Depois de 14
anos das comemorações dos 500 anos do descobrimento do Brasil onde os índios
foram recebidos com armas e bombas pela polícia e a grande mídia relatou tudo
de forma burocrática e irônica, repentinamente eles foram redescobertos e
levados a sério. “Índios cercam o Palácio do Planalto” é o tom geral das
manchetes com muitas fotos com flechas e índios em poses ameaçadores em
contraste ao futurismo de Brasília. É a bomba semiótica Forte Apache. Esse
conceito não tem nada de ironia ou deboche: o núcleo dessa bomba linguística são fotos onde poses e situações forçam a associação com o imaginário hollywoodiano do
western. Seja apanhando, sejam fotografados, os indígenas brasileiros continuam
estranhos em sua própria terra: às vésperas do campo de batalhas simbólico
decisivo da Copa do Mundo, tornam-se, agora, suportes passivos dos signos construídos
por espertos fotógrafos. São as “fotos-choques”, estado semiótico intermediário
entre o fato real e o fato alterado.
O presidente
eleito pelo colégio eleitoral em 1985, Tancredo Neves estava entre a vida e a
morte no Hospital das Clínicas em São Paulo. E eu iniciava minha carreira no
jornalismo como um "foca" na reportagem do jornal A Tribuna de Santos. Ficava impressionado como, apesar do caos que
era uma redação, o jornal conseguia ser finalizado e chegava diariamente nas
bancas. Aos poucos ia pegando os macetes: as notícias e os textos jornalísticos
eram praticamente padronizados, bastando apenas preencher as variáveis: o que,
quem, quando, como, onde e por que.
Enquanto Tancredo
agonizava em São Paulo e o País torcia pela sua recuperação, descobri que a
lógica de linha de produção das redações era fria e pragmática: nas gavetas da
mesa do diretor da redação já estavam prontos obituários, biografia,
editoriais, retrancas (palavra ou pequena frase sobre manchetes para apresentar
o tema da matéria), fotos e páginas inteiras já diagramadas sobre vida e morte
de Tancredo Neves.
Logo entendi
todo o processo semiótico de produção noticiosa que permitia que aquela loucura
de vai e vem na redação desse certo: editores e diretores produziam uma forma,
uma estrutura de texto onde a reportagem apenas preenchia as lacunas com as
variáveis da chamada “pirâmide invertida” da matéria jornalística. Tempo era
racionalizado e as matérias prontas em minutos. Um processo tão técnico e
pragmático que os repórteres não percebiam o viés, o enfoque ideológico que
sempre estava nessa estrutura pré-fabricada que descia do "aquário" das reuniões
de pauta para nós, os "focas".
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"A Copa como ELA É": retrancas jornalísticas prontas. Basta preencher as lacunas de um texto pré-fabricado |
Às vésperas da
Copa do Mundo no Brasil fica mais evidente essa racionalização semiótica da
produção de notícias, onde o pragmatismo deve se aliar à guerrilha semiológica
que se trava em um ano eleitoral: as lacunas dessas estruturas pré-fabricadas
que a reportagem deve preencher são verdadeiras bombas semióticas: não importa
a variável, qualquer notícia é inserida na retranca do fracasso da Copa.
Tal como na
morte de Tancredo Neves que a imprensa já tinha matérias e páginas com a
estrutura já pronta à espera dos acontecimentos, da mesma forma hoje a grande
mídia já possui retrancas, estruturas de textos prontas à espera de qualquer
acontecimento nos dias que antecedem a Copa do Mundo e durante o próprio evento
esportivo – o que dizer então dos esgares maliciosos de William Waack ao dar a
notícia da compra de carros anti bombas para a Copa ou a histeria dos
jornalistas da Sport TV anunciando uma tragédia que não aconteceu no jogo
Santos e Bahia em um estádio lotado em Feira de Santana para, no dia seguinte,
Tiago Leifert falar que “poderíamos estar dando aqui uma notícia trágica...”
Índios e o jornalismo metonímico
O episódio dos
protestos indígenas em Brasília é um bom exemplo da dinâmica de montagem dessas
bombas semióticas que, acreditem, terão a potência de megatons durante a Copa.
A Folha de São Paulo, por exemplo, já
possui a retranca “A Copa como ELA É” onde são colocadas notícias desde a suspeita
de contusão de Cristiano Ronaldo até protestos de professores em frente da
Prefeitura de São Paulo.
Pois nessa
retranca surgem os protestos indígenas pela questão da demarcação de terras e
que, para a grande mídia, só podem ser mais um protesto contra a Copa do Mundo.
Depois de anos fazendo o jornalismo
adversativo (o PIB cresceu, mas... o desemprego aumentou) agora temos o jornalismo metonímico onde qualquer
notícia possui uma estranha evidência em si mesmo de que somente aconteceu
porque a Copa do Mundo está próxima.
Índios fazendo
protesto em Brasília não é nenhuma novidade. A novidade é como esse protesto
foi inserido em um novo frame, a notícia
que preenche aquela lacuna de uma estrutura invisível aos olhos do leitor.
Brasil 500 anos versus Copa do Mundo
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Indios protestam em Brasília na comemoração dos 500 anos do Descobrimento em 2000: ao contrário de hoje, cobertura midiática burocrática e irônica. |
Por exemplo, em
2000 o Brasil comemorava os 500 anos do descobrimento. Dias antes das
comemorações em Porto Seguro/BA, índios yanomanis e xavantes fizeram marcha a
Brasília para reivindicar novo estatuto que rege seus povos. Um deles quase
agrediu o presidente do Congresso Antônio Carlos Magalhães. Mais tarde, nas
comemorações dos 500 anos na Bahia, a reação da PM foi desproporcional e violenta.
E como a grande
mídia relatou esses acontecimentos? Poucas fotos, cobertura entre anódina e
irônica. O semanário Veja, por
exemplo, viu os acontecimentos como um grande samba-enredo, onde o abre-alas era
o navio réplica da nau Capitânia que trouxe Cabral e os índios em “traje ritual
com colares, penachos, bermudas e sandálias havaianas”. Nada sobre a relevância
das reivindicações indígenas.
Hoje ao
contrário, às vésperas da Copa, a grande mídia repentinamente não só reconhece
suas etnias e demandas por terra e saúde como vê neles o despertar de uma
consciência crítica contra um evento esportivo que supostamente estaria prejudicando
todos os brasileiros: índios, professores municipais, motoristas de ônibus etc.
É a bomba
semiótica Forte Apache: “Índios Cercam o Palácio do Planalto” diz a
cinematográfica manchete do Estadão. O que marca essas matérias é que elas são
o inverso da cobertura feita dos protestos indígenas contra as comemorações dos
500 anos: além do diferente clima político (em 2000 a grande mídia mantinha
relações mais cordiais com Fernando Henrique Cardoso do que com o governo
atual), lá as matérias tinham mais texto e poucas fotografias. Agora temos o
inverso: uma profusão de fotografias e poucos textos.
A bomba
semiótica Forte Apache é muito mais icônica do que textual. Certamente porque,
em si mesmo, a notícia não é novidade já que os índios apanham nesse país desde
o seu “descobrimento”. A novidade é que os protestos dessa vez estão turbinados
pela retórica fotográfica, manchetes cinematograficamente icônicas (não há como
o leitor não resistir a associação com o imaginário hollywoodiano dos filmes western) e as retrancas que juntam as
notícias mais díspares em alucinadas conexões metonímicas.
A foto-choque
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Um índio
posando ao lado do Batman black bloc com cocar; índios posam com seus arcos e
flechas com o Congresso Nacional ao fundo; índio aponta e mira com o arco e
flecha o Supremo Tribunal Federal; índios defrontando-se com polícia de choque
tendo o estádio Mané Garrincha (ícone da Copa) ao fundo etc.
Duas coisas
chamam a atenção nessas fotos: a intenção dos fotógrafos em criar o contraste
entre a arquitetura futurista de Brasília e o primitivismo indígena e as
onipresentes flechas. Como Roland Barthes afirmava no seu livro clássico Mitologias, as fotos-choque não se
destinam à nossa sensibilidade: elas são posadas e carregadas demais de
intencionalidade – alguém refletiu por nós, julgou por nós. O fotógrafo não nos
deixou nada, a não ser o simples direito da aprovação intelectual.
Elas são
posadas, carregadas de sobreindicações (índices) do fotógrafo. Igual ao texto
jornalístico onde basta preencher as lacunas de uma estrutura pré-fabricada, ao
fotógrafo basta se tornar um diretor de cena, orientar os objetos fotografados
para que confirmem as retrancas e as alucinadas conexões metonímicas à espera
nas redações da grande mídia.
A aprovação
intelectual dessas fotos-choques vem muito mais do esforço técnico e retórico
pela habilidade do fotógrafo em recortar e montar uma cena do que pelo episódio
em si reportado. Elas apenas reforçam
intelectualmente predisposições ideológicas nos receptores, do tipo “eu já
sabia!”.
O efeito
emocional pretendido (a moldagem da percepção na opinião pública de um País
caótico em estado pré-insurrecional) vem depois com a soma dos estilhaços de
signos das diversas explosões simultâneas e diárias no contínuo midiático.
Nesse acúmulo
de índices nessas fotos chamam a atenção a imagem do índio ao lado do Batman
black bloc e diversas flechas espetadas em uma motocicleta da polícia militar.
A natureza da pose é evidente porque ela indicia um imaginário cinematográfico
que alimenta a bomba semiótica Forte Apache: super-heróis, luta do bem contra o
mal, ataque dos índios ao forte dos soldados etc.
Seja apanhando,
sejam fotografados, os indígenas brasileiros continuam estranhos em sua própria
terra: às vésperas do campo de batalhas simbólico decisivo da Copa do Mundo,
tornam-se, agora, suportes passivos dos signos construídos por espertos
fotógrafos que buscam preencher as lacunas das retrancas e textos já
pré-moldados.
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