sexta-feira, julho 11, 2025

'Matem o Jóquei!': morrer, renascer e, talvez, viver

 


De todos os atletas de ponta, o jóquei é o mais parasitário. Porque a verdadeira estrela é o cavalo – um símbolo militar e de conquista, pois sem ele a História não aconteceria. A comédia estranha e surreal argentina “Matem o Jóquei!” (El Jockey, 2024) revela um inusitado encontro simbólico entre a crise de identidade e propósito de um jóquei autodestrutivo e a inversão Queer de um animal símbolo da supremacia masculina na História. Um famoso jóquei cujos dias de glória se esvaíram em drogas, dopping e más decisões tem a última chance: um gangster de corridas de cavalo clandestinas importou um caro cavalo japonês para ele vencer. Se não... pagará a importação do caro animal com a própria vida. “Matem o Jóquei!” faz uma combinação entre os temas da inconsistência das definições de gênero do cinema Queer e a própria crise de identidade e propósito político da Argentina no continente sul-americano. Morrer, renascer e, talvez, viver é o lirismo de "Matem o Jóquei!".

Duas cenas constituem a essência do filme Matem o Jockei! (El Jockey, 2024), o recente filme do diretor argentino Daniel Ortega. Primeiro, quando o jóquei chamado Remo Manfredini (Nahuel Pérez Biscayart) se prepara no vestiário para a largada de um importante Grande Prêmio de turfe, ele faz um coquetel autodestrutivo: a fumaça do cigarro fica presa dentro de um copo onde a cetamina e o uísque se misturam. É o dopping costumeiro de cada corrida.

Segundo, quando um velho capanga de um mafioso diz em um jantar: “o infortúnio é a melhor escola”. Diz com surpreendente compaixão sobre o trauma de infância que moldou Remo a ser o que ele é.

Remo é um famoso jóquei cujos dias de glória se esvaíram em uma névoa de substâncias e más decisões. Para ele é a última chance. Um mafioso de corridas de cavalo clandestinas importou um caro cavalo japonês para Remo montar e vencer. Se não... certamente Remo pagará a importação do caro animal com a própria vida.

A comédia argentina estranha e excêntrica Matem o Jóquei! é um experimento em fluxo, uma espécie de escrita automática surrealista onde os momentos oníricos e de vigília se confundem. Que começa com uma reflexão simbólica (com estilo, elegantemente filmado e sequências que parecem videoclipes) sobre a própria condição do jóquei como uma poderosa metáfora: ser um jóquei é ser ao mesmo tempo um atleta e auxiliar. Enquanto o cavalo fica com a glória, seu parceiro humano é um parasita literal: ostensivamente no controle, mas sujeito a impulsos imprevisíveis do animal. Um jóquei está condenado mais à invisibilidade do que a maioria dos esportistas de ponta.



Ou, como explica o herói jóquei, as pessoas andam a cavalo por todos os tipos de razões. Eles cavalgam para chegar ao seu destino mais rapidamente ou para travar uma guerra com mais eficácia. Na maioria das vezes, diz ele, cavalgam para escapar. Este jóquei está familiarizado com a vontade incômoda de voar. Mostre-lhe uma cerca e ele a pulará imediatamente – ou morrerá tentando.

Sem falar que o cavalo foi fundamental para as conquistas militares e formação de Impérios na História, principalmente após a invenção da sela e dos arreios.

Um personagem parasita de um animal, cavalga um símbolo militar e de conquista é um elemento simbólico inusitado para transformar Matem o Jóquei! em um drama surreal do cinema Queer - produções audiovisuais que abordam temas relacionados à comunidade LGBTQI+, desafiando as normas do gênero e sexualidade.

Na verdade, Remo quer correr, fugir e saltar à cavalo da sua própria identidade: morrer, renascer e talvez viver é o lirismo desse filme que é uma mixórdia de elementos: o jóquei do título é alternadamente homem e uma mulher com um casaco, uma bolsa e uma cabeça enfaixada em forma de melancia; uma cabeleireira na prisão, onde conta a história do cavalo subjugado pelo homem para ser usado na guerra; e, novamente, um jóquei competindo em peculiares corridas clandestinas com um cachorro ou com um veículo dirigido por uma versão incomum de um anjo da guarda com chapéu de cowboy.

Também o espectador não deve se surpreender com a sua namorada grávida, Abril (Úrsula Corberá de La Casa de Papel), o aceite afetuosamente quando ele se transforma em uma mulher paqueradora, enquanto ainda namora outro jóquei.



Gangsters, cavalos, cowboys, militares desfilando pelas ruas de Buenos Aires etc. são surrealmente subvertidos em um filme sobre a fragilidade humana, busca de propósito e a batalha de cada pessoa com a própria identidade. Na figura de um jóquei – figura simbólica de um esporte parasitário no qual um jóquei salta para subverter sua própria identidade parasita.

Além de tudo, Matem o Jóquei! é uma poderosa metáfora política de uma Argentina que não aceita mais ser o que sempre foi: submetida a sucessivos golpes, sejam militares ou neoliberais. Como o próprio protagonista, um país que parece ter uma sede insaciável pelo drama e pelo desastre.

Uma metáfora cujo gatilho foi um personagem inusitado que o diretor Luis Ortega descobriu vagando pelas ruas de Buenos Aires:

Um sujeito vagando pela cidade, um russo. Seu nome é Maxi e ele é de Sebastopol. Quando o vi, ele estava vestido metade de homem e metade de mulher: tinha uma carteira, um sapato de salto alto em um pé, um croc no outro e várias medalhas e broches que havia coletado na rua. Ele realmente me chamou a atenção porque era um príncipe vestido de mulher, e comecei a segui-lo. Ele entrou em farmácias, pesou-se, saiu e foi para outra. Quando saiu de uma, aproximei-me dele e o cumprimentei. Ele me disse: "Eu peso zero em todas as balanças. Eu não existo, mas eles estão me seguindo." Isso me pareceu muito claro – clique aqui

O Filme

Assistir a Matem o Jóquei! é ser catalisado pela atuação maravilhosamente impassível de Nahuel Pérez Biscayart como Remo Manfredini, o jóquei que precisa absolutamente, positivamente, vencer sua próxima corrida para se livrar de um gângster.

Biscayart interpreta Remo como se ele fosse o palhaço sentimental de um filme mudo, uma espécie de Buster Keaton com um chicote. Ele dá a impressão de ser o para-raios confuso dos acontecimentos: um agente insincero, indisciplinado e viciado em drogas, que representa um perigo para si mesmo e para praticamente todos ao seu redor. "Sabemos tudo sobre sua sede insaciável por desastres", diz o enrugado Sirena (Daniel Giménez Cacho), o chefe da máfia de corridas de cavalo clandestinas.



Uma cena de abertura atordoante e surreal dá o tom, enquanto a câmera percorre distraidamente diversos desajustados e canalhas em um bar sujo de Buenos Aires, interrompida pela chegada de vários brutamontes empunhando chicotes de montaria. Finalmente, chegamos ao alvo deles: Remo (Pérez Biscayart), que andou bebendo muito durante o dia em vez de se preparar para a corrida iminente. Levado para a pista de corrida por esses mafiosos do derby, ele se recusa a ficar sóbrio, tomando doses furtivas de uísque e tranquilizante para cavalos.

Remo chega ao ápice da autodestruição: com a cabeça cheia da explosiva mistura de uísque e cetamina, faz o cavalo atravessar a pista, sair da corrida para provocar um acidente catastrófico. Para depois, encontrá-lo impassível e com a cabeça enfaixada em uma cama de hospital.

 Remo escapa do hospital para embarcar em uma odisseia sinuosa e triste por Buenos Aires. Ele mudou seu nome para Dolores, trocou seu traje de jóquei por um casaco de pele feminino e um turbante com bandagens brancas e, possivelmente, também trocou seus pronomes de gênero.

As autoridades suspeitam de dano cerebral. "Por causa do ferimento, ele parece perdido no espaço e no tempo", diz o policial que o rastreia pelas câmeras de segurança da cidade.

A namorada grávida de Remo, Abril, o quer de volta. Sirena quer que ele vivo ou morto e manda seus capangas acharem-no. Quando ele pisa na balança dentro da farmácia art déco, a agulha mal se move – é como se ele não existisse. É como se a cidade à noite fosse um limbo espectral, um mundo de sombras; uma fronteira dos sentidos onde um corpo pode vagar livremente.

Enquanto os capangas de Sirena partem em uma caçada humana, uma nova identidade encontra Remo primeiro, embora não de uma só vez: o que começa como uma experimentação intuitiva com maquiagem progride, à maneira logicamente irracional de um sonho, para uma completa regeneração de fora para dentro.



Crianças que passam identificam Remo como sua mãe; um novo nome é assumido sem comentários, como se nunca tivesse sido outra coisa. Mesmo nesses novos termos, a identidade de Remo continua mudando e se ajustando. Se Matem o Jóquei! pretende ser uma alegoria trans, é uma alegoria vaga, embora reflita de forma lúdica sobre a multiplicidade de eus que podem ser abrigados em um corpo, alternadamente ou simultaneamente, por evolução natural ou por design específico. 

Matem o Jóquei! tem um estranho charme. A estética pode levar a uma associação com a precisão visual dos filmes meticulosamente filmados de Wes Anderson, incluindo uma paleta de cores primorosamente concebida nos figurinos e na direção de arte. Mas o tom de Ortega e o comportamento inexpressivo de seu elenco cômico, bem como o uso de música evocativa, explorada para um efeito emocional duradouro, aproximam-se mais daqueles presentes na obra de Yorgos Lanthimos. Sem alcançar, claro, inteiramente a mesma desolação dos filmes do diretor grego.

Em suma, Matem o Jóquei! é um filme que convida à reflexão sobre a natureza humana e a busca de significado em um mundo incerto e mutável, usando o universo das corridas de cavalos como pano de fundo. Uma combinação entre os temas da inconsistência das definições de gênero do cinema Queer e a própria crise de identidade e propósito da Argentina no continente sul-americano. 


 

Ficha Técnica


Título:  Matem o Jóquei!

Diretor: Luis Ortega.

Roteiro: Luis Ortega, Rodolfo Palacios, Fabian Casas

Elenco: Nahuel Perez Biscayart, Úrsula Corberó, Daniel Giméz Cacho

Produção: Rei Pictures, El Despacho

Distribuição: Music Box Films

Ano: 2024

País: Argentina/México

 

 

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