O nosso leitor
Giordano Cimadon da Sociedade Gnóstica Internacional de Curitiba indicou o artigo de S. Brent
Plate (professor de Estudos Religiosos da Hamilton College – EUA) “Religion at
Academy Awards” sobre a intensa presença de temas, símbolos e alegorias religiosas
nos filmes que estão disputando o Oscar desse ano. Para Plate, a indústria do
entretenimento parece ultrapassar as instituições religiosas como a principal
criadora de mitos e rituais em uma sociedade que, paradoxalmente, cresce o
espírito de ceticismo e aversão às religiões organizadas. Filmes como “As
Aventuras de Pi”, "Django Livre”, “Indomável Sonhadora” e “The Master” exploram
antigas simbologias míticas como as da água, enchentes e caos, e bíblicas onde
compaixão, vingança e justiça divina se entrelaçam de forma inextrincável.
Em postagens anteriores falávamos
de uma “guinada metafísica de Hollywood” (veja links abaixo) a partir de uma
série de filmes cujos roteiros e argumentos se inspiravam em antigas narrativas
míticas do Gnosticismo - conjunto de seitas sincréticas do início da era cristã
que davam uma interpretação mística de Cristo. Filmes como “Show de Truman”, “Matrix”,
“Vanilla Sky” entre outros criaram uma coerente recorrência de personagens,
temas e simbolismos gnósticos.
Mas Plate parece demonstrar um
fenômeno diferente no artigo que reproduzimos abaixo: um sincretismo de
simbologias, temas e rituais de religiões institucionalizadas e mitologias
antigas, tudo cimentado pela auto-ajuda e a crença no trabalho duro do herói - ideologia
do “self made man” americano? É o que chamaríamos de “ecumenismo pós-moderno”.
O mesmo sincretismo desesperado do protagonista Pi em “As Aventuras de Pi” que
misturava práticas cristãs com hinduísmo e islamismo em busca de algum sentido.
É o paradoxo descrito por Plates em um mundo onde as religiões
institucionalizadas decrescem na proporção inversa do crescimento do “espiritualismo”.
Religion at Academy Awards
S. Brent Plate
(The
Huffingston Post, 03/02/2013)
No momento em que reverenciamos
uma estátua dourada chamada Oscar em rituais de exaltação a um santo despido enquanto
lemos as nossas sagradas colunas de fofocas, podemos parar para refletir sobre
o lugar permanente dos temas e alegorias religiosas nos filmes que disputam o
prêmio desse ano. Mais uma vez os filmes indicados ao Oscar deste ano estão repletos
de referências religiosas demonstrando que a indústria do entretenimento parece
ultrapassar as instituições religiosas como a principal criadora de mitos e rituais
em uma sociedade onde os “céticos” ou “não-religiosos” estão em ascensão.
"Os Miseráveis": música e alguns rostos bonitos ajudam a tornar viúvas, órfãos e ladrões mais suportáveis |
"Django Livre": Bíblia e vingança
Mas, se os caras maus são feios
tanto no rosto quanto no espírito, podemos nos deliciar com a mais dura justiça.
"Django Livre" foi, de acordo com um crítico de destaque, um
"prazer narcótico e delirante". O encontro do gênero spaghetti-western
com a violência explosiva de Quentin Tarantino levanta questões sobre o papel da
violência e o lugar da religião na criação desta nação. Duas cenas trazem isso
para o campo religioso. A primeira ocorre no início, quando um traficante de
escravos leva em torno de uma Bíblia um chicote, citando algumas passagens sobre
a justiça das escolhas de Deus. Várias páginas de uma Bíblia estão presas ao
seu corpo quando Django (Jamie Foxx) atira nele. A página que está sobre o seu
coração onde se lê "couraça da justiça" (Isaías 59,17) se torna o alvo
de uma bala.
A cena corolária vem no final,
quando o Django inicia uma séria revanche. Quando Django se prepara para
descarregar balas nos corpos dos escravagistas, a letra da música neo-soul
de John Legend (“Quem fez isso com você?”) lembra-nos que toda vingança é do
Senhor “Mas eu vou fazer isso primeiro", pois "meu julgamento é
divino ", diz Django. As
implicações são claras: Django encarna a vingança de Deus. E quando os irmãos
Brittle tombam mortos, Django proclama: "Eu gosto do seu jeito de morrer,
rapaz", uma afirmação que se torna também o grito narcótico e delirante do
público.
A vingança de Django não está
muito longe da história do abolicionista cristão John Brown, que pegou nas
armas no mesmo período histórico em que a narrativa de “Django Livre” foi
definida, na véspera da Guerra Civil. Brown
afirma: "Tenho pena do pobre no cativeiro que não dispõe de qualquer ajuda:
é por isso que eu estou aqui, não para satisfazer qualquer animosidade pessoal ou
espírito vingativo." Após uma fracassada tentativa militar em roubar armas
do arsenal Harper’s Ferry, Victor Hugo publicou uma carta buscando perdão a Brown.
Caridade cristã, atitudes em relação ao oprimido e a violência se misturam de
uma forma difícil de se separar.
Certa vez T.S. Eliot poetizou
sobre o poder do "estranho deus marrom", que é um rio, e como na modernidade
nos esquecemos desse poder quando nós construímos pontes sobre ele. Até que um dia ele
se enfurece, se levanta e destrói. A água pode limpar, mas mitos após mitos
religiosos (e não apenas a respeito de Noé) apresentam a água como portadora da morte. Inundações
representam o caos em erupção a partir do profundezas, ultrapassando a ordem cósmica da terra dos
vivos. Ambos os filmes “Indomável Sonhadora” (Beasts of the Southern Wild) e “As
Aventuras de Pi” (Life of Pi) bebem nessas antigas fontes históricas, levando-nos de
volta ao primitivo, ao destrutivo e, finalmente, ao poder recriador de água.
"Django Livre": Django encarna a vingança de Deus |
"Eu sou espiritual, não religioso"
"Indomável Sonhadora"
(dirigido por Behn Zeitlin) também encontra uma jovem protagonista na jornada
do herói, lutando contra as ameaças do caos, de águas que sobem para ameaçar a forma
de vida da sua comunidade. As enchentes vêm, assim como os animais selvagens, e
ameaçam a ordem das coisas. Até a jovem Hushpuppy (Quvenzhané Wallis) chegar a
algum ponto de resolução em sua vida e aceitar a morte e as mudanças, os
animais ameaçam. Ela conta suas histórias através de fotos que estão no interior
das caixas, assim como os seres humanos da Idade da Pedra que deixaram as
marcas de seus animais nas cavernas de Lascaux.
Mais do que qualquer outro filme
no ano passado, "O Mestre" conta a história de nossa espiritualidade
contemporânea, o pano de fundo do nosso credo recitado coletivamente: "eu
sou espiritual, não religioso". Ao contar a enigmática história da ascensão
da Cientologia, Paul Thomas Anderson embarca em um projeto de mitificação do chamado
“Século Americano”. Firmemente fixada no início da geração Baby Boomer, "O
Mestre" é Lancaster Dodd (Philip Seymour Hoffman), que através da hipnose
revela histórias pessoais dos pacientes / clientes / consumidores (e nunca se
sabe ao certo qual). Psicoterapia mistura auto-ajuda com uma estrutura cósmica apontando para um amanhã mais puro, perfeito e
agradável. Mitologias não estão mais presos em um passado distante, mas estão
em nós mesmos e bem colocados dentro de uma história mítica.
Em uma época de ceticismo e um
movimento geral de distância das religiões organizadas, os vestígios do sagrado
ainda permanecem. É maravilhoso saber que no momento em que as dimensões
religiosas da vida podem realmente ser eliminadas, os antigos mitos e rituais e
símbolicos tornam-se uma espinha dorsal das produções culturais atuais. Talvez,
como Eliot colocou: "O rio está dentro de nós, o mar é tudo sobre
nós."
Escolhas para o “Oscar
Religioso” 2012:
Melhor Criação de Mitologia: (empate) "Indomável
Sonhadora" e "A Viagem"
Melhor Reutilização de Ritual: "The Sessions"
Melhor Iconografia: "Samsara"
Melhor escrúpulo ético: "Zero Dark Thirty"
Melhor sentido do sagrado no cotidiano: "Amour"
Melhor Jornada do Heroi: "Brave"
Melhor advertência sobre os Excessos da Religião: “The
Master”