Limpando o sótão de
casa e tentando dar uma ordem nas pilhas de livros e papéis, para minha
surpresa acabei encontrando os originais de um texto datilografado que foi a
base de uma palestra dada por mim na Associação Santista de Dança lá pelos
meados da década de 1980. Lembro-me que o tema proposto era “O Belo e a Arte” e
fazia parte de uma semana cultural promovida pela Associação. É um texto de
juventude, bem radical, raivoso e adorniano – fiquei pensando: “pobres daqueles
que ouviram essa palestra...”. Ironias à parte, o texto procurava tratar sobre o destino da
noção de Belo em uma sociedade de consumo que a explora como “álibi” para dar
um rótulo “nobre” ao objeto artístico mercantilizado. O argumento é que com a
sua mercantilização, esvazia-se a dimensão utópica e crítica da noção de Belo
desde suas origens míticas e mágicas. As referências do texto são basicamente
Theodor Adorno e Max Horkheimer do livro “A Dialética do Esclarecimento” e do
italiano Massimo Canevacci e sua visão de uma antropologia marxista do livro
“Antropologia do Cinema”. Confira abaixo e vejam o que vocês acham...
O que é o Belo? O que é a Arte? Toda vez que nos fazem essas
perguntas ficamos embaraçados ou tentamos respondê-las de forma titubiante,
confusa e, como último recurso, apontamos para um objeto e dizemos: “arte é
aquilo, aquele quadro...”. Por que esta dificuldade? Por que conceitos que
utilizamos tantas vezes com tanta aparente segurança no cotidiano são tão
difíceis de definição num momento de pausa para análise? Talvez porque as
noções de Arte e Belo na modernidade sejam exatamente isso: opacidade,
abstração, indefinição. A arte na modernidade é acima de tudo esquecimento,
farsa e álibi. É quando o artista diz que está num lugar quando na verdade está
em outro completamente diferente.
Comumente define-se o Belo e a Arte um pelo outro. Não é
verdade. O Belo tem origens nos rituais míticos e mágicos nas sociedades
arcaicas como a primeira e original forma do espírito humano se posicionar
diante do terror e da angústia proporcionado pelo mundo desconhecido lá fora.
Arte é uma noção que somente vem aparecer no capitalismo: a forma como o
capitalismo vem repetir como farsa a noção do Belo arcaico, isto é, a maneira
pela qual são absorvidas práticas singulares de uma instituição total mítica
(pintura, dança, música etc.) a fim de atender às finalidades da forma de
sociabilidade e produção econômica capitalista em instituições, agora claramente
classistas e profissionais como coreógrafos, músicos etc.
O Belo: Mito e Magia
A Tragédia Grega representava as forças naturais desconhecidas por meio da mimese - imitação. |
A noção de Belo tem origem nos rituais míticos e mágicos. A
partir do instante em que o homem nomeia o objeto desconhecido pelo grito de
horror e este nome passa a fazer parte de um sentido cósmico, vemos então o
raciocínio humano sair da tautologia para o plano da linguagem e da divindade.
Ou seja, a crença de que aquele objeto isolado faça parte de uma ordenação
divina, oposta à desordem, ao horror e a angústia profanas do mundo cotidiano.
O ritual possuía a função de justamente unir o divino ao
profano. A tentativa de manter o equilíbrio entre a esfera da harmonia divina
com a esfera onde esta harmonia rompe-se em elementos particulares,
desordenados e ameaçadores. O papel do ritual nas sociedades míticas arcaicas
expressava a experiência angustiante em unir todos os elementos dispersos de
volta à unidade original, a unidade da Beleza, onde o desconhecido e o terrível
são domados e organizados em uma unidade Bela.
Em síntese, o mito expressava aquele desejo antropológico de
conciliação entre homem e natureza, homem e sociedade. Por exemplo, na Tragédia
grega os artistas representavam, com suas máscaras, as mysterias, as forças naturais desconhecidas. Por meio da mimese
(imitação) o mau era a representação do terror profano e o bem o apaziguamento
divino - onde eram eleitos seus heróis.
Cabe ressaltar que nestes rituais não existia a oposição
entre público/artista que na modernidade se expressaria na oposição
consumidores/produtores. O espaço reservado ao público era concêntrico, onde
cada um podia observar, de qualquer lugar, a totalidade cultural do momento. O
público era o “coro” que, juntamente com os artistas, entrava em ecstasis ou en-tousiamos, isto é, o momento em que seus espíritos individuais
saiam de seus corpos para se integrarem à totalidade Divina ou Bela.
O ritual do Belo era experimentado como uma atividade de
vida ou de morte para o equilíbrio coletivo da comunidade, uma forma de
apaziguar o terror e a angústia diante do mundo exterior.
Porém, o mais importante era a sua dimensão crítica. Esta dimensão estética ou
divina (aqui essas noções praticamente se confundem) era experimentada como
utopia e transcendência à realidade. O mito expressava um desejo de conciliação
e felicidade que nunca poderia realizar-se na esfera profana onde reina a
infelicidade e a morte. Por isso a dimensão mítica surgia como um contraponto à
realidade existente. O mito não tinha a presunção de realizar no profano a felicidade,
presunção esta que a sociedade moderna produtora de mercadorias assumirá como
falsa-consciência, cuja noção de “arte” será o Belo arcaico mercantilizado,
limpo da angústia e crítica originárias.
Mercadoria e desigualdade
A nova forma de reprodução da desigualdade po meio da produção social de objetos |
O capitalismo inaugura na História uma nova forma de
reprodução de autoridade e desigualdade sociais, não mais através da representação pessoal
teocrática, mas agora na produção social de objetos através do trabalho.
Aquele
que produzir mais objetos para o mercado ao menor preço e aquele que consumir
mais objetos possuirá mais prestígio social e autoridade.
Aparentemente as chances são iguais para todos: qualquer um
pode trabalhar e enriquecer. Porém, não é verdade: se um grupo consome ou
produz mais objetos é porque outro grupo não está consumindo e nada produzindo.
Se um enriquece é porque outro está empobrecendo. Por trás da liberal aparência
da sociedade capitalista há uma competição atroz: cada salário que uma pessoa
ganha, cada fonte de renda que alguém possuir é porque esse dinheiro é
arrancando do insucesso de alguém, do desemprego e da miséria do outro. Sendo
os objetos ou as mercadorias a mediação dessa produção da desigualdade, as
coisas não aparecem como elas são, pois tudo passa a ser opaco e abstrato.
Arte: a mercantilização do Belo
A função crítica e utópica da arte é absorvida como objeto econômico |
A burguesia ascendente aspirava ao luxo e ostentação do seu
adversário político: a nobreza. Concilia sua ética puritana do trabalho com a
ostentação da nobreza pela seguinte forma: tomando emprestado valores e modelos
estéticos Greco-romanos a fim de constituir a estética do chamado Renascimento.
Porém, a noção de Belo é recuperada não mais como mito, mas, agora, como objeto
econômico - veja, por exemplo, a transformação das pinturas religiosas de
grandes afrescos para a superfície limitada das telas para usufruto individual.
A produção do Belo para o mercado enquanto objeto artístico
resulta num efeito importante: o Belo perde sua função crítica e utópica
enquanto mito ao ser absorvido como objeto econômico. Aquele caráter
angustiante do Belo arcaico é afastado: todos podem ser felizes, o artista
produz a arte para o consumidor, para o usufruto individual. É como vivêssemos
no melhor dos mundos: todos, produtores, artistas e consumidores estão
irmanados em um ideal de fruição estética. Não há interesses conflitantes.
Parece que a finalidade ideal da sociedade de consumo é a
democratização do Belo, para todos os consumidores. É o liberalismo
relativizado. Encobre-se o antagonismo entre sujeitos sociais que se apresentam
no mercado. Por exemplo, encobre-se o fato de que a arte é sua técnica é ditado
por “panelas” de “especialistas” e merchants que monopolizam esse saber com o
único objetivo de defender o seu lugar ao sol numa sociedade competitiva.
O mundo cultural não é um mundo específico. Pelo contrário,
o rótulo do “cultural” ou do “artístico” foi retirado das cosmovisões míticas do passado e que hoje
é repetido como farsa ou álibi, uma falsa aura que revestirá o
objeto-mercadoria produzido por um grupo de produtores a fim de dourar a
pílula.
A ideia vigente de que a sociedade de consumo democratiza a
Verdade é uma pura aparência presunçosa de realização da conciliação expressada
pelo mito arcaico. Na medida em que é secularizado como objeto no mercado, o
Belo perde o seu caráter crítico e utópico como felicidade que ainda não se
realizou e presta-se como mero álibi de um objeto artístico. Tudo isso para
reivindicar um liberalismo que, já falido no século XIX com o advento dos
monopólios e cartéis industriais, ressurge no século XX como sociedade de
consumo que explora toda uma herança mítica e mágica do imaginário cultural.
A conciliação ainda não se realizou. Se o artista recebe
pelo que faz, é porque ele está aferindo esse valor de algum lugar, fazendo
girar os mecanismos da economia competitiva e reproduzindo as desigualdades e
miséria. O dinheiro do artista não surge do quadro.