sexta-feira, julho 04, 2025

Em '1978' o horror cósmico de H.P. Lovecraft vai à ditadura militar argentina


Enquanto Argentina e Holanda faziam a final da Copa do Mundo, em um cárcere clandestino agentes da repressão militar interrogavam e torturavam presos políticos. Conseguem arrancar o endereço de uma “célula esquerdista”. Rumam até o local para fazer novos prisioneiros. O problema é que eles prenderam os “esquerdistas” errados. Na verdade, membros uma seita satânica em pleno ritual de conjuração do Demônio. Mas os levam achando serem apenas “comunistas pervertidos”. É o início de um mergulho no inferno. Este é o filme argentino “!978” (2024, disponível no MAX), um filme de gênero que usa esse pano de fundo histórico como base para sua narrativa, dando às cenas de violência apavorantes uma realidade ainda mais horrível – o horror cósmico Lovecraftiano. Levando o espectador a questionar se o maior mal em exibição é o sobrenatural ou o humano. 

Sabemos que a ditadura militar brasileira se aproveitou da conquista da Copa do Mundo de Futebol de 1970, no México, como um grande evento de propaganda para mascarar a repressão política. O governo militar se apropriou do sucesso da seleção, explorando a paixão nacional pelo futebol para promover um clima de otimismo e unidade nacional, enquanto a censura, a tortura e a perseguição política se intensificavam no país – era o início dos chamados “anos de chumbo”. 

Porém, a ditadura militar argentina foi ainda mais arrojada. Promoveu a Copa do Mundo no próprio país em 1978, atraindo a atenção de todo o planeta. Enquanto a repressão política chegava ao seu momento mais sombrio e macabro, a chamada “Guerra Suja” - violência indiscriminada, perseguições, tortura, terrorismo de Estado, desaparecimentos forçados etc. E os infames “voos da morte” em que pessoas eram jogadas de aviões, em alto mar, vivas.

A seleção argentina sagrava-se campeã ao derrotar a Holanda numa final dramática que se arrastou para a prorrogação. A atenção de todos estava no estádio Monumental de Nuñes, Buenos Aires. Inclusive a atenção dos agentes repressores, que acompanhavam a final na TV enquanto interrogavam prisioneiros com requintes sádicos nos cárceres e porões clandestinos.

Esse é o cenário de pesadelo evocado pelo filme argentino 1978 (2024), disponível na plataforma de streaming MAX, dos diretores Luciano e Nicolás Onetti. Um típico filme de gênero, o horror sobrenatural cósmico Lovecraftiano com referências ao slasher do cinema apocalíptico do diretor italiano Lucio Fulci.



Já temos o exemplo da série Netflix O Eternauta em que o cinema de gênero ficção científica utiliza uma invasão alienígena como metáfora aos golpes militares historicamente recorrentes na América Latina.

 Mas 1978 aprofunda ainda mais os cânones do cinema de gênero: sobrepõe ao cenário político da ditadura militar argentino do horror sobrenatural e o terror slasher – cujos efeitos práticos não deixam nada a dever à cinematografia hollywoodiana.

Mas 1978 vai mais além de um mero exercício estilístico de gênero. A dupla de diretores argentinos parece querer abordar a ditadura militar como um evento para além da política – como um evento que revelaria um conflito cósmico da luta entre o Bem e o Mal. E a humanidade perdida entre esse fogo cruzado entre duas entidades cósmicas. Uma humanidade que acredita ser protagonista, mas não passa de joguete de uma trama muito maior.

Com forte influência da obra de Fulci, o filme exala uma atmosfera de terror europeu carregada de pavor, claustrofobia e surrealismo macabro.

Os irmãos Onetti são conhecidos há muito tempo por sua abordagem sem barreiras ao terror, e aqui eles canalizam a mistura característica de Fulci de grotesco e desespero existencial. Como em filmes como The Beyond ou City of the Living Dead , há uma sensação generalizada de que os personagens estão presos em um mundo governado por forças muito além de seu controle — forças que são humanas e desumanas.

A ditadura militar, com seus centros de detenção secretos e táticas brutais, fornece o componente humano aterrorizante, enquanto uma entidade invisível e mais sombria espreita nas sombras, adicionando uma camada sobrenatural ao horror que se desenrola.



O contexto político real da "Guerra Suja" simultânea à promoção de uma Copa do Mundo amplifica o terror. Durante esse período na Argentina, milhares de supostos dissidentes políticos foram "desaparecidos" pelo governo — sequestrados, torturados e assassinados em segredo. 1978 usa esse pano de fundo histórico como base para sua narrativa, dando às cenas de violência apavorantes uma realidade ainda mais horrível – um horror cósmico. Os interrogatórios brutais dos militares no filme espelham essas atrocidades da vida real, levando o espectador a questionar se o maior mal em exibição é o sobrenatural ou o humano. 

À medida que a narrativa lenta se desenrola, 1978 muda seu foco da agitação política para algo muito mais cósmico e horripilante. As cenas de tortura — vívidas, grotescas e implacavelmente brutais — servem como apenas uma camada da descida do filme à loucura. Por trás da violência física, esconde-se um horror mais profundo e metafísico: a ideia de que, diante de tais atrocidades, a própria humanidade é despojada, deixando apenas a loucura, o caos e, talvez, algo mais sombrio e sinistro em seu rastro.

O Filme

1978 começa com uma sensação de calma quase enganosa — um jogo de truco, onde a tensão fervilha sob a superfície, mas nunca transborda. O diálogo, cheio de humor negro, soa como em um filme de Tarantino em suas brincadeiras, um alívio momentâneo da atmosfera sinistra que espreita logo adiante.

Mas os irmãos Onetti puxam o tapete debaixo dos pés da plateia, passando de uma cena relativamente leve para uma brutalmente torturante em questão de instantes – a câmera abre e vemos um homem amarrado a uma cadeira, todo machucado e a boca amordaçada, acompanhando assustado aqueles homens jogando cartas, bebendo e fumando.




 É nessa transição chocante que 1978 realmente começa anunciando sua chegada como um retrato sombrio e implacável dos horrores que podem ser desencadeados sob regimes políticos.

Então somos apresentados a esse verdadeiro esquadrão da morte, liderado pelo implacável Moro. O membro mais jovem do esquadrão, Hugo, tem interrogado os reféns, optando por uma abordagem mais suave, na esperança de obter as informações necessárias para o esquadrão cumprir suas missões antes que Moro intervenha e a tortura comece com choques e unhas arrancadas. A velha estratégia do “good cop/bad cop”.

Moro tem pouca paciência com o método de Hugo, então ele assume o interrogatório. Este é o primeiro teste real da coragem do espectador. Outros membros da gangue assediam e abusam de outros prisioneiros, incluindo Miguel, mas esta cena de tortura será o primeiro teste de nossa coragem.

Assim que a gangue obtém as informações necessárias, eles partem e prendem quatro membros de um grupo misterioso em um armazém. Eles encontram um homem e duas mulheres rezando por outra mulher grávida – ela vai dar à luz ao Anti-Cristo? Para eles, nada de estranho acontecendo: eles prenderam nada mais do que esquerdistas terroristas fanáticos e pervertidos. Pertences são recolhidos, alguns dos quais darão mais pistas sobre a identidade do grupo mais tarde. Mal sabem que prenderam os “esquerdistas” errados...

De volta ao complexo, assim que a identidade deles é descoberta, o caos se instala no prédio e uma violência terrível começa a atingir Moro, o restante de sua gangue de capangas militares e qualquer outra pessoa presa no prédio. 

Os incautos agentes da Junta Militar acabaram prendendo membros de uma seita satânica em pleno ritual de conjuração do próprio Demônio. E, inadvertidamente, levaram a conclusão do ritual para aquele complexo clandestino. Não precisa dizer que os prisioneiros da seita se livrarão rapidamente das cordas, invertendo o jogo.

No início, ver os torturadores do esquadrão da morte receber a sua punição se torna gratificante para nós. A história se concentra bastante em Carlos Portaluppi no papel de Carancho, um sujeito particularmente cruel que recebe a morte que merece.



Porém, rapidamente vamos percebendo que está em jogo algo muito maior, envolvendo também os prisioneiros políticos. A violência e o horror rapidamente se tornam planos gerais de um amontoado de corpos se contorcendo e rosnando – de repente, a polarização política desaparece e os prisioneiros se tornam uma matilha feroz sob o comando sobrenatural, perseguindo outro grupo de prisioneiros políticos que tentam fugir daquele inferno e loucura.

Ironia cósmica – Alerta de Spoilers à frente

Há uma certa ironia aqui. Isso pode deixar o espectador sem rede de segurança neste filme.

No filme, a gangue da morte acompanha esta partida importante; vemos rádio e aparelhos de TV em quase todos os cômodos e clipes da final Argentina X Holanda são inseridos de tempos em tempos. A gangue da morte torce pela Argentina.

 A ironia é que como, em qualquer jogo importante, você escolhe um time para torcer. A questão é que não temos realmente alguém para torcer neste filme. Toda vez que você acha que tem alguém em quem depositar suas esperanças, essa pessoa é destruída.

Poderíamos torcer pelos prisioneiros já em cativeiro, aqueles que estão sendo torturados e ridicularizados. Você também poderia torcer por Hugo, o único membro da gangue da morte que parece ter um resquício de consciência. Como há um desequilíbrio perceptível de atenção a favor deles, tempo que nos permitiria nos apegar a eles, talvez não sejamos tão apegados a eles no final.

O final ambíguo e aberto sugere que há uma dimensão mais cósmica e sombria no próprio golpe político argentino. Algo que se ligaria à própria infância de Hugo, o único sobrevivente do inferno e que leva o bebê que nasceu em pleno ritual de conjuração do Demônio.

Vítimas e algozes daquele cárcere clandestino seriam todos apenas peças de um jogo de xadrez cósmico cujo resultado é aquele bebê que representaria o próprio destino da Argentina.


 

Ficha Técnica

Título:  1978

Diretor: Luciano Onetti, Nicolás Onetti

Roteiro: Luciano Onetti, Nicolás Onetti, Camilo Zaffaro

Elenco: Agustín Olcese, Mario Alarcón, Carlos Portaluppi

Produção: Black Mandala

Distribuição: MAX

Ano: 2024

País: Argentina

 

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