No curta sueco “Reset” (2013) nada é o que parece. Uma amorosa mãe lê rotineiramente para a filha cartas de um pai ausente que promete retornar em breve ao lar. Uma fazenda remota e isolada do resto do mundo guarda um mistério que, para ser resolvido, dependerá que a menina compreenda o sentido de estranhos códigos numéricos. Um surpreendente drama alusivo às mitologias gnósticas sintetizado em 16 minutos – a mitologia do retorno de Sophia à Plenitude, a função consoladora e ilusória das religiões para nos manter esperançosos dentro de uma prisão e a diversidade de mundos simulados.
São poucas produções cinematográficas do
continente europeu que se enveredam na mitologia gnóstica. Suas produções
privilegiam temas que o Cinegnose
denomina como “o humano, demasiado humano” – narrativas que discute as mazelas
da natureza humana e impasses éticos e morais. Mesmo as discussões metafísicas e ontológicas se
subordinam a esse paradigma.
Mas o curta sueco Reset (2013) da dupla Marcus Kryler e
Frederik Akerström (profissionais egressos do mercado de vídeos publicitários)
é um ponto fora da curva. Uma potente mistura de suspense com jogo mental
típico de narrativas gnósticas – desde o primeiro segundo, nada é o que parece.
A estória do curta passa numa
fazenda remota, aparentemente isolada do resto do mundo. O mobiliário
anacrônico e as roupas sugerem algo do século XIX ou de algum lugar atual que
parou no tempo. Seus dois personagens, a mãe e filha, repetem uma rotina
espartana: a mãe lê sempre para a filha as cartas que o pai ausente envia. Nas
cartas, o pai sempre se desculpa, reafirma seu amor pela filha e promete voltar
em breve.
As cartas são sempre
colocadas em uma pequena caixa no alto de um armário. Quando a mãe sai do
quarto, a filha percebe que a ela deixou para trás a chave caída no chão.
Curiosa, a menina pega a chave e abre a caixa das cartas regularmente enviadas
pelo pai. Para descobrir que nada é o que parece. A natureza do mistério e suas
ramificações serão difíceis de ser previstas.
Assista primeiro ao curta (legendas em inglês) para continuar a ler essa postagem – alerta de spoilers à frente.
A introdução do curta é lenta
e deliberada – a rotina, a segurança, o amor materno e o mobiliário antigo
passam uma sensação de estabilidade e de realidade palpável.
Porém tudo isso se vai em um
só golpe quando a menina descobre que as cartas não têm aqueles textos lidos
rotineiramente pela mãe. Aparecem apenas sequências numéricas, como fossem
códigos para serem inseridos em algum dispositivo desconhecido.
O nome da menina é o primeiro
elemento gnóstico do curta: Sophie – “Sophia”, alusão ao aeon que na mitologia gnóstica é a responsável em manter acesa a
Luz espiritual humana na esperança de desencadear a gnose, libertando a
humanidade da prisão cósmica do universo físico. O retorno à Plenitude, perdida
na Queda em tempos imemoriais.
Assim como o homem, Sophia também decaiu e
ficou sob o jugo do Demiurgo, mas conseguiu ascender de volta à Plenitude. Mas
deixou para a humanidade as pistas para esse caminho de retorno.
A saudade de Sophie pelo pai
no curta é a própria saudade incontrolável que Sophia sentiu ao decair no mundo
físico. Nas muitas interpretações das escolas gnósticas sobre o mito de Sophia,
a vinda do aeon Cristo teria ocorrido para trazer Sophia de volta à totalidade
da Plenitude. Mais tarde, Cristo voltaria à Terra para, dessa vez, infundir no
homem a gnose necessária para a libertação a partir da fagulha de Luz deixada
por Sophia no interior de cada ser humano.
Para o Gnosticismo, esse é o
drama central do Universo.
O código e as religiões
Reset gira em
torno do código que poderá reiniciar todo o sistema permitindo que o pai (um
aeon?) retorne à casa mais uma vez para libertar Sophie (Sophia) do jugo de um
Arconte – a própria “mãe”. Percebe-se no curta que a “mãe” nada mais é do que
um assecla programado para manter a rotina naquela realidade fake e cenográfica
– temos aqui ecos dos clássicos Show de
Truman e Matrix.
As cartas lidas pela mãe
possuem um evidente papel de consolação, para manter Sophie sempre esperançosa
e, ao mesmo tempo, prisioneira – consolada, Sophie cai no sono do esquecimento.
Lembra a crítica que os
gnósticos fazem às religiões: sempre falam em nome do Pai, porém com a missão
sombria de apenas consolar e esconder um drama trágico que envolve todos.
E o final é emblemático:
vemos que aquela fazenda não é única. Há uma diversidade de mundos simulados. O
que lembra a cosmologia do filósofo gnóstico Basilides (século II da Era Cristã)
na qual o Universo seria composto por 365 “céus”, cada um ignorante sobre a
existência dos demais. Mas cada um contando com a diligente vigilância de um
arconte (ou uma “mãe”, no caso do curta) para manter uma Sophie prisioneira.
O código finalmente abre
espaços existentes entre os “céus” para que pai e filha possam escapar.
Reset é mais um argumento em
defesa da hipótese de pesquisadores sobre o Gnosticismo no cinema como Erik
Wilson e Miguel Conner, além desse humilde blogueiro: nos anos recentes
diretores e roteiristas descobriram na mitologia gnóstica um forte appeal de
“drama” – parece que as narrativas gnósticas são space operas perfeitas para se encaixarem na produção audiovisual
contemporânea.
São narrativas repletas de
estoicismo, drama, mistérios e, o principal, o impulso humano pela busca da
liberdade mesmo quando imerso na ilusão.