa gigantesca
nave automática que mais parece uma mistura de shopping center com hotel-resort.
Sozinho naquele microcosmo, cujas má funções
começam lentamente a contaminar toda a nave, e junto com 5.000 almas
hibernando, o protagonista será confrontado com sérias questões morais, a
angústia e a ansiedade. Mas tudo isso traduzido pela filosofia de S∅ren Kierkegaard (1813-1855),
mais precisamente na sua obra O Conceito
de Ansiedade de 1844, muito tempo antes do Existencialismo e da
Psicanálise.
O Filme
Jim (Chris Pratt) é um dos 5.000 passageiros,
mais a tripulação, mantidos em câmaras de hibernação, na espaçonave automática
Avalon. Viajando a metade da velocidade da luz, Avalon ruma em direção da
colônia Homestead II em uma jornada de 120 anos. Após 30 anos, a Avalon
atravessa uma região do espaço com uma intensa chuva de meteoros o que obriga a
nave a concentrar quase a totalidade da energia nos seus escudos. Isso
produzirá uma lenta disseminação de pequenas más funções na Avalon.
E Jim é a primeira vítima: sua câmara de
hibernação desperta-o prematuramente, como se a espaçonave já estivesse se
aproximando de Homestead II. Tudo parece normal (o protocolo de boas vindas é
acionado automaticamente pelos sistemas da nave), mas logo Jim cai em si – ele
está sozinho em uma gigantesca espaçonave, faltando ainda 89 anos para o
destino. Morrerá sozinho antes do restante dos passageiros despertar.
No início temos a clássica jornada do herói:
primeiro ele fica confuso e desesperado. Depois, aparentemente aceita o destino
e passa a usufruir de todos os serviços daquele autêntico hotel resort espacial
– come sushi todas as noites e bebe uísque com a única companhia, o barman robô
chamado Arthur (Michael Sheen) programado para bate papos superficiais de
balcão de bar com os clientes.
A nave Avalon, o design interior e o balcão
com o solicito robô barman são evidentes alusões a 2001 e O Iluminado de Stanley
Kubrick. Assim como em O Iluminado, a
solidão num lugar distante de qualquer coisa humana na Galáxia começa a
enlouquecer o protagonista – por meses caminha nu pela nave, deixa crescer uma
espessa barba, embriaga-se em longas conversas com repostas protocolares do
barman androide, faz caminhadas espaciais e por horas fica olhando para o vazio
e quase tenta suicídio em uma câmara de ar na saída da Avalon.
A partir daí, Jim passa o tempo lendo textos
e os registros de vídeo dos passageiros em hibernação. Até ter um interesse
peculiar por Aurora (Jennifer Lawrence), jornalista e escritora. Como
engenheiro mecânico, Jim leu todos os manuais sobre as câmara de hibernação o
que o coloca em um sinuca existencial e moral: um ano de solidão lhe deu uma
inesperada consciência de liberdade. Jim pode despertá-la para dividir com ele
a solidão. Mas por outro lado, isso significava roubar-lhe a vida que Aurora teria
no futuro.
Jim convence a si mesmo que poderiam se
apaixonar e ele iria construir uma casa para ela – um dos temas ao longo do
filme é como a automação impossibilita as pessoas de construírem coisas com
suas próprias mãos, roubando a humanidade dos objetos.
Depois de muitos dilemas éticos e
existenciais, Jim decide acordá-la fazendo tudo parecer mais uma disfunção da
nave Avalon.
De um lado, a solidão e a liberdade; do
outro, o sequestro da vida de Aurora por Jim. Que ainda esconde um tema
sombrio: o horror feminista pelo abuso emocional numa cultura do estupro que vê
as mulheres como objeto de possessão. Jim é bonito, charmoso e sedutor. Mas
esconde uma sombria escolha moral.
O Gênesis gnóstico
Passageiros faz uma interessante analogia com o Gênesis
bíblico: o início de uma convivência fundada no pecado original, porém de forma
invertida – foi Adão/Jim que conheceu o Mal (a liberdade de escolha) e não
Eva/Aurora. O filme faz até uma alusão à árvore cujo fruto Jim não pode comer:
a máquina de café automático Spice Extreme Latte, porque não é um passageiro
com pulseira “ouro”. Quando Aurora/Eva chega, os dois podem consumir juntos os
produtos do nível ouro, enquanto Jim sabe que fez algo muito errado.
O hotel-resort da nave Avalon é o Paraíso tenta expulsar Jim e Aurora como uma espécie de punição por terem comido o fruto
do Conhecimento – Jim, a descoberta da liberdade; e Aurora, permitir a Jim ter
acesso “ouro” a serviços.
Mas esse Gênesis parece ter uma releitura bem
gnóstica: assim como no Gênesis onde a mulher surge da costela de Adão, é Jim
quem desperta uma mulher. Mas Adão e Eva despertam em uma Criação que já está
em crise – as más funções anunciam uma destruição próxima de Avalon. Não foi o
pecado que fez a Criação incorrer na Queda. A Queda foi a própria criação, que
manteve o homem prisioneiro e colocado em condições existenciais extremas que só
permitem tirar de dentro do homem o pior de si mesmo.
Aurora descobrirá como um homem aparentemente
decente e charmoso foi capaz de roubar-lhe a própria vida. Como é colocado a
certa altura em uma linha de diálogo, Jim era alguém que estava se afogando. E
toda pessoa que se afoga agarra-se em alguém para levar junto.
Passageiros oferece mais uma releitura gnóstica da
mitologia do Paraíso perdido, numa versão um pouco diferente da animação WALL-E (2008) – clique aqui. Tal como na animação, o
homem é prisioneiro em uma gigantesca espaçonave-resort que oferece comodismo e
conforto. Mas que ao mesmo tempo oferece a oportunidade do autoconhecimento e a
descoberta da liberdade.
Kierkeegard vai a Hollywood
Dessa maneira, Passageiros ingressa na ideia principal do livro O Conceito de Ansiedade do filósofo
Kierkeegard, que inclusive é visualmente referenciado no filme.
Kierkeegard usa o exemplo de um homem à beira
do precipício. Quando o homem olha para baixo ele sente o medo da queda. Mas ao
mesmo tempo, sente um grande impulso de se atirar para o fundo do abismo. Esses
sentimento paradoxal deriva da nossa ansiedade pela descoberta de que somos
livres para escolher saltar ou não saltar. O mero fato de sabermos que temos a
liberdade de escolha por sermos seres finitos diante da eternidade do Universo
desperta ao mesmo tempo a solidão e a completa liberdade. Isso criaria tanto a
possibilidade do autoconhecimento como da ansiedade neurótica – a angústia, que
impede a evolução da ansiedade normal em autoconhecimento.
Um dos momentos-chave do filme é quando Jim
em um dos seus passeios espaciais vê, solitário, a imensidão do Universo. Isso
dá uma inesperada sensação de liberdade – ele pode se atirar no espaço, se
matar, ou retornar e despertar Aurora. São atos equânimes moralmente naquelas
condições existenciais nas quais Jim é prisioneiro.
Para Kierkegaard o mito de Adão retrata o
despertar do indivíduo para a autoconsciência. Uma representação poética do
instante em que o indivíduo coloca-se frente a si mesmo.
Tanto Jim quanto Aurora temem a extrema
experiência simultânea da solidão e liberdade de poderem construir um novo
mundo dentro do microcosmo da espaçonave Avalon. Mas, como Kierkeegard que
antecipou muitas ideias freudianas, aquilo que mais desejamos é sempre o que
mais tememos.
A ansiedade neurótica à descoberta de que
sãos seres livres faz Jim pensar no suicídio e Aurora em tentar retornar à
câmara de hibernação.
O filme Passageiros
é uma jornada de autoconhecimento para os protagonistas: a transformação do
medo da liberdade em atos que ecoarão na posteridade, como acompanhamos na
sequência final - quando finalmente a nave Avalon chega ao destino 89 anos
depois e os passageiros descobrem o legado deixado por Jim e Aurora.
Ficha Técnica |
Título:
Passageiros
|
Direção:
Morten Tyldum
|
Roteiro:
Jon Spaiths
|
Elenco:
Jennifer
Lawrence, Chris Pratt, Michael Sheen, Laurence Fishburne
|
Produção: Columbia
Pictures, Original Film
|
Distribuição:
Sony Pictures Releasing
|
Ano:
2016
|
País:
EUA
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