Há uma perigosa ambiguidade no “nós contra eles” representado pelo personagem “Hugo Nem Se Importa” e todos os vídeos em Inteligência artificial nas redes que reagem contra o Congresso que derrubou o decreto do IOF: lembram o personagem “Deputado Justo Veríssimo” (“Eu quero que o pobre se exploda”, era o seu bordão), exibido em horário nobre na TV Globo no passado. A esquerda utiliza o mesmo léxico moralista (mamatas, supersalários etc.) que acabou desembocado na dissonância cognitiva da antipolítica que pariu o bolsonarismo. Até aqui, tudo bem: era necessário a esquerda jogar no mesmo campo simbólico da extrema-direita alt-right. Tomar as redes. A sensibilidade semiótica da grande mídia sentiu o golpe. Afinal, deu de mão beijada uma bandeira para o governo Lula nas cordas. E reagiu com um ardil: a operação semiótica “Nem-Nem” para atender aos clamores da Faria Lima: despolarização, Terceira Via e Capitalismo de Choque. Por isso é necessário ir além dos engajamentos, comentários, curtidas, repostagens, visualizações e comemorar os números das reações positivas do Real Time Big Data. A esquerda precisa converter esse conjunto lexical em acontecimento comunicacional.
Por que o maior golpe da história do sistema financeiro brasileiro
(o desvio milionário por uma série de transferências PIX em massa de contas
vinculadas ao Banco Central) NÃO foi tão repercutido pela grande mídia do que
os sete minutos gastos pelo Jornal Nacional em defesa do Congresso Nacional
contra os ataques na Internet do “Hugo Nem Se Importa”?
Enquanto aquilo que foi denominado como “ataque Hacker” (termo que
já virou uma “retranca” em Jornalismo, termo genérico para explicar qualquer
anomalia cibernética) foi coberto pela mídia de forma anódina, objetiva, a
campanha contra o Congresso após a derrubada do aumento do IOF fez o jornalismo
mobilizar políticos e os indefectíveis especialistas em longas entrevistas nos
canais fechados de notícias.
Essa diferença de tratamento midiático entre uma notícia que colocou
em xeque a credibilidade de uma das mais celebradas criações do BC de Campos
Neto (o PIX, que foi tratado pela grande mídia quase como o grande avanço da
civilização ocidental...) e outra que envolve o cotidiano da guerra
pré-eleitoral entre poderes pode representar das duas, uma:
a) a grande mídia e a Faria Lima sentiram o golpe da “cochilada”
de o Centrão ter dado de bandeja uma bandeira para o governo que não tinha
nenhuma às vésperas de um ano eleitoral – a bandeira da “Justiça Tributária”.
Ou...
b) os sete minutos de defesa do Congresso Nacional pelo JN da
Globo contra os “ataques polarizados” na Internet foi a criação do modelo
narrativo para o restante do jornalismo corporativo seguir: a estratégia
semiótica da crítica “Nem-Nem”, ou “Ninismo” como dizia o semiólogo francês Roland
Barthes. Para atender à maior preocupação da Faria Lima: a despolarização
política através da esperada “Terceira Via” que materializaria o grande sonho
da Banca, o Capitalismo de Choque.
Partimos do pressuposto que a revolução jamais será televisionada.
Eventos ou notícias que, de fato, sejam anômicos ou perigosamente fatais ao
sistema são ou ocultados ou relatados dentro da conhecida e oportuna objetividade
jornalística anódina. Como o caso da cobertura do já considerado maior golpe do
sistema financeiro – ocultado pelo clichê “ataque hacker” para passar longe das
causas estruturais oriundas da desregulamentação das atividades das Fintechs.
Ainda mais o destaque dado pelo JN convocando um pelotão de choque
composto pelos ex-presidentes do BC Armínio Fraga e Roberto Campos Neto
defendendo o Congresso e defendendo as regalias da elite financeira – quando
deveriam estar dando explicações sobre a outra crise, as conexões entre os
desvios bilionários no PIX e a ação desregulamentada das Fintechs.
De um lado é inegável que a esquerda encontrou o tom certo
defendido por esse humilde blogueiro: lutar no mesmo campo simbólico da
extrema-direita, apenas invertendo o sinal.
O que a série de vídeos em inteligência artificial proporcionam é
fazer os “neoliberais” do Centrão e Extrema-Direita sentirem o gosto do próprio
veneno retórico: assim como eles, a esquerda está usando o mesmo léxico
moralista da denúncia da corrupção, das mamatas, dos supersalários e dos
conchavos feitos em jantares em petit comité.
Nada mais do que a mesma retórica usada para justificar o saco de
maldades neoliberais – que o governo deveria fazer a “lição de casa” e cortar
da “própria carne”. Mas, o Governo é populista, corrupto, gastão...
Apenas que agora este discurso é voltado contra eles mesmos.
Certamente a grande mídia, mais esperta quanto às sensibilidades
semióticas, percebeu que foi longe demais. Desde a animosidade do Congresso e
dos especialistas da grande mídia contra a proposta da isenção do imposto de
renda para quem ganha até cinco salários-mínimos (anunciada por Haddad em rede
nacional) demorou até muito para a esquerda perceber que tinha a bandeira da
justiça tributária nas mãos, dada de mão beijada.
Mas a reação do eixo STF/Grande Mídia/Faria Lima foi rápida,
alertada pela inteligência semiótica do jornalismo corporativo:
1- De repente o STF investiu a si próprio como Poder Moderador da
Nação (emulando o Poder Moderador, prerrogativa de D. Pedro II sobre os outros
poderes criado pela Constituição de 1824): Alexandre de Moraes suspendeu
os efeitos de decretos da Presidência da República e do Congresso Nacional que
tratam do Imposto sobre o IOF. E determinou a realização de uma “audiência de
conciliação entre o governo federal e o Congresso Nacional” sobre o tema.Claro, tudo em nome do fim do
“indesejável debate” que afeta o “bem comum”, diz o documento da decisão.
2- Depois que o JN deu o modelo narrativo (a polarização política
irracional que afeta a racionalidade econômica), os canais fechados de notícias
convocaram a cavalaria: P. ex., o “colonista” Gerson Camarotti (com os seus
indefectíveis olhos esbugalhados nesses momentos) definiu os vídeos que atacavam
o Congresso como produtos da “milícia digital do PT” – sim! Assim como a
extrema-direita, o PT também teria um gabinete do ódio equivalente.
3- As capas dos jornais Folha e o Globo desse domingo deram mais
uma contribuição à construção semiótica “Nem-Nem”. A Folha faz a chamada de
primeira página de uma entrevista com, nada mais, nada menos, que Roberto
Campos Neto com a seguinte manchete: “o discurso do nós contra eles é ruim para
todo mundo e não faz o país crescer”. E O Globo observa em texto de chamada de
primeira página sobre uma reportagem especial que Lula perde votos no celeiro
eleitoral petista da Bahia. Mas alerta: “apesar do desalento com Lula, não
pretendem votar em Bolsonaro” – os baianos estariam “cansados da polarização”.
4- Respondendo rápido ao canto da sereia, Armínio Fraga sai do
ostracismo e reaparece na mídia tocando o terror: “se não cortamos da própria
carne agora, lamentaremos no futuro”, amaldiçoa!
O fato é que as pesquisas tracking internas (não registradas no
TSE), usadas por bancos e partidos, estão indicando a melhora da percepção da
opinião pública em relação ao Governo Lula: parece que apenas uma semana de
campanha “ricos contra pobres” está funcionando. E a oposição teria dado um
presente para o governo.
Daí que a resposta a esse efeito colateral inesperado do
tradicional discurso do “Governo-não-faz-a-lição-de-casa” foi a de uma rápida
mudança narrativa: do aumento do IOF como pecado de um governo esbanjador para
a narrativa de economia que não suportaria mais a irracionalidade de
extremismos, gabinetes do ódio do bolsonarismo e milícias digitais de esquerda.
Nem-Nem, despolarização e Terceira Via
Mais uma vez a grande mídia apela para o “Ninismo”. A estratégia
semiótica “the last minute rescue”, isto é, a salvação no último
momento. Como o mocinho salvando a mocinha amarrada nos trilhos no último
segundo antes do trem passar nos filmes mudos “slapstick”.
Quando Lula foi solto dos cárceres da PF de Curitiba, em 2019, no
quadro de humor “Isso a Globo Não Mostra”, do Fantástico, a atriz Lilia Cabral
mostrava imagens de arquivo de Bolsonaro e Lula atacando a Globo, exibindo no
mesmo segmento o personagem de Marcelo Adnet “militante revoltado”, um
histérico e estereotipado esquerdista sempre acusando a emissora de
manipuladora.
Naquele ano, Lula livre foi colocado na equivalência Nem-Nem para
ser neutralizado, enquanto se procurava uma “terceira via” para 2022 – a especulação
daquele momento era o apresentador Luciano Huck.
E agora, depois de entregar de graça uma bandeira para 2026 para
um governo que não conseguia criar uma marca, o jornalismo corporativo mais uma
vez recorre ao “last minute rescue”: a operação semiótica Nem-Nem – agora, a
especulação em torno da “terceira via” gira em torno do nome de Tarcísio de
Freitas. Bolsonarista o suficiente para também polarizar, mas (e para a Faria
Lima é uma virtude) sem pruridos morais para impor uma agenda de capitalismo de
choque. Como Milei na Argentina.
E, de mais a mais, uma boa maquiagem semiótica oculta para o
distinto público as origens militares e bolsonaristas, convertendo-o em
“Tarcisão, o Moderado”.
Para Roland Barthes, a crítica nem-nem decorre de um mecanismo de
dupla exclusão – reduz a realidade histórica a uma polaridade simples,
quantifica o qualitativo em uma dualidade e equilibra um com o outro, de modo a
rejeitar os dois.
É a Justiça como uma operação de pesagem. E a balança só pode
confrontar o mesmo com o mesmo. De uma maneira mágica, foge-se da realidade histórica,
reduzindo-a a dois contrários para depois serem pesados e rejeitados.
A retórica do “nem-nem” exclui os contrários para tentar mostrar que ambos são iguais e simétricos em um suposto extremismo (hoje chamado “polarização”), e que a única solução é o “bom senso” – mito burguês no qual se baseia a forma moderna de liberalismo. A Justiça como uma operação de pesagem - Leia BARTHES, Roland. Mitologias, R. de Janeiro: Difel, 1980.
O Léxico Moralista
Atuar no mesmo campo simbólico da extrema-direita tem os seus
riscos e a esquerda deve estar atenta.
Não pensar nesse tipo de estratégia semiótica como um fim em si mesmo.
Isto é, deve ser pensada como apenas uma primeira fase, para depois a
estratégia de comunicação elevar-se para outro nível.
Isso porque agir no mesmo campo simbólico do oponente significa
compartilhar do mesmo léxico – o mesmo conjunto de palavras, expressões,
estereótipos etc.
Por exemplo, o impagável personagem “Hugo Nem Se Importa” parece
claramente uma versão em Inteligência Artificial pós-moderna do clássico
deputado “Justo Veríssimo”, criado e performado pelo comediante Chico Anysio,
na TV Globo. Cujo agenda política era “EU QUERO É QUE O POBRE SE EXPLODA!”.
O léxico da crítica moralizante acabou desembocando na
antipolítica e na extrema-direita alt-right contra o “sistema” e tudo o que
“está aí”. E Bolsonaro a sua melhor representante.
Ótimo! Ganhou espaço nas redes, na percepção pública e pauta
midiática. Mas se a esquerda permanecer emulando o moralismo antipolítica
poderá cair fácil no ardil Nem-Nem que o jornalismo corporativo agora tenta
monopolizar na agenda política para 2026.
Apenas moralizar a luta de classes (reduzir a exploração a um
efeito de má formação do caráter ao invés de uma estrutura econômica perversa
que deve ser mudada) é apenas um meio caminho andado.
É necessário substituir a adjetivação pela substantivação da luta
de classes – a Justiça fiscal só será possível com a justiça na produção de
valor e distribuição da riqueza para além dos limites do capitalismo futuro
imaginado pela Faria Lima: o Capitalismo de Choque, a forma atual do
Capitalismo Periférico.
E, se estamos falando em léxico, a ação política não pode se
limitar a apenas engajamentos, comentários, curtidas, repostagens,
visualizações e comemorar os números das reações positivas do Real Time Big Data.
Esse conjunto lexical precisa se converter em acontecimento
comunicacional: pressão das ruas, exortações presidenciais ao vivo em rede nacional
e, principalmente, a disposição de ir para além das audiências de conciliação –
topar o enfrentamento.