segunda-feira, janeiro 09, 2017

Curta da Semana: "Reset" - nada é o que parece


No curta sueco “Reset” (2013) nada é o que parece. Uma amorosa mãe lê rotineiramente para a filha cartas de um pai ausente que promete retornar em breve ao lar. Uma fazenda remota e isolada do resto do mundo guarda um mistério que, para ser resolvido, dependerá que a menina compreenda o sentido de estranhos códigos numéricos. Um surpreendente drama alusivo às mitologias gnósticas sintetizado em 16 minutos – a mitologia do retorno de Sophia à Plenitude, a função consoladora e ilusória das religiões para nos manter esperançosos dentro de uma prisão e a diversidade de mundos simulados.

São poucas produções cinematográficas do continente europeu que se enveredam na mitologia gnóstica. Suas produções privilegiam temas que o Cinegnose denomina como “o humano, demasiado humano” – narrativas que discute as mazelas da natureza humana e impasses éticos e morais. Mesmo as discussões metafísicas e ontológicas se subordinam a esse paradigma.

Mas o curta sueco Reset (2013) da dupla Marcus Kryler e Frederik Akerström (profissionais egressos do mercado de vídeos publicitários) é um ponto fora da curva. Uma potente mistura de suspense com jogo mental típico de narrativas gnósticas – desde o primeiro segundo, nada é o que parece.

A estória do curta passa numa fazenda remota, aparentemente isolada do resto do mundo. O mobiliário anacrônico e as roupas sugerem algo do século XIX ou de algum lugar atual que parou no tempo. Seus dois personagens, a mãe e filha, repetem uma rotina espartana: a mãe lê sempre para a filha as cartas que o pai ausente envia. Nas cartas, o pai sempre se desculpa, reafirma seu amor pela filha e promete voltar em breve.

As cartas são sempre colocadas em uma pequena caixa no alto de um armário. Quando a mãe sai do quarto, a filha percebe que a ela deixou para trás a chave caída no chão. Curiosa, a menina pega a chave e abre a caixa das cartas regularmente enviadas pelo pai. Para descobrir que nada é o que parece. A natureza do mistério e suas ramificações serão difíceis de ser previstas.

Assista primeiro ao curta (legendas em inglês) para continuar a ler essa postagem – alerta de spoilers à frente.


A introdução do curta é lenta e deliberada – a rotina, a segurança, o amor materno e o mobiliário antigo passam uma sensação de estabilidade e de realidade palpável.

Porém tudo isso se vai em um só golpe quando a menina descobre que as cartas não têm aqueles textos lidos rotineiramente pela mãe. Aparecem apenas sequências numéricas, como fossem códigos para serem inseridos em algum dispositivo desconhecido.

O nome da menina é o primeiro elemento gnóstico do curta: Sophie – “Sophia”, alusão ao aeon que na mitologia gnóstica é a responsável em manter acesa a Luz espiritual humana na esperança de desencadear a gnose, libertando a humanidade da prisão cósmica do universo físico. O retorno à Plenitude, perdida na Queda em tempos imemoriais.

  Assim como o homem, Sophia também decaiu e ficou sob o jugo do Demiurgo, mas conseguiu ascender de volta à Plenitude. Mas deixou para a humanidade as pistas para esse caminho de retorno.

A saudade de Sophie pelo pai no curta é a própria saudade incontrolável que Sophia sentiu ao decair no mundo físico. Nas muitas interpretações das escolas gnósticas sobre o mito de Sophia, a vinda do aeon Cristo teria ocorrido para trazer Sophia de volta à totalidade da Plenitude. Mais tarde, Cristo voltaria à Terra para, dessa vez, infundir no homem a gnose necessária para a libertação a partir da fagulha de Luz deixada por Sophia no interior de cada ser humano.

Para o Gnosticismo, esse é o drama central do Universo.


O código e as religiões


Reset gira em torno do código que poderá reiniciar todo o sistema permitindo que o pai (um aeon?) retorne à casa mais uma vez para libertar Sophie (Sophia) do jugo de um Arconte – a própria “mãe”. Percebe-se no curta que a “mãe” nada mais é do que um assecla programado para manter a rotina naquela realidade fake e cenográfica – temos aqui ecos dos clássicos Show de Truman e Matrix.

As cartas lidas pela mãe possuem um evidente papel de consolação, para manter Sophie sempre esperançosa e, ao mesmo tempo, prisioneira – consolada, Sophie cai no sono do esquecimento.

Lembra a crítica que os gnósticos fazem às religiões: sempre falam em nome do Pai, porém com a missão sombria de apenas consolar e esconder um drama trágico que envolve todos.

E o final é emblemático: vemos que aquela fazenda não é única. Há uma diversidade de mundos simulados. O que lembra a cosmologia do filósofo gnóstico Basilides (século II da Era Cristã) na qual o Universo seria composto por 365 “céus”, cada um ignorante sobre a existência dos demais. Mas cada um contando com a diligente vigilância de um arconte (ou uma “mãe”, no caso do curta) para manter uma Sophie prisioneira.



O código finalmente abre espaços existentes entre os “céus” para que pai e filha possam escapar.

Reset é mais um argumento em defesa da hipótese de pesquisadores sobre o Gnosticismo no cinema como Erik Wilson e Miguel Conner, além desse humilde blogueiro: nos anos recentes diretores e roteiristas descobriram na mitologia gnóstica um forte appeal de “drama” – parece que as narrativas gnósticas são space operas perfeitas para se encaixarem na produção audiovisual contemporânea.


São narrativas repletas de estoicismo, drama, mistérios e, o principal, o impulso humano pela busca da liberdade mesmo quando imerso na ilusão.

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