Modelos
vestindo uma camiseta onde se lia “Abaixo Este Brasil Atrasado”. Dessa forma
terminava o desfile da Ellus no último SPFW após um desfile repleto de signos
militares estilizados. Mais tarde, a irônica foto da mesma camiseta na vitrine
de uma loja da grife tendo ao lado um manequim carregando uma blusa com o
icônico Mickey Mouse estampado. Essa é a mais nova bomba semiótica, dessa vez
fashion. E por que? Porque o niilismo político é fashion, assim como os
radicais chics com o seu visual “heroin hero”. Desde que o dandismo morreu com
Oscar Wilde, a moda sente a necessidade de expiar o fantasma da sua suposta
futilidade e superficialidade. O niilismo político da camiseta que protesta contra
o “Brasil Atrasado” é a reedição da estratégia de tornar a moda supostamente sintonizada
com a realidade do seu tempo, assim como Viviene Westwood fez com o Punk. E
para isso, a Ellus foi buscar na atmosfera turva e tensa da atualidade o mote
para tentar mostrar que Moda possui alguma relevância política.
Em uma vitrine
de uma loja da grife Ellus em um shopping na Zona Sul do Rio de Janeiro vemos
vários manequins com modelos da marca. Chama a atenção uma camiseta preta com
os dizeres “Abaixo Este Brasil Atrasado”. Ironicamente, ao lado vemos outro
manequim com uma blusa em que vemos o icônico personagem do Mickey Mouse
estampado.
A engajada
camiseta teve sua estreia no desfile da coleção Primavera-Verão 2014-15 no São
Paulo Fashion Week (SPFW) em abril desse ano, com toda pompa e circunstância,
com direito até a “carta-manifesto”. Ciceroneado pelo galã global Cauã Reymond,
ele entra na passarela ao final com os fashionistas Adriana Bozon, Lea T., Laís
Ribeiro e Rodolfo Murilo, todos vestindo a engajada camiseta da Ellus, para
finalizar com uma selfie diante dos
fotógrafos.
A “carta-manifesto”
(na verdade uma colcha de retalhos com os principais mantras repercutidos por
redes sociais e nas colunas econômicas da grande mídia) fala em “Brasil=ineficiência,
improdutividade”, “custo Brasil”, “políticos e governos antiquados”,
“protecionismo” e a ameaça de ficarmos “isolados nas geleiras do Polo Sul”.
Ironia: o "Brasil Atrasado" deseja ser Mickey Mouse? |
Certamente
estamos diante de mais uma bomba semiótica: uma camiseta com uma mensagem que
surge em uma atmosfera politicamente carregada, onde a Copa do Mundo
transformou-se em verdadeiro campo de batalha simbólico entre o “Brasil
Moderno” e o “Brasil Atrasado”, entre o “Brasil que perdeu a Copa fora de
campo”, como afirmou o ex-jogador e agora deputado federal Romário e o Brasil
de Neymar Jr. que “ganhará a Copa para trazer esperança ao brasileiro”, como
messianicamente proferiu Fausto Silva no último domingo.
A bomba do
niilismo
O interessante
na aplicação do método da semiótica na análise de um discurso como esse que
demonstra que a indústria da Moda também entra no atual campo das guerrilhas
semiológicas, é que mais importante do que o discurso explícito (os dizeres da
camiseta e a “carta-manifesto”), é o que ele representa: o sintoma. Como o
velho Karl Marx dizia, o mais importante não é o que os homens dizem, mas os seus
atos. Ou, fundindo essa máxima do materialismo histórico com a análise
freudiana, o mais importante seria o que na verdade os homens gostariam de
fazer, desejos incontidos que sempre retornam como sintomas recorrentes.
A estreia da
camiseta e carta-manifesto foi em um desfile da Ellus no SPFW em abril onde,
segundo a jornalista especializada em moda Lilian Pacce, alguns estilistas
“pegaram mal a mensagem” pelo desfile ocorrer ao lado de bandeiras e roupas com
referências e estilos militarizados. Para a jornalista, o mal estar das alusões
em um mês marcado pelos 50 anos do golpe militar no Brasil teria sido diluído
com a divulgação da “carta-manifesto” e da camiseta que reivindica que tudo venha
abaixo.
A
racionalização de Lilian Pacce é reveladora pela associação metonímica e
sintomática entre o manifesto e as roupas com formas geométricas da bandeira
nacional em alusões militares. Sintoma? Será que a associação de signos
militares com manifestação de protesto contra políticos e governos “atrasados”
foi um ato falho? Por que a força de um protesto necessariamente passaria por
signos militarizados, como sugere a jornalista? Para ela, por isso, a mensagem
da Ellus tornou-se compreensível, deixando de “pegar mal”: a força do “Abaixo”
veio com uma retórica militarizada...
Aqui se revela
o núcleo dessa bomba semiótica neoconservadora: o niilismo. Uma manifestação
política de protesto que nega a própria política. O niilismo é fashion porque agressivo, radical, tão
sem esperança quando o visual heroin
heroe ou decadentes chics tão ao
gosto de modelos e estilistas.
Desfile Ellus no SPFW: signos militares estilizados no "Brasil Atrasado" |
Em postagem
anterior revelávamos a preocupação da ascensão do chamado retrofascismo: um
suposto discurso crítico que, na verdade, esconde a busca de soluções finais,
radicais e não negociadas ou discutidas por canais representativos e
socialmente legítimos – o Estado de Direito. Niilismo que abre espaço para o
sebastianismo, messianismo e líderes carismáticos e até fashions cuja histeria
é confundida com consciência política – sobre isso clique aqui.
Eufemismo e má
consciência
Outro sintoma é
o do eufemismo. A “carta-manifesto” fala em um País “burocratizado” para que se
possa “exportar nosso design sem todo esse custo” e que, por isso, precisa ser
“simplificado”.
Curioso é que
essa “simplificação” é o léxico dos economistas neoliberais para os quais a
racionalidade individual pela busca da melhor relação custo/benefício é
moralmente boa em si mesma, tornando qualquer iniciativa de controle dos
diversos apetites individuais como moralmente mal. Afinal, ganhar dinheiro é
bom! Ambição é boa!
A carta deixa
transparecer essa tensão entre a busca do caminho simples, direto e natural e
um país que parece dificultar esse Direito Natural.
De fato, o
Estado brasileiro parece “dificultar” esse direito natural em vários episódios
na área da Moda: a prisão da empresária dona da butique Daslu em 2009 por
fraude, formação de quadrilha, contrabando e falsificação de documentos para
sonegar impostos; a denúncia de que a grife de luxo Le Lis Blanc utiliza
trabalho escravo em São Paulo em confecções “quarteirizadas”, com imigrantes
bolivianos vivendo em beliches e quartos apertados e insalubres – clique aqui; a descoberta
de 28 costureiros bolivianos em trabalho análogo a de escravos em oficina
clandestina em São Paulo onde produziam peças para a empresa GEP (formada pelas
marcas Emme, Cori e Luigi Bertolli) – clique aqui.
Ou ainda a
notificação feita pelo Ministério Público do Trabalho para a própria Ellus sobre
práticas de trabalho análogas de escravos em sua linha de produção. Isso sem
falar no calote da grife de luxo Maria Bonita dado em 200 bordadeiras de
Barbacena (MG), que não recebem os pagamentos desde 2012 – chegaram a protestar
em frente a uma loja da grife na Zona Sul do Rio de Janeiro – clique aqui.
A má-consciência da Ellus: linha de produção com trabalho análogo a de escravo |
“Reformas
estruturantes”, “flexibilização”, “desregulamentação” e “simplificação” são
sinônimos eufemísticos que de forma indireta expressam o desejo do capital querer encontrar caminhos mais curtos e retos para a lucratividade. “Brasil Atrasado” na verdade quer dizer “Brasil
Regulamentado”, ou seja, a antítese da livre e amoral busca do lucro. Na
prática, resulta o total descompromisso social através da destruição do emprego
alheio e aproveitamento oportunista das mazelas sociais como migração ilegal e
miséria.
Por isso, de
eufemismo o “desfile-manifesto” da Ellus expressa também uma má consciência.
Assim como no mesmo SPFW a grife Cavalera também fez um “desfile-manifesto”
contra “os males que aflinge o País” com modelos carregando cruzes com dizeres
“impunidade”, “preconceito” e “Indiferença”, a Ellus faz seu manifesto talvez
como forma de expiar sua má-consciência.
O remake da camiseta
Mas a camiseta
e desfile-manifesto também traz uma sensação de deja vu e remake. Desde que o
dandismo morreu na figura do escritor inglês Oscar Wilde (a arte pela arte sem
culpas), a Moda passou a ser assombrada pelo fantasma da culpa pela sua suposta
frivolidade, superficialidade e inutilidade em um mundo moderno de rápidas
transformações. Por exemplo, na década de 1920, Coco Chanel (1883-1971)
concentrava em seu apartamento a intelligentsia artística e filosófica da sua
época, procurando uma equivalência entre a moda e o espírito da época, que foi
sintetizado na flagrância do perfume Chanel n° 5. Na Rússia, Nadejda Lamanova
(1861-1941) interpretou na moda a arte abstrata de Kandinsky.
Um galã global para turbinar o clichê da moda que quer ser engajada por culpa e má-consciência |
Em tempo mais
atuais, a estilista Zuzu Angel, ao ver seu filho ser perseguido, torturado e
morto pela ditadura militar brasileira, passou a usar a moda como manifesto
político. Na Inglaterra, Viviene Westwood (a estilista do Punk nos anos 1970)
em 2005 lança a camiseta com a frase “Não sou terrorista, por favor, não me
prenda”, como protesto as duvidosas leis anti-terroristas.
As camisetas
são um verdadeiro arquétipo contemporâneo de revolta, desde que James Dean e
Marlon Brando começaram a usar como peça única e independente no cinema.
Por isso a
carta-manifesto é um pastiche e a camiseta de protesto um remake: é a enésima
recorrência de um clichê sempre usado para a moda expiar a má consciência e o
fantasma da sua inutilidade simbólica – simbólica, porque industrialmente é
útil e rentável. Mas o imaginário permanece e necessita ser exorcizado.
O clichê da
camiseta de protesto já está tão surrado que, para turbiná-lo, a Ellus teve que
trazer um galã global para ter alguma repercussão. Mas, como toda bomba
semiótica, esta já explodiu e soma aos estilhaços de tantas outras que tornam o
clima midiático atual turvo e tenso.
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