terça-feira, fevereiro 12, 2013

Origens míticas e mágicas do Belo e da Arte


Limpando o sótão de casa e tentando dar uma ordem nas pilhas de livros e papéis, para minha surpresa acabei encontrando os originais de um texto datilografado que foi a base de uma palestra dada por mim na Associação Santista de Dança lá pelos meados da década de 1980. Lembro-me que o tema proposto era “O Belo e a Arte” e fazia parte de uma semana cultural promovida pela Associação. É um texto de juventude, bem radical, raivoso e adorniano – fiquei pensando: “pobres daqueles que ouviram essa palestra...”. Ironias à parte, o texto procurava tratar sobre o destino da noção de Belo em uma sociedade de consumo que a explora como “álibi” para dar um rótulo “nobre” ao objeto artístico mercantilizado. O argumento é que com a sua mercantilização, esvazia-se a dimensão utópica e crítica da noção de Belo desde suas origens míticas e mágicas. As referências do texto são basicamente Theodor Adorno e Max Horkheimer do livro “A Dialética do Esclarecimento” e do italiano Massimo Canevacci e sua visão de uma antropologia marxista do livro “Antropologia do Cinema”. Confira abaixo e vejam o que vocês acham...


O que é o Belo? O que é a Arte? Toda vez que nos fazem essas perguntas ficamos embaraçados ou tentamos respondê-las de forma titubiante, confusa e, como último recurso, apontamos para um objeto e dizemos: “arte é aquilo, aquele quadro...”. Por que esta dificuldade? Por que conceitos que utilizamos tantas vezes com tanta aparente segurança no cotidiano são tão difíceis de definição num momento de pausa para análise? Talvez porque as noções de Arte e Belo na modernidade sejam exatamente isso: opacidade, abstração, indefinição. A arte na modernidade é acima de tudo esquecimento, farsa e álibi. É quando o artista diz que está num lugar quando na verdade está em outro completamente diferente.

Comumente define-se o Belo e a Arte um pelo outro. Não é verdade. O Belo tem origens nos rituais míticos e mágicos nas sociedades arcaicas como a primeira e original forma do espírito humano se posicionar diante do terror e da angústia proporcionado pelo mundo desconhecido lá fora. Arte é uma noção que somente vem aparecer no capitalismo: a forma como o capitalismo vem repetir como farsa a noção do Belo arcaico, isto é, a maneira pela qual são absorvidas práticas singulares de uma instituição total mítica (pintura, dança, música etc.) a fim de atender às finalidades da forma de sociabilidade e produção econômica capitalista em instituições, agora claramente classistas e profissionais como coreógrafos, músicos etc.

O Belo: Mito e Magia


A Tragédia Grega representava as forças
naturais desconhecidas por meio
da mimese - imitação.
A noção de Belo tem origem nos rituais míticos e mágicos. A partir do instante em que o homem nomeia o objeto desconhecido pelo grito de horror e este nome passa a fazer parte de um sentido cósmico, vemos então o raciocínio humano sair da tautologia para o plano da linguagem e da divindade. Ou seja, a crença de que aquele objeto isolado faça parte de uma ordenação divina, oposta à desordem, ao horror e a angústia profanas do mundo cotidiano.

O ritual possuía a função de justamente unir o divino ao profano. A tentativa de manter o equilíbrio entre a esfera da harmonia divina com a esfera onde esta harmonia rompe-se em elementos particulares, desordenados e ameaçadores. O papel do ritual nas sociedades míticas arcaicas expressava a experiência angustiante em unir todos os elementos dispersos de volta à unidade original, a unidade da Beleza, onde o desconhecido e o terrível são domados e organizados em uma unidade Bela.

Em síntese, o mito expressava aquele desejo antropológico de conciliação entre homem e natureza, homem e sociedade. Por exemplo, na Tragédia grega os artistas representavam, com suas máscaras, as mysterias, as forças naturais desconhecidas. Por meio da mimese (imitação) o mau era a representação do terror profano e o bem o apaziguamento divino - onde eram eleitos seus heróis.

Cabe ressaltar que nestes rituais não existia a oposição entre público/artista que na modernidade se expressaria na oposição consumidores/produtores. O espaço reservado ao público era concêntrico, onde cada um podia observar, de qualquer lugar, a totalidade cultural do momento. O público era o “coro” que, juntamente com os artistas, entrava em ecstasis ou en-tousiamos, isto é, o momento em que seus espíritos individuais saiam de seus corpos para se integrarem à totalidade Divina ou Bela.

O ritual do Belo era experimentado como uma atividade de vida ou de morte para o equilíbrio coletivo da comunidade, uma forma de apaziguar o terror e a angústia diante do mundo exterior.

Porém, o mais importante era a sua dimensão crítica. Esta dimensão estética ou divina (aqui essas noções praticamente se confundem) era experimentada como utopia e transcendência à realidade. O mito expressava um desejo de conciliação e felicidade que nunca poderia realizar-se na esfera profana onde reina a infelicidade e a morte. Por isso a dimensão mítica surgia como um contraponto à realidade existente. O mito não tinha a presunção de realizar no profano a felicidade, presunção esta que a sociedade moderna produtora de mercadorias assumirá como falsa-consciência, cuja noção de “arte” será o Belo arcaico mercantilizado, limpo da angústia e crítica originárias.

Mercadoria e desigualdade


A nova forma de reprodução da
desigualdade po meio da
produção social de objetos
O capitalismo inaugura na História uma nova forma de reprodução de autoridade e desigualdade sociais, não mais através da  representação pessoal teocrática, mas agora na produção social de objetos através do trabalho. 

Aquele que produzir mais objetos para o mercado ao menor preço e aquele que consumir mais objetos possuirá mais prestígio social e autoridade.

Aparentemente as chances são iguais para todos: qualquer um pode trabalhar e enriquecer. Porém, não é verdade: se um grupo consome ou produz mais objetos é porque outro grupo não está consumindo e nada produzindo. Se um enriquece é porque outro está empobrecendo. Por trás da liberal aparência da sociedade capitalista há uma competição atroz: cada salário que uma pessoa ganha, cada fonte de renda que alguém possuir é porque esse dinheiro é arrancando do insucesso de alguém, do desemprego e da miséria do outro. Sendo os objetos ou as mercadorias a mediação dessa produção da desigualdade, as coisas não aparecem como elas são, pois tudo passa a ser opaco e abstrato.

Arte: a mercantilização do Belo


A função crítica e utópica da arte é
absorvida como objeto econômico
A burguesia ascendente aspirava ao luxo e ostentação do seu adversário político: a nobreza. Concilia sua ética puritana do trabalho com a ostentação da nobreza pela seguinte forma: tomando emprestado valores e modelos estéticos Greco-romanos a fim de constituir a estética do chamado Renascimento. Porém, a noção de Belo é recuperada não mais como mito, mas, agora, como objeto econômico - veja, por exemplo, a transformação das pinturas religiosas de grandes afrescos para a superfície limitada das telas para usufruto individual.

A produção do Belo para o mercado enquanto objeto artístico resulta num efeito importante: o Belo perde sua função crítica e utópica enquanto mito ao ser absorvido como objeto econômico. Aquele caráter angustiante do Belo arcaico é afastado: todos podem ser felizes, o artista produz a arte para o consumidor, para o usufruto individual. É como vivêssemos no melhor dos mundos: todos, produtores, artistas e consumidores estão irmanados em um ideal de fruição estética. Não há interesses conflitantes.

Parece que a finalidade ideal da sociedade de consumo é a democratização do Belo, para todos os consumidores. É o liberalismo relativizado. Encobre-se o antagonismo entre sujeitos sociais que se apresentam no mercado. Por exemplo, encobre-se o fato de que a arte é sua técnica é ditado por “panelas” de “especialistas” e merchants que monopolizam esse saber com o único objetivo de defender o seu lugar ao sol numa sociedade competitiva.

O mundo cultural não é um mundo específico. Pelo contrário, o rótulo do “cultural” ou do “artístico” foi retirado  das cosmovisões míticas do passado e que hoje é repetido como farsa ou álibi, uma falsa aura que revestirá o objeto-mercadoria produzido por um grupo de produtores a fim de dourar a pílula.

A ideia vigente de que a sociedade de consumo democratiza a Verdade é uma pura aparência presunçosa de realização da conciliação expressada pelo mito arcaico. Na medida em que é secularizado como objeto no mercado, o Belo perde o seu caráter crítico e utópico como felicidade que ainda não se realizou e presta-se como mero álibi de um objeto artístico. Tudo isso para reivindicar um liberalismo que, já falido no século XIX com o advento dos monopólios e cartéis industriais, ressurge no século XX como sociedade de consumo que explora toda uma herança mítica e mágica do imaginário cultural.

A conciliação ainda não se realizou. Se o artista recebe pelo que faz, é porque ele está aferindo esse valor de algum lugar, fazendo girar os mecanismos da economia competitiva e reproduzindo as desigualdades e miséria. O dinheiro do artista não surge do quadro.

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