Sai a estética
futurista de Hans Donner, entra os passos do funk e um visual menos high tech
onde até a icônica zebrinha dos anos 1970 que dava os resultados do futebol
parece renascer com nova roupagem. E tudo isso com muita auto-referência e metalinguagem. Essa é
a repaginada do programa dominical “Fantástico” e dos telejornais da emissora que
parecem sentir o golpe da perda de audiência e credibilidade. Uma simulação de
reunião de pauta com telespectadores dando palpites sobre temas
pré-estabelecidos no “Fantástico” é o desespero metalinguístico de criar uma
percepção de transparência e credibilidade de um jornalismo que tenta se
equilibrar entre o papel de oposição política assumido pela emissora e a
necessidade de aparentar objetividade noticiosa. A transformação da estética
Hans Donner na identidade visual da emissora parece apontar para o sintoma da sua perda
de relevância e o fim de uma utopia modernista que a TV Globo representou
durante da ditadura militar e não consegue mais sustentar diante do novo
cenário. E a resposta da emissora é autofágica.
Os tempos estão
mudando e a TV Globo já não é mais a mesma. As audiências vêm despencando há
muito tempo numa irresistível curva descendente para uma emissora que já chegou
a 100% de audiência com a novela Selva de Pedra em 1972 e o Jornal Nacional
dando 80% nos anos 1980. Bem diferentes são os tempos atuais: o Jornal Nacional desce aos 17%, a estreia
do Novo Fantástico no último domingo
registrou média de 16,5%, Silvio Santos supera os números de audiência do reality show musical SuperStar e assim por diante.
Paradoxalmente, o
faturamento da emissora é mantido em patamares elevados. Para os analistas,
graças ao impacto no mercado publicitário do famoso “incentivo”chamado BV
(Bonificação por Volume) – comissões repassadas da TV Globo para as agências de
publicidade que variam de acordo com o volume de propaganda negociado entre
elas. Seria o principal mecanismo que perpetuaria o monopólio midiático da
emissora.
Mas deter poder
financeiro, monopólio midiático e influência política principalmente quando se
transformou no principal partido de oposição ao atual governo pode não ser o
suficiente a médio prazo: sabe que os telespectadores estão cada vez mais não
só virando as costas para ela como também cresce na opinião pública a percepção
de que a Globo é uma emissora cujos conteúdos estão perdendo a credibilidade,
devendo ser colocados em constante suspeita.
Fim da estética Hans Donner?
A estreia do
chamado “Novo Fantástico”, assim como a repaginada visual e tecnológica que
todos os telejornais da emissora estão sofrendo, apontam para esse temor de uma
emissora que vê mudar rapidamente o cenário tecnológico (Internet e redes
sociais), cultural (a chamada nova classe média e os novos hábitos do consumo
representados, por exemplo, pelo “funk ostentação”) e político (a incapacidade
da oposição criar um projeto político, deixando para a TV Globo o papel de
oposição ao Governo Federal na base da linha editorial “esse País é uma merda!”).
É sintomático
nessa repaginada o visível abandono da estética space opera do artista digital austríaco Hans Donner que por
décadas conferiu a identidade visual da Globo valendo-lhe o apelido de “Vênus
platinada”.
Uma forçada "reunião de pauta" para simular transparência e credibilidade jornalística |
O que vimos nesse
último domingo é o Fantástico tentando
ser menos high tech e adotando um
visual, por assim dizer, mais “orgânico” e menos metálico e artificial: assoalho do cenário que
simula ser em tábuas de madeira, cenário instalado no meio de uma redação
jornalística com pequenas plateias onde se mesclam celebridades globais com
anônimos ao lado de telões, computadores e equipamentos discretamente
posicionados para simular uma integração dos temas e matérias à comunidade por
meio de redes sociais. Isso sem falar na conversa do apresentador Tadeu Schmidt
sobre a rodada de futebol com dois bonecos de pano, revivendo uma estética
pré-Hans Donner da icônica zebrinha que dava os resultados da rodada dos
campeonatos.
Mas o principal
sintoma de como a TV Globo acusa o mal estar diante da sua crise de
credibilidade: o Fantástico simula
uma reunião de pauta como fio condutor do programa. Novamente anônimos
mesclados com celebridades globais dando palpites sobre temas
pré-estabelecidos. Para quem não conhece o jargão jornalístico, as chamadas
reuniões de pauta são reuniões onde editores e sub-editores se encontram para
estabelecer a pauta de temas da edição do dia que orientará os repórteres ao
descrever o viés da matéria, quem será entrevistado, onde e como.
No Fantástico tudo
muito forçado e simulado já que vemos na verdade os apresentadores executando a função de uma espécie de ouvidor de opiniões e palpites de uma
“amostragem” de uma plateia que representaria o público do programa. Uma
simulação desesperada de transparência como resposta às críticas recorrentes de
manipulação no seu telejornalismo? Malabarismo da emissora para se manter entre
a credibilidade jornalística e o papel de oposição ferrenha ao governo federal?
Hans Donner: sai o futurismo entra o funk |
O abandono
progressivo da estética futurista de Hans Donner (saem as mulheres metálicas e os sólidos
geométricos voando em círculos no vazio, entra uma cara mais “nova classe média
C” com os passos do funk) e a metalinguagem generalizada de um programa que
quer simular a si mesmo produzindo matérias para criar a estética da
transparência talvez sejam os sinais do início do seu fim. Não a falência e o
desaparecimento da emissora, mas o fim de uma época onde a estética Hans Donner
imponha ao País um ideal de modernidade desejável. Hoje a TV Globo sente o golpe dessa crise da
relevância de uma utopia que ela mesma criou e tenta reverter a situação
mergulhando em progressivas metalinguagens e auto-referências.
Mas isso pode
resultar em algo patológico: o “tautismo” (tautologia + autismo): a doença de
todos os sistemas que em crise de dissipação de energia começam a devorar a si
mesmos na esperança de estender um pouco mais a própria existência.
A utopia modernista da TV Globo
Hans Donner entrou
na TV Globo em 1975, pelas mãos do fotógrafo David Drew-Zingg que o apresentou
a Walter Clark, então o diretor-geral da emissora. O design futurista de Donner
caiu como uma luva não só para a emissora, mas também para as necessidades
ideológicas do regime militar. Graças à rígida formação intelectual dentro do
Positivismo de Augusto Comte, os militares viam o desenvolvimento do País
somente possível por meio de uma elite de técnicos aos quais seriam submetidos
tanto os políticos como o povo. Esse novo visual idealizado por Hans Donner
transmitido diariamente em rede nacional criaria a roupagem estético-ideológica
necessária para esse projeto paradoxal que unia modernidade e ditadura.
Design e utopia: a modernização do mito da mulher e natureza brasileiras |
Para a TV Globo
era a chance da modernização da imagem do País que facilitasse a inserção dos
produtos da emissora no mercado internacional. Se o principal produto
oferecido para o mercado externo ainda eram mulheres e natureza, deveriam
superar os velhos clichês como Carmen Miranda, baianas e carnaval. Tudo isso
deveria ser “modernizado” em atmosferas futuristas e new wave em vinhetas e
aberturas com pirâmides, esferas e cones movimentados digitalmente.
Além disso, criava
a ideia de um “Brasil Grande” dentro do período do chamado “milagre econômico”
da ditadura militar para uma nova classe média identificada com a modernidade
transmitida pelos “enlatados” da TV Globo - pacotes com minisséries, filmes e
desenhos animados principalmente norte-americanos.
E a última e não menos importante função que a estética futurista de Hans Donner cumpriu: as
bancadas dos telejornais como fossem naves espaciais translúcidas e as
aberturas e vinhetas em computação gráfica conferiram ao jornalismo da emissora
uma aparência de objetividade emprestada das tecnociências. Enquanto a mídia
impressa era vista como partidária e ideológica, a estética space opera de laptops nas bancadas e os
logotipos desenhados a partir de sólidos geométricos platônicos conferia uma
imparcialidade científica aos noticiários e o trabalho da edição das notícias como
fosse realizado em laboratórios assépticos e high tech.
A utopia acabou: o tautismo
Tiago Leifert e o ônibus-estúdio: o desespero metalinguístico da TV Globo |
É interessante
perceber que paralelo à lenta e constante curva descendente de audiência e
credibilidade da TV Globo junto ao grande público, os programas
telejornalísticos e de entretenimento tornaram-se progressivamente
auto-referenciais (as notícias sempre remetem a personagens, novelas ou
programas da própria emissora criando uma constante transitividade entre ficção
e realidade) e metalinguísticos (a emissora insiste em mostrar a si mesma
transmitindo os acontecimentos – “se eu transmito, então é verdade”).
Do ônibus-estúdio
do Globo Esporte (onde o apresentador
Tiago Leifert se dividia entre falar dos novos gadgets tecnológicos da emissora e entrevistar jogadores de
futebol), passando pelo reality show jornalístico Profissão Repórter à simulação de reunião de pauta do Novo Fantástico testemunhamos um
mergulho da TV Globo na metalinguagem e auto-referência como reação à perda de
audiência e credibilidade. Disso resulta um movimento tautológico (a emissora
fala cada vez mais de si mesma) e um “fechamento operacional” da TV Globo em
relação ao mundo exterior, o autismo.
O enfraquecimento
da estética Hans Donner e a crise da utopia modernista que a TV Globo queria
trazer para o “Brasil Grande” da ditadura militar representa o fim do último
laço que a emissora ainda tinha com a realidade e a História. No seu lugar, uma
linguagem baseada em simulações de transparência, tautismo e uma estética “orgânica”
onde tenta se aproximar de uma certa ideia de “comunidade” onde pequenas amostragens
de telespectadores mesclados com celebridades globais dão palpites em supostas
discussões de pauta e entrevistas.
A situação atual
da TV Globo, portanto, se assemelharia ao caso de uma pessoa que, sob
condições extremas de fome ou de alteração do metabolismo basal, começa a
entrar em processo catabólico - processo de degradação onde o corpo começa a
consumir seu próprio tecido muscular.
Postagens Relacionadas |