Um marco entre
os filmes gnósticos. Se Matrix se tornou um clássico no Gnosticismo pop onde o
homem é prisioneiro em um cosmos simulado por máquinas, no filme “Brilho Eterno
de Uma Mente Sem Lembranças” (2004) temos uma mudança nas representações do
Gnosticismo no cinema: agora o homem é prisioneiro em um mundo interno, a própria
mente, através do sono do esquecimento induzido por uma tecnociência demiúrgica.
“Brilho Eterno” é profético em relação ao novo século que então se iniciava ao
fazer uma crítica às chamadas tecnologias do espírito (autoajuda, neurociências
etc.) e a sua popularização através da cultura Prozac que promete deletar nossas
inquietações (sonhos e memórias) por meios de recursos fármacos e neurocientíficos
para, em troca, nos proporcionar a paz dos cemitérios.
Ao lado do
filme Vanilla Sky (2001), o filme de
Michel Gondry Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (Eternal Sunshine of the Spotless Mind, 2004) é um marco na história
dos filmes gnósticos. Esses dois filmes representaram o fim do que chamamos
modelo Matrix de Gnosticismo pop: o mundo ilusório no qual o protagonista se
encontra aprisionado é mais uma simulação tecnológica perfeita produto de um
Demiurgo computacional como em Matrix
(1999), aliens como Cidade das Sombras
(Dark City, 1998) ou um diretor de TV
como em Show de Truman (1999); a
partir de Vanilla Sky e Brilho Eterno vemos o protagonista preso
em um mundo interior devido a alguma desordem neurológica ou psíquica,
conflitos interiores, alucinações ou sonhos.
Se no modelo
Matrix de Gnosticismo pop já era colocado a necessidade da gnose através de uma
busca interior ou reforma íntima para conseguir superar a ilusão aprisionadora,
agora a partir de filmes como Brilho Eterno, esse mergulho interior passa a ser
mais profundo, demonstrando que a prisão começa a partir dos próprias bloqueios
psíquicos como traumas, ressentimentos e angústias.
E o roteiro de
Charlie Kaufman vai explorar dois temas importantes para o Gnosticismo relacionados
com o tempo: a memória e o esquecimento.
Para o gnosticismo o tempo é engano, mistificação, alienação e mentira.
Dentro da cosmologia criada pelo demiurgo o homem é um prisioneiro do tempo. O
tempo pertence ao mundo material, enquanto que o mundo superior é atemporal. O
gnóstico aspira ser liberado do tempo, libertar-se da fatalidade que reina
nesse cosmos, a fatalidade do tempo que passa e nos faz esquecer, eliminando a
duração. Por isso o Demiurgo quer acelerar o tempo e o esquecimento, contra os
quais os protagonistas de Brilho Eterno lutam para que suas memórias durem e
possam, com isso, libertarem-se.
O Filme
Joel Barish (Jim Carrey) é um homem introvertido e Clementine Krucznsky
(Kate Winslet) é a namorada impulsiva e com espírito livre. Eles são
inexplicavelmente atraídos um pelo outro apesar das suas diferentes
personalidades.
Eles não sabem, mas foram namorados, separados após dois anos juntos.
Após uma discussão, Clementine teve suas memórias desta relação apagadas
voluntariamente de sua mente após se submeter a um revolucionário processo de
apagamento mental de uma espécie de start
up tecnológica chamada Lacuna Inc. Joel ficou arrasado ao encontrar-se com
Clementine e perceber que ela não lembra mais dele. Como vingança também submete-se
ao mesmo procedimento de apagamento de memórias. No entanto, embora inconsciente
durante o processo, Joel decide manter
suas memórias de Clementine.
A partir desse ponto, grande parte da narrativa ocorre dentro das
memórias de Joel onde tenta encontrar uma maneira de preservar suas memórias de
Clementine enquanto os dois técnicos da Lacuna Inc., Patrick (Elijah Wood) e
Stan (Mark Ruffalo), tentam apagar as memórias.
Em um brilhante exercício narrativo, assistimos as memórias sobre a
história de Joel e Clementine sendo contadas em sentido inverso. As memórias
são lentamente apagadas enquanto Joel tenta de tudo para resistir ao processo,
escondendo-se cada vez mais no interior de sua mente.
Os técnicos da Lacuna
Inc. revelam-se mais do que personagens periféricos: seus relacionamentos
demonstram os danos potenciais que podem ser causados pelo procedimento de
apagamento das memórias. Mary (Kirsten Dunst), recepcionista da empresa, teve
um caso com o médico, o Dr. Howard Mierzwiak (Tom Wilkinson), inventor do procedimento
e dono da Lacuna Inc. Ela concordou em ter as memórias desse relacionamento
apagadas depois que a esposa de Mierzwiak descobriu o relacionamento. Patrick,
que é solitário e socialmente inepto, torna-se obcecado por Clementine e usa os
arquivos das memórias apagadas de Joel com a finalidade de seduzir Clementine.
Estas disputas românticas acabam tendo um efeito crítico sobre a história
principal do relacionamento entre Joel e Clementine.
O sono do esquecimento
O tema geral do filme é a Memória. Voluntariamente os personagens
utilizam os serviços da Lacuna Inc. para apagar suas memórias para poderem
seguir em frente nas suas vidas, sem o peso emocional (rancor, raiva, tristeza,
saudades etc.) de fracassos de relações amorosas do passado. Apesar do
esquecimento produzido por uma intervenção técnica, Clementine e Joel sentem o
mal-estar dos buracos existentes em suas memórias. Estes buracos são
experimentados ou como melancolia (Joel não escrevia diários porque, para ele,
sua vida apenas produziria páginas em branco) ou como paranoia.
No Gnosticismo, o sono do esquecimento é o principal recurso que o
Demiurgo lança mão para aprisionar o homem em seu cosmos, no filme representado
pelo Dr. Mierzwiack (Tom Wilkinson), proprietário da Lacuna Inc. e cientista
desenvolvedor da técnica de apagamento de memórias.
Tal qual na mitologia gnóstica, o Demiurgo aprisiona o homem dentro de
um cosmos artificialmente criado com o objetivo de manter em seu mundo as
partículas de Luz, partículas emanadas do Pleroma e contidas no ser humano.
Mierzwiack não apenas apaga as memórias de seus clientes como as mantém
arquivadas em seu poder (fitas gravadas, objetos pessoais, cartas, presentes
etc.). O Demiurgo também induz o homem ao “sono do esquecimento” – no filme,
metaforicamente representado na sequência onde Mierzwiack aplica mais uma
injeção com drogas na tentativa desesperada de Joel acordar e interromper o
processo de apagamento das memórias.
Stan, Patrick, os técnicos auxiliares do Dr. Mierzwiack e Mary
(recepcionista da Lacuna Inc.) são os Arcontes. Tal como na mitologia gnóstica,
são personagens que maliciosamente induzem e tentam manipular os personagens,
induzindo-os ao “sono do esquecimento”. Mas, como Demiurgos que se consideram
as únicas divindades do cosmos, tornam-se inebriados com o seu poder. Stan e
Patrick perdem os freios éticos. Patrick rouba os arquivos das memórias
apagadas de Clementine para tentar seduzi-la. Durante a noite, no apartamento
de Joel, enquanto colocam o computador que opera o apagamento das memórias no
automático, Patrick e Stan fumam maconha e esvaziam a garrafa de uísque do
armário da cozinha.
O personagem de Clementine atende a diversas características de Sophia
das narrativas míticas gnósticas. Ela
entra na vida de Joel para tirá-lo de uma espécie de condição letárgica (“minha
vida não daria uma página de diário”) que é ainda reforçada pelo sono induzido
pelos técnicos da Lacuna Inc. Embora introvertido e contido, é
inexplicavelmente atraído pela impulsividade e inconseqüência de Clementine. Em
vários momentos da narrativa, ela exorta Joel para que “acorde” ou “faça o seu
melhor” para que as memórias sejam mantidas a salvo do processo de apagamento.
As demiúrgicas tecnologias do espírito
Outro aspecto neste filme é o da crítica às tecnologias do self ou as “tecnologias do espírito” no
sentido dado pelo francês Lucien Sfez: uma secreta aliança com as
novas tecnologias computacionais ao comparar o psiquismo humano a um software,
o cérebro a um hardware e a interioridade humana como uma máquina expressiva
governada pelo mesmo princípio das redes telemáticas: rede, paradoxo, simulação
e interação. Estas “tecnologias do Eu” chegam na crista da onda eufórica em
relação à Internet e às tecnologias computacionais e de simulação – sobre esse
tema leia SFEZ, Lucien, A Saúde Perfeita:
crítica de uma nova utopia, Loyola, 1996.
A produção do filme é do começo da primeira década desse século, logo
após a quebra da Nasdaq, das empresas “ponto com” e de toda uma ressaca após a
panaceia que cercava a Internet e as tecnologias informáticas no final do
século XX. Aparentemente, as críticas em relação às tecnologias do
espírito nos filmes gnósticos pós-2000 se alinham ao refluxo desses sonhos
utópicos tecnocientíficos, isto é, filmes que
começam a demonstrar a falácia das tecnologias de autoajuda ou de autoconhecimento
(Beleza Americana, Donnie Darko, Quero
Ser John Malkovich etc.).
A técnica “revolucionária” da Lacuna Inc. é uma mordaz crítica ao
principal delírio digital de todos os cientistas e filósofos cibernéticos: a
metáfora do ser humano como máquina que só precisaria de lubrificantes,
combustível e, ocasionalmente, a troca de peças danificadas ou ineficientes,
como as memórias, no caso do filme Brilho
Eterno.
O brilhante roteiro de Charlie Kaufman faz uma crítica ao mesmo tempo
cínica e precisa da cultura Prozac (medicamento que parece prometer uma
cirurgia plástica mental) que vê com naturalidade tanto a supressão como o
controle farmacológico de emoções como o amor, ódio, ciúmes, vingança etc. Mas
como sempre se deparam com problemas como os sonhos, a memória e a linguagem.
Na medida em que pretendem aproximar o funcionamento da mente ao modelo
cibernético da programação do computador, as tecnologias do espírito pretendem
transformar todo o processo mental em termos de um fluxo de informações como input, output, feedback e
homeostase. Nesse paradigma, as memórias passam a ser disfuncionais, pois
causam dor, arrependimento e reflexão, pedras freudianas no sapato das ciências
neurocientíficas que continuam a receber vultosas somas de investimento para suas
pesquisas. Pesquisas que acabam gerando subprodutos populares como o Prozac,
formas de esquecimento rápidas para acalmar as turbulências da alma.
As tecnologias do espírito seriam a última arma demiúrgica para impor a
todos o sono do esquecimento: deletamos cientificamente nossas inquietações
para em troca recebermos a paz do cemitério.
Ficha Técnica |
Título: Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças
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Direção: Michel Gondry
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Roteiro: Charlie Kaufman
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Elenco: Jim Carrey, Kate Winslet, Tom Wikinson,
Elijah Wood, Mark Ruffalo, Kirsten Dunst
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Produção: Focus Features
|
Distribuição: Focus Features, United
International Pictures (UIP)
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Ano: 2004
|
País: EUA
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