Dia dos
Namorados se aproxima como mais uma data dentro da agenda comercial que envolve
Páscoa, Dia das Mães, Black Friday etc. Os críticos mais ingênuos acusam de
materialismo a imposição comercial da necessidade em demonstrar amor, afeto ou
carinho com presentes caros. Mas a crítica perde de vista algo de mais profundo
e perverso: se para a sociedade de consumo o amor é uma mercadoria, ela deve ser
inserida na lógica básica mercantil: a escassez do produto conduz a sua
valorização no mercado. Por isso, na atualidade estamos presenciando uma
intensa estratégia semiótica de produção de, por assim dizer, desencontros
marcados: frustrações afetivas, insatisfações sexuais e carências amorosas.
Tudo para criar a percepção de que o amor é um bem precioso porque está em falta,
agregando cada vez mais valor a jantares românticos, caixas de bom bons e joias.
Dessa forma, o amor é mais um bem que se insere na lógica mais geral de criação
de escassez para a criação de commodities como a água, meio ambiente, segurança
e felicidade.
Dia dos
namorados se aproxima, dessa vez ofuscada pela abertura da Copa do Mundo de
futebol no Brasil. Celebrado como o dia dos casais apaixonados, surgiu até
movimento publicitário de uma marca de cerveja para que o evento seja antecipado
um dia antes e os namorados possam acompanhar a abertura da Copa.
Realmente, toda
a publicidade e a sociedade de consumo sempre necessitaram do fluxo incessante
de amor, paixão, afeto e desejos como matéria prima para a promoção de
campanhas de produtos e serviços. Mas ao longo dos tempos o Dia dos Namorados
na mídia não se contentou apenas em usar o amor como isca subliminar para
vender carros, perfumes, chocolates, roupas e cosméticos. Mais do que isso, hoje
o amor é oferecido como mercadoria: como algo que você busca, encontra,
experimenta e conquista.
Hoje o amor é oferecido como mercadoria: como algo que você busca, encontra, experimenta e conquista. |
Se o amor virou
mercadoria à venda no mercado, então deve ser submetido a uma lei mercantil
básica como qualquer outro produto: em última instância a economia capitalista
exige a escassez como condição subjetiva básica para a demanda por utilidade –
quando mais escasso um bem, mais valorizado ele será pelo mercado. A sociedade de consumo parece ter colocado na
prática as formulações de Freud a Lacan de que o desejo é uma falta a ser metaforizada
– a falta como a causa do desejo decorrente da interdição edipiana.
A novidade é
que a sociedade de consumo não só metaforizou essa falta através de produtos
que prometem satisfações dos desejos por meio de fantasias, mas simula a falta
por meio de uma sistemática produção da escassez na percepção dos consumidores.
No caso do Dia dos Namorados, o sistemático reforço da percepção de que o amor
é um bem escasso no mercado afetivo. Quanto mais sentimos que a realização
amorosa é um bem precioso e difícil de ser encontrada, mais caro ela se torna
no mercado.
A percepção da
escassez do amor é o valor agregado para cada joia, caixa de bom bons, jantar
romântico em um restaurante ou perfume, que nos faz achar justificável pagar um
alto valor para uma data tão especial. Afinal, vivemos em épocas de uma suposta
penúria afetiva: dados estatísticos que apontam mais mulheres do que homens no
mundo, elevado número de separações e divórcios e toda uma gama de informações
repercutidas na mídia que criam uma atmosfera de baixo astral afetivo. Um
jantar romântico e caro não mais um presente, mas um investimento...
Luto e frustração amorosa
Se em todos os
Dias dos Namorados a publicidade e o marketing prometem conquistas, sedução e a
celebração dos momentos afetivos, de que maneira a escassez amorosa pode ser
produzida em uma atmosfera que parece transbordar de tanta positividade?
Talvez a
primeira pista esteja no filme BrilhoEterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004) onde em pleno Dia dos Namorados um casal
tentar deletar das suas memórias através da neurociência o fracasso de sua vida
amorosa como forma de seguir em frente na vida, sem traumas. O amor romântico e
estável como pano de fundo em cada peça publicitária entre em conflito com o
amor permissivo que surge da atmosfera dominante das emoções-choque do
dia-a-dia da sociedade de consumo. Uma certa dose de insensibilidade ou frieza
é necessária para nos protegermos de experiências dolorosas.
Como Freud
certa vez afirmou, a experiência talvez mais dolorosa na existência seja a
separação daqueles a quem se ama, seja pela morte ou pela separação amorosa –
ambas cercadas por rituais análogos de lutificação – veja o texto “Luto e
Melancolia” nas Obras Completas de
Sigmund Freud. Hoje, esses rituais vitorianos são pesados demais para o nosso
psiquismo leve do consumo. Por isso, quanto mais escassa a percepção da
realização amorosa, mais esvaziamos nossas expectativas ao substituir o
desejável pelo possível. Uma escassez conveniente: de um lado nos protege de
compromissos sérios que poderiam nos machucar emocionalmente e, do outro, ajuda
a agregar mais valor aos restaurantes, motéis, buquês de flores e chocolates.
A construção semiótica da escassez
Revolução sexual dos anos 60: o sexo como uma revolução das vendas |
Essa história
da construção semiótica da escassez do amor se inicia na época da chamada
“revolução sexual” dos anos 1960-70. Toda a revolução de vendas produzida pela
pílula anticoncepcional e a erotização generalizada de bens e serviços
conduzida pela sociedade de consumo baseou-se numa premissa: o sexo e o prazer
são escassos por causa da repressão sexual de uma sociedade “careta”. O rock, a
indústria pornográfica e toda a cultura pop foram mobilizados para a satisfação
sexual. O sexo foi valorizado por ser escasso e os produtos que ajudavam os
jovens a se libertarem (roupa, moda e comportamento) se tornaram, por uma
relação de oferta e demanda, caros e lucrativos.
O último grito
de emancipação de um bem supostamente escasso foi o de Madonna cantando Like a Virgin em uma cama giratória no
meio do palco em shows com modelitos sado-masoquistas, desenhados pelo
estilista Jean Paul Gaultier em 1990. A partir desse ponto, a geração MTV vivia
a sexualidade de forma plena e os namoros livres sem mais a velha repressão
familiar.
Como bem
disponível e de fácil alcance, a mercantilização do amor e do sexo corria
sérios riscos: depreciar-se e deixar de ser a isca subliminar das compras. Para
tornar o amor escasso e, portanto, desejável uma nova estratégia foi mobilizada
em um ambiente agora permissivo: os desencontros marcados. Em tempos de sexo
permissivo, a realização amorosa deve ser perigosamente frustrante e ameaçadora
à estabilidade psíquica dos amantes.
A ameaça viral
da AIDS foi o início da construção do imaginário do amor como algo
potencialmente perigoso e mortal. Mas a consolidação da estratégia dos
desencontros marcados foi consolidada com o desenvolvimento de três técnicas
simultâneas:
1 – Compensação oral
Fast food, chocolates e doces como prazeres substitutos para amores
frustrados ou perdidos. Revival de um
amor romântico idílico, puro e inocente, que pode somente ser resgatado por
meio da comida. A campanha “First Love” da rede de fast food McDonalds, no anos 1980, foi seminal e ao longo dos anos
reeditada por vários filmes publicitários em diferentes países: o primeiro amor
da infância que se perdeu, mas que você pode tê-lo para sempre de volta através
do sabor da bata frita passada do sorvete sundae.
Se no passado o
chocolate era um presente que celebrava uma relação estabilizada, hoje é a
compensação de um amor frustrado como podemos ver na imagem ao lado de um
outdoor da Hershey’s. A associação simbólica do chocolate ou do doce com o amor
(“o amor é uma experiência doce”). Mas o imaginário da caixa de bom bons em forma
de coração ainda é um símbolo arquetípico forte, mas agora com uma ambiguidade
latente: ao mesmo tempo símbolo da celebração do amor romântico e compensação
oral do fantasma de uma futura frustração amorosa .
2 – O Duplo Vínculo
A mídia divulga
mensagens contraditórias para homens e mulheres. Enquanto nas revistas
femininas as mulheres querem fusão, companheirismo e erotização do
relacionamento conjugal, ao contrário, nas revistas masculinas o homem que
liberdade individual e segurança maternal. Enquanto o homem foge fobicamente
das emoções em revistas cuja pauta mostra fotos de mulheres reduzidas a
excitação por um fragmento (bundas, peitos etc.) ou notícias e entrevistas
metrossexuais sobre moda e estilo, nas revistas femininas a leitora recebe uma
enxurrada de ordens e instruções de autoridades e especialistas sobre o que os
homens supostamente pensam delas e como as mulheres podem gerir seus
sentimentos no trabalho, família e sexo.
Diferente das revistas masculinas onde
a mulher é representada de forma fragmentada como fetiche, ao contrário nas
revistas femininas o homem é representado sem fragmentação, como se oferecesse
integralmente, corpo e alma, abraçando e olhando fixamente para os olhos da
mulher amada.
Semioticamente,
as revistas femininas trabalham com efeitos de sentido (prescrições e regras
prescritas) e as masculinas com mecanismos de ambiguação (moral ambígua entre a
conquista e sedução e o amor romântico).
Colocando em
outros termos, é como se as revistas femininas (Nova, Marie Claire, Noivas e
Noivos etc.) e as masculinas (Playboy, VIP, Status etc.) colocassem na mesma
cama Dom Juan e Cinderela.
Não há relação
sexual, mas um desarranjo essencial! Portanto, não é de espantar os resultados
de pesquisas sobre a vida sexual de brasileiros dando conta de um número alto
feminino alto de falta de desejo (35%) e sem orgasmo (30%) – veja “Vida sexual do
brasileiro”.
Ou a pesquisa feita pela Durex Global Sex Survey em 36 países com 29 mil
pessoas dando conta que 51% dos homens e 56% das mulheres se declaram infelizes
com a vida sexual – veja “Metade dos
brasileiros está insatisfeita com a vida sexual, diz pesquisa.”.
3 – Dessimbolização
Os presentes do
Dia dos Namorados possuem uma forte origem simbólica como forma de dádiva, como
vínculo de almas ou forma de transmissão do prestígio ou do mana – emanação de força espiritual ou
vital que une grupos ou pessoas, arquétipo universal presente em diversas
religiões ou culturas como, por exemplo, awen
(mitologia galesa), numen (romana) ou
ka (egípcia).
Essas origens
simbólicas são eliminadas dos presentes nas sociedades de consumo já que, como
vimos, ela explora as relações afetivas de forma contraditória buscando a
escassez do produto para sua valorização no mercado. Por exemplo, anéis ou joias
celebrariam a eternidade da união, o vínculo simbólico criado por uma energia espiritual.
Dessimbolizado, a publicidade e o marketing tornam os presentes com índices de
sedução, conquista, status e prestígio.
Indo mais além,
os presentes começam a se inserir na própria linguagem midiática ou
propagandística da criação de impacto: telegramas animados, helicópteros
alugados para serem jogados quilos de pétalas de rosas sobre a amada, outdoors customizados com mensagens de
amor etc.
De símbolos da
celebração da estabilidade e comunhão, passam a se inserir na lógica do efeito
especial, da excitação, do efêmero e do impacto propagandístico.
Dessa forma, o
amor se insere em uma lógica mais geral de produções incessantes de escassez e
penúria para que, convertidos bens preciosos, tornem-se commodities em um
processo universal de mercantilização: a criação planejada da escassez para a
privatização e comercialização da água, meio ambiente, ar, segurança,
felicidade e assim por diante.
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