quarta-feira, maio 28, 2014

A bomba semiótica fashion da Ellus

Modelos vestindo uma camiseta onde se lia “Abaixo Este Brasil Atrasado”. Dessa forma terminava o desfile da Ellus no último SPFW após um desfile repleto de signos militares estilizados. Mais tarde, a irônica foto da mesma camiseta na vitrine de uma loja da grife tendo ao lado um manequim carregando uma blusa com o icônico Mickey Mouse estampado. Essa é a mais nova bomba semiótica, dessa vez fashion. E por que? Porque o niilismo político é fashion, assim como os radicais chics com o seu visual “heroin hero”. Desde que o dandismo morreu com Oscar Wilde, a moda sente a necessidade de expiar o fantasma da sua suposta futilidade e superficialidade. O niilismo político da camiseta que protesta contra o “Brasil Atrasado” é a reedição da estratégia de tornar a moda supostamente sintonizada com a realidade do seu tempo, assim como Viviene Westwood fez com o Punk. E para isso, a Ellus foi buscar na atmosfera turva e tensa da atualidade o mote para tentar mostrar que Moda possui alguma relevância política.

Em uma vitrine de uma loja da grife Ellus em um shopping na Zona Sul do Rio de Janeiro vemos vários manequins com modelos da marca. Chama a atenção uma camiseta preta com os dizeres “Abaixo Este Brasil Atrasado”. Ironicamente, ao lado vemos outro manequim com uma blusa em que vemos o icônico personagem do Mickey Mouse estampado.

A engajada camiseta teve sua estreia no desfile da coleção Primavera-Verão 2014-15 no São Paulo Fashion Week (SPFW) em abril desse ano, com toda pompa e circunstância, com direito até a “carta-manifesto”. Ciceroneado pelo galã global Cauã Reymond, ele entra na passarela ao final com os fashionistas Adriana Bozon, Lea T., Laís Ribeiro e Rodolfo Murilo, todos vestindo a engajada camiseta da Ellus, para finalizar com uma selfie diante dos fotógrafos.

A “carta-manifesto” (na verdade uma colcha de retalhos com os principais mantras repercutidos por redes sociais e nas colunas econômicas da grande mídia) fala em “Brasil=ineficiência, improdutividade”, “custo Brasil”, “políticos e governos antiquados”, “protecionismo” e a ameaça de ficarmos “isolados nas geleiras do Polo Sul”.


Ironia: o "Brasil Atrasado" deseja
ser Mickey Mouse?
Certamente estamos diante de mais uma bomba semiótica: uma camiseta com uma mensagem que surge em uma atmosfera politicamente carregada, onde a Copa do Mundo transformou-se em verdadeiro campo de batalha simbólico entre o “Brasil Moderno” e o “Brasil Atrasado”, entre o “Brasil que perdeu a Copa fora de campo”, como afirmou o ex-jogador e agora deputado federal Romário e o Brasil de Neymar Jr. que “ganhará a Copa para trazer esperança ao brasileiro”, como messianicamente proferiu Fausto Silva no último domingo.

A bomba do niilismo

O interessante na aplicação do método da semiótica na análise de um discurso como esse que demonstra que a indústria da Moda também entra no atual campo das guerrilhas semiológicas, é que mais importante do que o discurso explícito (os dizeres da camiseta e a “carta-manifesto”), é o que ele representa: o sintoma. Como o velho Karl Marx dizia, o mais importante não é o que os homens dizem, mas os seus atos. Ou, fundindo essa máxima do materialismo histórico com a análise freudiana, o mais importante seria o que na verdade os homens gostariam de fazer, desejos incontidos que sempre retornam como sintomas recorrentes.

A estreia da camiseta e carta-manifesto foi em um desfile da Ellus no SPFW em abril onde, segundo a jornalista especializada em moda Lilian Pacce, alguns estilistas “pegaram mal a mensagem” pelo desfile ocorrer ao lado de bandeiras e roupas com referências e estilos militarizados. Para a jornalista, o mal estar das alusões em um mês marcado pelos 50 anos do golpe militar no Brasil teria sido diluído com a divulgação da “carta-manifesto” e da camiseta que reivindica que tudo venha abaixo.

A racionalização de Lilian Pacce é reveladora pela associação metonímica e sintomática entre o manifesto e as roupas com formas geométricas da bandeira nacional em alusões militares. Sintoma? Será que a associação de signos militares com manifestação de protesto contra políticos e governos “atrasados” foi um ato falho? Por que a força de um protesto necessariamente passaria por signos militarizados, como sugere a jornalista? Para ela, por isso, a mensagem da Ellus tornou-se compreensível, deixando de “pegar mal”: a força do “Abaixo” veio com uma retórica militarizada...

Aqui se revela o núcleo dessa bomba semiótica neoconservadora: o niilismo. Uma manifestação política de protesto que nega a própria política. O niilismo é fashion porque agressivo, radical, tão sem esperança quando o visual heroin heroe ou decadentes chics tão ao gosto de modelos e estilistas.

Desfile Ellus no SPFW: signos
militares estilizados no
"Brasil Atrasado"
Em postagem anterior revelávamos a preocupação da ascensão do chamado retrofascismo: um suposto discurso crítico que, na verdade, esconde a busca de soluções finais, radicais e não negociadas ou discutidas por canais representativos e socialmente legítimos – o Estado de Direito. Niilismo que abre espaço para o sebastianismo, messianismo e líderes carismáticos e até fashions cuja histeria é confundida com consciência política – sobre isso clique aqui

Eufemismo e má consciência

Outro sintoma é o do eufemismo. A “carta-manifesto” fala em um País “burocratizado” para que se possa “exportar nosso design sem todo esse custo” e que, por isso, precisa ser “simplificado”.

Curioso é que essa “simplificação” é o léxico dos economistas neoliberais para os quais a racionalidade individual pela busca da melhor relação custo/benefício é moralmente boa em si mesma, tornando qualquer iniciativa de controle dos diversos apetites individuais como moralmente mal. Afinal, ganhar dinheiro é bom! Ambição é boa!

A carta deixa transparecer essa tensão entre a busca do caminho simples, direto e natural e um país que parece dificultar esse Direito Natural.

De fato, o Estado brasileiro parece “dificultar” esse direito natural em vários episódios na área da Moda: a prisão da empresária dona da butique Daslu em 2009 por fraude, formação de quadrilha, contrabando e falsificação de documentos para sonegar impostos; a denúncia de que a grife de luxo Le Lis Blanc utiliza trabalho escravo em São Paulo em confecções “quarteirizadas”, com imigrantes bolivianos vivendo em beliches e quartos apertados e insalubres – clique aqui; a descoberta de 28 costureiros bolivianos em trabalho análogo a de escravos em oficina clandestina em São Paulo onde produziam peças para a empresa GEP (formada pelas marcas Emme, Cori e Luigi Bertolli) – clique aqui.

Ou ainda a notificação feita pelo Ministério Público do Trabalho para a própria Ellus sobre práticas de trabalho análogas de escravos em sua linha de produção. Isso sem falar no calote da grife de luxo Maria Bonita dado em 200 bordadeiras de Barbacena (MG), que não recebem os pagamentos desde 2012 – chegaram a protestar em frente a uma loja da grife na Zona Sul do Rio de Janeiro – clique aqui.

A má-consciência da Ellus: linha
de produção com trabalho
análogo a de escravo
“Reformas estruturantes”, “flexibilização”, “desregulamentação” e “simplificação” são sinônimos eufemísticos que de forma indireta expressam o desejo do capital querer encontrar caminhos mais curtos e retos para a lucratividade.  “Brasil Atrasado” na verdade quer dizer “Brasil Regulamentado”, ou seja, a antítese da livre e amoral busca do lucro. Na prática, resulta o total descompromisso social através da destruição do emprego alheio e aproveitamento oportunista das mazelas sociais como migração ilegal e miséria.
Por isso, de eufemismo o “desfile-manifesto” da Ellus expressa também uma má consciência. Assim como no mesmo SPFW a grife Cavalera também fez um “desfile-manifesto” contra “os males que aflinge o País” com modelos carregando cruzes com dizeres “impunidade”, “preconceito” e “Indiferença”, a Ellus faz seu manifesto talvez como forma de expiar sua má-consciência.

O remake da camiseta

Mas a camiseta e desfile-manifesto também traz uma sensação de deja vu e remake. Desde que o dandismo morreu na figura do escritor inglês Oscar Wilde (a arte pela arte sem culpas), a Moda passou a ser assombrada pelo fantasma da culpa pela sua suposta frivolidade, superficialidade e inutilidade em um mundo moderno de rápidas transformações. Por exemplo, na década de 1920, Coco Chanel (1883-1971) concentrava em seu apartamento a intelligentsia artística e filosófica da sua época, procurando uma equivalência entre a moda e o espírito da época, que foi sintetizado na flagrância do perfume Chanel n° 5. Na Rússia, Nadejda Lamanova (1861-1941) interpretou na moda a arte abstrata de Kandinsky.

Um galã global para turbinar o clichê
da moda que quer ser engajada por
culpa e má-consciência
Em tempo mais atuais, a estilista Zuzu Angel, ao ver seu filho ser perseguido, torturado e morto pela ditadura militar brasileira, passou a usar a moda como manifesto político. Na Inglaterra, Viviene Westwood (a estilista do Punk nos anos 1970) em 2005 lança a camiseta com a frase “Não sou terrorista, por favor, não me prenda”, como protesto as duvidosas leis anti-terroristas.

As camisetas são um verdadeiro arquétipo contemporâneo de revolta, desde que James Dean e Marlon Brando começaram a usar como peça única e independente no cinema.

Por isso a carta-manifesto é um pastiche e a camiseta de protesto um remake: é a enésima recorrência de um clichê sempre usado para a moda expiar a má consciência e o fantasma da sua inutilidade simbólica – simbólica, porque industrialmente é útil e rentável. Mas o imaginário permanece e necessita ser exorcizado.


O clichê da camiseta de protesto já está tão surrado que, para turbiná-lo, a Ellus teve que trazer um galã global para ter alguma repercussão. Mas, como toda bomba semiótica, esta já explodiu e soma aos estilhaços de tantas outras que tornam o clima midiático atual turvo e tenso.

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