De todos os atletas de ponta, o jóquei é o mais parasitário. Porque a verdadeira estrela é o cavalo – um símbolo militar e de conquista, pois sem ele a História não aconteceria. A comédia estranha e surreal argentina “Matem o Jóquei!” (El Jockey, 2024) revela um inusitado encontro simbólico entre a crise de identidade e propósito de um jóquei autodestrutivo e a inversão Queer de um animal símbolo da supremacia masculina na História. Um famoso jóquei cujos dias de glória se esvaíram em drogas, dopping e más decisões tem a última chance: um gangster de corridas de cavalo clandestinas importou um caro cavalo japonês para ele vencer. Se não... pagará a importação do caro animal com a própria vida. “Matem o Jóquei!” faz uma combinação entre os temas da inconsistência das definições de gênero do cinema Queer e a própria crise de identidade e propósito político da Argentina no continente sul-americano. Morrer, renascer e, talvez, viver é o lirismo de "Matem o Jóquei!".
Duas cenas constituem a essência do filme Matem o Jockei! (El
Jockey, 2024), o recente filme do diretor argentino Daniel Ortega. Primeiro,
quando o jóquei chamado Remo Manfredini (Nahuel Pérez Biscayart) se prepara no vestiário
para a largada de um importante Grande Prêmio de turfe, ele faz um coquetel
autodestrutivo: a fumaça do cigarro fica presa dentro de um copo onde a
cetamina e o uísque se misturam. É o dopping costumeiro de cada corrida.
Segundo, quando um velho capanga de um mafioso diz em um jantar: “o
infortúnio é a melhor escola”. Diz com surpreendente compaixão sobre o trauma
de infância que moldou Remo a ser o que ele é.
Remo é um famoso jóquei cujos dias de glória se esvaíram em uma
névoa de substâncias e más decisões. Para ele é a última chance. Um
mafioso de corridas de cavalo clandestinas importou um caro cavalo japonês para
Remo montar e vencer. Se não... certamente Remo pagará a importação do caro
animal com a própria vida.
A comédia argentina estranha e excêntrica Matem o Jóquei! é
um experimento em fluxo, uma espécie de escrita automática surrealista onde os
momentos oníricos e de vigília se confundem. Que começa com uma reflexão
simbólica (com estilo, elegantemente filmado e sequências que parecem
videoclipes) sobre a própria condição do jóquei como uma poderosa metáfora: ser
um jóquei é ser ao mesmo tempo um atleta e auxiliar. Enquanto o cavalo fica com
a glória, seu parceiro humano é um parasita literal: ostensivamente no
controle, mas sujeito a impulsos imprevisíveis do animal. Um jóquei está
condenado mais à invisibilidade do que a maioria dos esportistas de ponta.
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Ou, como explica o herói jóquei, as pessoas andam a cavalo por
todos os tipos de razões. Eles cavalgam para chegar ao seu destino mais
rapidamente ou para travar uma guerra com mais eficácia. Na maioria das vezes,
diz ele, cavalgam para escapar. Este jóquei está familiarizado com a vontade
incômoda de voar. Mostre-lhe uma cerca e ele a pulará imediatamente – ou
morrerá tentando.
Sem falar que o cavalo foi fundamental para as conquistas
militares e formação de Impérios na História, principalmente após a invenção da
sela e dos arreios.
Um personagem parasita de um animal, cavalga um símbolo militar e
de conquista é um elemento simbólico inusitado para transformar Matem o
Jóquei! em um drama surreal do cinema Queer - produções audiovisuais que
abordam temas relacionados à comunidade LGBTQI+, desafiando as normas do gênero
e sexualidade.
Na verdade, Remo quer correr, fugir e saltar à cavalo da sua
própria identidade: morrer, renascer e talvez viver é o lirismo desse filme que
é uma mixórdia de elementos: o jóquei do título é alternadamente homem e uma
mulher com um casaco, uma bolsa e uma cabeça enfaixada em forma de melancia;
uma cabeleireira na prisão, onde conta a história do cavalo subjugado pelo
homem para ser usado na guerra; e, novamente, um jóquei competindo em
peculiares corridas clandestinas com um cachorro ou com um veículo dirigido por
uma versão incomum de um anjo da guarda com chapéu de cowboy.
Também o espectador não deve se surpreender com a sua namorada grávida, Abril (Úrsula Corberá de La Casa de Papel), o aceite afetuosamente quando ele se transforma em uma mulher paqueradora, enquanto ainda namora outro jóquei.
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Gangsters, cavalos, cowboys, militares desfilando pelas ruas de Buenos
Aires etc. são surrealmente subvertidos em um filme sobre a fragilidade humana,
busca de propósito e a batalha de cada pessoa com a própria identidade. Na
figura de um jóquei – figura simbólica de um esporte parasitário no qual um
jóquei salta para subverter sua própria identidade parasita.
Além de tudo, Matem o Jóquei! é uma poderosa metáfora política
de uma Argentina que não aceita mais ser o que sempre foi: submetida a
sucessivos golpes, sejam militares ou neoliberais. Como o próprio protagonista,
um país que parece ter uma sede insaciável pelo drama e pelo desastre.
Uma metáfora cujo gatilho foi um personagem inusitado que o
diretor Luis Ortega descobriu vagando pelas ruas de Buenos Aires:
Um sujeito vagando pela cidade, um russo. Seu nome é Maxi e ele é de Sebastopol. Quando o vi, ele estava vestido metade de homem e metade de mulher: tinha uma carteira, um sapato de salto alto em um pé, um croc no outro e várias medalhas e broches que havia coletado na rua. Ele realmente me chamou a atenção porque era um príncipe vestido de mulher, e comecei a segui-lo. Ele entrou em farmácias, pesou-se, saiu e foi para outra. Quando saiu de uma, aproximei-me dele e o cumprimentei. Ele me disse: "Eu peso zero em todas as balanças. Eu não existo, mas eles estão me seguindo." Isso me pareceu muito claro – clique aqui.
O Filme
Assistir a Matem o Jóquei! é ser catalisado pela atuação
maravilhosamente impassível de Nahuel Pérez Biscayart como Remo Manfredini, o
jóquei que precisa absolutamente, positivamente, vencer sua próxima corrida
para se livrar de um gângster.
Biscayart interpreta Remo como se ele fosse o palhaço sentimental
de um filme mudo, uma espécie de Buster Keaton com um chicote. Ele dá a
impressão de ser o para-raios confuso dos acontecimentos: um agente insincero,
indisciplinado e viciado em drogas, que representa um perigo para si mesmo e
para praticamente todos ao seu redor. "Sabemos tudo sobre sua sede
insaciável por desastres", diz o enrugado Sirena (Daniel Giménez Cacho), o
chefe da máfia de corridas de cavalo clandestinas.
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Uma cena de abertura atordoante e surreal dá o tom, enquanto a
câmera percorre distraidamente diversos desajustados e canalhas em um bar sujo
de Buenos Aires, interrompida pela chegada de vários brutamontes empunhando
chicotes de montaria. Finalmente, chegamos ao alvo deles: Remo (Pérez Biscayart),
que andou bebendo muito durante o dia em vez de se preparar para a corrida
iminente. Levado para a pista de corrida por esses mafiosos do derby, ele se
recusa a ficar sóbrio, tomando doses furtivas de uísque e tranquilizante para
cavalos.
Remo chega ao ápice da autodestruição: com a cabeça cheia da
explosiva mistura de uísque e cetamina, faz o cavalo atravessar a pista, sair
da corrida para provocar um acidente catastrófico. Para depois, encontrá-lo
impassível e com a cabeça enfaixada em uma cama de hospital.
Remo escapa do hospital para embarcar em uma odisseia
sinuosa e triste por Buenos Aires. Ele mudou seu nome para Dolores, trocou seu
traje de jóquei por um casaco de pele feminino e um turbante com bandagens
brancas e, possivelmente, também trocou seus pronomes de gênero.
As autoridades suspeitam de dano cerebral. "Por causa do
ferimento, ele parece perdido no espaço e no tempo", diz o policial que o
rastreia pelas câmeras de segurança da cidade.
A namorada grávida de Remo, Abril, o quer de volta. Sirena quer
que ele vivo ou morto e manda seus capangas acharem-no. Quando ele pisa na
balança dentro da farmácia art déco, a agulha mal se move – é como se
ele não existisse. É como se a cidade à noite fosse um limbo espectral, um
mundo de sombras; uma fronteira dos sentidos onde um corpo pode vagar
livremente.
Enquanto os capangas de Sirena partem em uma caçada humana, uma
nova identidade encontra Remo primeiro, embora não de uma só vez: o que começa
como uma experimentação intuitiva com maquiagem progride, à maneira logicamente
irracional de um sonho, para uma completa regeneração de fora para dentro.
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Crianças que passam identificam Remo como sua mãe; um novo nome é
assumido sem comentários, como se nunca tivesse sido outra coisa. Mesmo nesses
novos termos, a identidade de Remo continua mudando e se ajustando. Se Matem
o Jóquei! pretende ser uma alegoria trans, é uma alegoria vaga, embora
reflita de forma lúdica sobre a multiplicidade de eus que podem ser abrigados
em um corpo, alternadamente ou simultaneamente, por evolução natural ou por
design específico.
Matem o Jóquei! tem um
estranho charme. A estética pode levar a uma associação com a precisão visual
dos filmes meticulosamente filmados de Wes Anderson, incluindo uma paleta de
cores primorosamente concebida nos figurinos e na direção de arte. Mas o tom de
Ortega e o comportamento inexpressivo de seu elenco cômico, bem como o uso de
música evocativa, explorada para um efeito emocional duradouro, aproximam-se
mais daqueles presentes na obra de Yorgos Lanthimos. Sem alcançar, claro,
inteiramente a mesma desolação dos filmes do diretor grego.
Em suma, Matem o Jóquei! é um filme que convida à reflexão
sobre a natureza humana e a busca de significado em um mundo incerto e mutável,
usando o universo das corridas de cavalos como pano de fundo. Uma combinação
entre os temas da inconsistência das definições de gênero do cinema Queer e a
própria crise de identidade e propósito da Argentina no continente
sul-americano.
Ficha Técnica |
Título: Matem o Jóquei! |
Diretor: Luis Ortega. |
Roteiro: Luis Ortega, Rodolfo
Palacios, Fabian Casas |
Elenco: Nahuel Perez Biscayart, Úrsula
Corberó, Daniel Giméz Cacho |
Produção: Rei Pictures, El
Despacho |
Distribuição: Music Box Films |
Ano: 2024 |
País: Argentina/México |