sexta-feira, maio 30, 2014

Em Observação: "Irreversível" (2002) - o tempo nos devora

Quem não conhece a célebre pintura de Goya de Saturno (Cronos na mitologia grega) devorando seu próprio filho? Como filhos de Cronos, também somos devorados pelo tempo, tornando cada tomada de decisão nossa em causas de efeitos que serão irreversíveis. Esse é o tema do filme francês “Irreversível” de Gaspar Noé. “O tempo destrói tudo” diz a frase de abertura, em um filme que lembra “Amnésia” de Nolan: a história é contada no sentido inverso onde acompanhamos a desconstrução de personagens que de selvagens e brutais vão se tornando sensíveis e apaixonados. Noé propõe uma reflexão incômoda e brutal sobre o tempo, através de duas cenas que já são consideradas antológicas na história do cinema: um estupro e a briga em uma boate gay onde um rosto é desfigurado por um extintor de incêndio. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.

Título: Irreversível (2002)

Diretor: Gaspar Noé

Plot: Contado de trás para frente, o filme narra a busca por vingança de Marcus e Pierre, depois que Alex (Mônica Belucci) namorada de Marcus e ex de Pierre, é estuprada violentamente.

Por que está “Em Observação”? – O blog se interessa por filmes que exploram a questão do tempo na narrativa. Irreversível, ao lado de Amnésia de Christopher Nolan, é um desses filmes: a história é contada ao contrário e cada cena é rodada totalmente sem cortes, até a câmera dar uma pirueta e jogar o espectador para outra cena, a parte anterior da história. E por que? O sentido já é dado logo no início do filme com a frase “o tempo destrói tudo”.  Muitos críticos definem o filme como uma fábula sobre o destino. A cada cena que passa o filme parece indagar porque as coisas não tomaram outro rumo, porque somos vítimas do destino.

O plot é extremamente simples, mas a grande atração é a edição e cenas violentas como a do estupro e o estrago que o extintor de incêndio faz no rosto de um personagem na sequência da briga em uma boate gay. Tudo no filme parece feito para criar no espectador estranhamento, repulsa e incômodo. Na primeira exibição no Festival de Cannes 2002 Irreversível foi definido como “repulsivo”, “doentio” e “gratuito”. O enquadramento da câmera não centraliza ninguém na tela, gira de forma desfocada e surreal para marcar o recuo no tempo da narrativa e a narrativa parece desconstruir os personagens: à medida que o tempo passa (ou volta) os protagonistas Pierre e Marcus vão se tornando totalmente diferente daqueles seres brutais e selvagens do início do filme. De homens sedentos por vingança, vão se transformando em seres apaixonados e bem menos agressivos, incapazes de fazer mal a uma mosca.

Por isso, a grande questão que o Gaspar Noé quer discutir: a irreversibilidade do tempo, o porquê das nossas tomadas de decisões e como elas, a cada instante, influenciam de forma irreversível, o futuro. De certa forma, o diretor francês parece querer desconstruir um dos grandes mitos do cinema, principalmente norte-americano: o mito da segunda chance, a possibilidade da vida nos oferecer sempre uma segunda oportunidade para nos redimir de erros cometidos no passado. Noé parece ter em mente o mito grego de Cronos devorando seus próprios filhos. Como filhos do tempo que somos, também somos devorados por ele, vencidos pela sua irreversibilidade. Tudo finda e é consumido, tornando nossas decisões fatalidades.

Por isso essa discussão do tempo é essencialmente gnóstica, já que para os gregos Cronos refere-se a apenas uma faceta da existência: o tempo cronológico e linear das coisas terrenas. É imperfeito e produz a entropia e caos. Ainda existiria Kairos (o momento indeterminado no tempo onde algo de novo acontece) e Aeon (o tempo divino onde as horas não passam cronologicamente, o tempo de Deus). Daí o descompasso que sempre vivemos entre Cronos e o nosso psiquismo,o efêmero versus o eterno.

Daí a linguagem fílmica intensiva do diretor nas cenas: sem cortes, elas são pensadas para serem impactantes e duradouras em nosso psiquismo, apesar da transitoriedade que a linguagem fílmica impõe – a história tem que ser contada, o tempo deve passar.

O que esperar do filme? – A crítica afirma que a violência e o desconforto (produzido pelo enquadramento e ausência da decupagem nas cenas) fazem muitos espectadores abandonarem o filme na metade. Assim o crítico de cinema Tony Pugliesi sintetiza o que o leitor do Cinegnose pode esperar do filme Irreversível: “Incômodo. Se tivéssemos que escolher apenas uma palavra para descrever Irreversível, com certeza, a palavra escolhida seria "incômodo". Ou então poderíamos utilizar palavras similares como intrigante e chocante. Entretanto, incômodo, como você irá perceber ao longo desta análise, nada tem a ver com a possibilidade que o filme de Gaspar Noe seja uma película ruim, muito pelo contrário. Chocante porque a produção possui duas tomadas (seqüências) fantásticas que já entram para a história do cinema devido a forma de como foram gravadas e, também, claro, pela coragem de Noé em gravar essas seqüências. Acredite, elas são muito difíceis de serem até mesmo assistidas. Intrigante, óbvio, pelo modo como a película fora filmada; edição fantástica, brilhante. E ela que faz o filme.”

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