sábado, maio 31, 2014

A bomba semiótica Forte Apache

Depois de 14 anos das comemorações dos 500 anos do descobrimento do Brasil onde os índios foram recebidos com armas e bombas pela polícia e a grande mídia relatou tudo de forma burocrática e irônica, repentinamente eles foram redescobertos e levados a sério. “Índios cercam o Palácio do Planalto” é o tom geral das manchetes com muitas fotos com flechas e índios em poses ameaçadores em contraste ao futurismo de Brasília. É a bomba semiótica Forte Apache. Esse conceito não tem nada de ironia ou deboche: o núcleo dessa bomba linguística são fotos onde poses e situações forçam a associação com o imaginário hollywoodiano do western. Seja apanhando, sejam fotografados, os indígenas brasileiros continuam estranhos em sua própria terra: às vésperas do campo de batalhas simbólico decisivo da Copa do Mundo, tornam-se, agora, suportes passivos dos signos construídos por espertos fotógrafos. São as “fotos-choques”, estado semiótico intermediário entre o fato real e o fato alterado.

O presidente eleito pelo colégio eleitoral em 1985, Tancredo Neves estava entre a vida e a morte no Hospital das Clínicas em São Paulo. E eu iniciava minha carreira no jornalismo como um "foca" na reportagem do jornal A Tribuna de Santos. Ficava impressionado como, apesar do caos que era uma redação, o jornal conseguia ser finalizado e chegava diariamente nas bancas. Aos poucos ia pegando os macetes: as notícias e os textos jornalísticos eram praticamente padronizados, bastando apenas preencher as variáveis: o que, quem, quando, como, onde e por que.

Enquanto Tancredo agonizava em São Paulo e o País torcia pela sua recuperação, descobri que a lógica de linha de produção das redações era fria e pragmática: nas gavetas da mesa do diretor da redação já estavam prontos obituários, biografia, editoriais, retrancas (palavra ou pequena frase sobre manchetes para apresentar o tema da matéria), fotos e páginas inteiras já diagramadas sobre vida e morte de Tancredo Neves.

Logo entendi todo o processo semiótico de produção noticiosa que permitia que aquela loucura de vai e vem na redação desse certo: editores e diretores produziam uma forma, uma estrutura de texto onde a reportagem apenas preenchia as lacunas com as variáveis da chamada “pirâmide invertida” da matéria jornalística. Tempo era racionalizado e as matérias prontas em minutos. Um processo tão técnico e pragmático que os repórteres não percebiam o viés, o enfoque ideológico que sempre estava nessa estrutura pré-fabricada que descia do "aquário" das reuniões de pauta para nós, os "focas".


"A Copa como ELA É": retrancas jornalísticas
prontas. Basta preencher as lacunas de
um texto pré-fabricado
Às vésperas da Copa do Mundo no Brasil fica mais evidente essa racionalização semiótica da produção de notícias, onde o pragmatismo deve se aliar à guerrilha semiológica que se trava em um ano eleitoral: as lacunas dessas estruturas pré-fabricadas que a reportagem deve preencher são verdadeiras bombas semióticas: não importa a variável, qualquer notícia é inserida na retranca do fracasso da Copa.

Tal como na morte de Tancredo Neves que a imprensa já tinha matérias e páginas com a estrutura já pronta à espera dos acontecimentos, da mesma forma hoje a grande mídia já possui retrancas, estruturas de textos prontas à espera de qualquer acontecimento nos dias que antecedem a Copa do Mundo e durante o próprio evento esportivo – o que dizer então dos esgares maliciosos de William Waack ao dar a notícia da compra de carros anti bombas para a Copa ou a histeria dos jornalistas da Sport TV anunciando uma tragédia que não aconteceu no jogo Santos e Bahia em um estádio lotado em Feira de Santana para, no dia seguinte, Tiago Leifert falar que “poderíamos estar dando aqui uma notícia trágica...”

Índios e o jornalismo metonímico


O episódio dos protestos indígenas em Brasília é um bom exemplo da dinâmica de montagem dessas bombas semióticas que, acreditem, terão a potência de megatons durante a Copa. A Folha de São Paulo, por exemplo, já possui a retranca “A Copa como ELA É” onde são colocadas notícias desde a suspeita de contusão de Cristiano Ronaldo até protestos de professores em frente da Prefeitura de São Paulo.

Pois nessa retranca surgem os protestos indígenas pela questão da demarcação de terras e que, para a grande mídia, só podem ser mais um protesto contra a Copa do Mundo. Depois de anos fazendo o jornalismo adversativo (o PIB cresceu, mas... o desemprego aumentou) agora temos o jornalismo metonímico onde qualquer notícia possui uma estranha evidência em si mesmo de que somente aconteceu porque a Copa do Mundo está próxima.

Índios fazendo protesto em Brasília não é nenhuma novidade. A novidade é como esse protesto foi inserido em um novo frame, a notícia que preenche aquela lacuna de uma estrutura invisível aos olhos do leitor.

Brasil 500 anos versus Copa do Mundo


Indios protestam em Brasília na comemoração
dos 500 anos do Descobrimento em 2000:
ao contrário de hoje, cobertura midiática
burocrática e irônica.
Por exemplo, em 2000 o Brasil comemorava os 500 anos do descobrimento. Dias antes das comemorações em Porto Seguro/BA, índios yanomanis e xavantes fizeram marcha a Brasília para reivindicar novo estatuto que rege seus povos. Um deles quase agrediu o presidente do Congresso Antônio Carlos Magalhães. Mais tarde, nas comemorações dos 500 anos na Bahia, a reação da PM foi desproporcional e violenta.

E como a grande mídia relatou esses acontecimentos? Poucas fotos, cobertura entre anódina e irônica. O semanário Veja, por exemplo, viu os acontecimentos como um grande samba-enredo, onde o abre-alas era o navio réplica da nau Capitânia que trouxe Cabral e os índios em “traje ritual com colares, penachos, bermudas e sandálias havaianas”. Nada sobre a relevância das reivindicações indígenas.

Hoje ao contrário, às vésperas da Copa, a grande mídia repentinamente não só reconhece suas etnias e demandas por terra e saúde como vê neles o despertar de uma consciência crítica contra um evento esportivo que supostamente estaria prejudicando todos os brasileiros: índios, professores municipais, motoristas de ônibus etc.

É a bomba semiótica Forte Apache: “Índios Cercam o Palácio do Planalto” diz a cinematográfica manchete do Estadão. O que marca essas matérias é que elas são o inverso da cobertura feita dos protestos indígenas contra as comemorações dos 500 anos: além do diferente clima político (em 2000 a grande mídia mantinha relações mais cordiais com Fernando Henrique Cardoso do que com o governo atual), lá as matérias tinham mais texto e poucas fotografias. Agora temos o inverso: uma profusão de fotografias e poucos textos.



A bomba semiótica Forte Apache é muito mais icônica do que textual. Certamente porque, em si mesmo, a notícia não é novidade já que os índios apanham nesse país desde o seu “descobrimento”. A novidade é que os protestos dessa vez estão turbinados pela retórica fotográfica, manchetes cinematograficamente icônicas (não há como o leitor não resistir a associação com o imaginário hollywoodiano dos filmes western) e as retrancas que juntam as notícias mais díspares em alucinadas conexões metonímicas.

A foto-choque


Roland Barthes definia as fotos jornalísticas como “foto-choque”, um estado intermediário entre o fato literal ou real e o fato alterado: são intencionais demais para ser fotografia e excessivamente exatas para serem pinturas.

Um índio posando ao lado do Batman black bloc com cocar; índios posam com seus arcos e flechas com o Congresso Nacional ao fundo; índio aponta e mira com o arco e flecha o Supremo Tribunal Federal; índios defrontando-se com polícia de choque tendo o estádio Mané Garrincha (ícone da Copa) ao fundo etc.

Duas coisas chamam a atenção nessas fotos: a intenção dos fotógrafos em criar o contraste entre a arquitetura futurista de Brasília e o primitivismo indígena e as onipresentes flechas. Como Roland Barthes afirmava no seu livro clássico Mitologias, as fotos-choque não se destinam à nossa sensibilidade: elas são posadas e carregadas demais de intencionalidade – alguém refletiu por nós, julgou por nós. O fotógrafo não nos deixou nada, a não ser o simples direito da aprovação intelectual.

Elas são posadas, carregadas de sobreindicações (índices) do fotógrafo. Igual ao texto jornalístico onde basta preencher as lacunas de uma estrutura pré-fabricada, ao fotógrafo basta se tornar um diretor de cena, orientar os objetos fotografados para que confirmem as retrancas e as alucinadas conexões metonímicas à espera nas redações da grande mídia.

A aprovação intelectual dessas fotos-choques vem muito mais do esforço técnico e retórico pela habilidade do fotógrafo em recortar e montar uma cena do que pelo episódio em si reportado.  Elas apenas reforçam intelectualmente predisposições ideológicas nos receptores, do tipo “eu já sabia!”.

O efeito emocional pretendido (a moldagem da percepção na opinião pública de um País caótico em estado pré-insurrecional) vem depois com a soma dos estilhaços de signos das diversas explosões simultâneas e diárias no contínuo midiático.

Nesse acúmulo de índices nessas fotos chamam a atenção a imagem do índio ao lado do Batman black bloc e diversas flechas espetadas em uma motocicleta da polícia militar. A natureza da pose é evidente porque ela indicia um imaginário cinematográfico que alimenta a bomba semiótica Forte Apache: super-heróis, luta do bem contra o mal, ataque dos índios ao forte dos soldados etc.


Seja apanhando, sejam fotografados, os indígenas brasileiros continuam estranhos em sua própria terra: às vésperas do campo de batalhas simbólico decisivo da Copa do Mundo, tornam-se, agora, suportes passivos dos signos construídos por espertos fotógrafos que buscam preencher as lacunas das retrancas e textos já pré-moldados.

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