As chamadas
fotografias corporativas acabaram se tornando um subgênero fotográfico,
onipresentes em banco de imagens, templates de blogs e sites, slides de
apresentações de qualquer natureza e, claro, no endomarketing de empresas.
Fotos onde são mostradas pessoas em situações positivas, motivadas, otimistas e
de boa fé. De “tecnologia de poder” que busca criar a autoimagem e justificativa
de instituições totais como empresas, hoje esse estilo de composição
fotográfica invade outros campos como educação, saúde, internet e publicidade. São
tidas como fotos “inspiradoras” e “motivacionais” em apresentações e
treinamentos de Recursos Humanos. Porém, não resistem a uma análise semiótica,
capaz de explicitar toda a carga de mitologia, estereótipo e retórica a partir
da qual são estruturadas.
Ambientes corporativos me fazem
lembrar o conceito do sociólogo Erving Goffman (1922-1982) de “instituições totais”: estabelecimentos
fechados, funcionando sobre regime de internação, onde um vasto grupo de
pessoas internadas fica subordinado a um grupo menor que dirige
autoritariamente a instituição. Sua principal característica é que elas quebram
barreiras e unificam as três esferas da vida: dormir, brincar e trabalhar.
Essas instituições são capazes de criar
“tecnologias de poder” altamente criativas para propósitos de vigilância,
repressão, punição, legitimação e justificação. Dessas tecnologias de poder,
certamente uma das mais cruciais é como a instituição se mostra aos seus
integrantes legitimando-se e justificando para seus subordinados a natureza do
seu trabalho e a sua própria existência. A comunicação interna (house organs,
endomarketing, folders, intranets, slides em reuniões etc.) passa a ser de
importância estratégica ao criar uma autoimagem da corporação para seus
“colaboradores”.
O que mais chama a atenção nessas
tecnologias de poder são as chamadas “fotografias corporativas” porque elas
perpassam todas as mídias voltadas à comunicação interna: estão presentes em
slides de apresentação, nos folders do mundo dos negócios, nos sites de
intranets, nos materiais de treinamento, nas comunicações do RH etc.
As fotografias corporativas criaram um subgênero fotográfico presente em diversas mídias e instituições |
Mais do que isso, esse estilo de foto
parece criar um paradigma copiado por outras “instituições totais” como
escolas, universidades, hospitais etc. A linguagem visual dessa tecnologia de
poder corporativa acabou criando uma espécie de subgênero fotográfico presente
em banco de imagens na Internet, galeria de imagens de softwares processadores
de texto ou de edição de slides de apresentação, templates de blogs e de sites
etc. Qualquer seminário de grupo de alunos exibidos em uma aula universitária
ou reunião de qualquer natureza, pronto! Lá estão slides com fotos em estilo
corporativo de banco de imagens: situações de atitudes positivas, imagens de
pessoas motivadas e com boa fé, personagens sorridentes confiantes e
altruístas.
Uma semiótica da mitologia corporativa
A ideologia das imagens é o
objeto mais difícil de ser desmontado pela análise semiótica porque toda imagem
é afirmativa, natural e evidente por si mesma. A imagem parece ser um simples
decalque da realidade. Essa ingenuidade em relação às imagens foi
desmistificada principalmente pelo semiólogo francês Roland Barthes em dois
livros fundamentais: “Mitologias” (onde revela o mecanismo de funcionamento dos
mitos da mídia francesa na década de 1950) e “O Sistema da Moda” (desmontagem
dos clichês das revistas de moda francesas, revelando o arbitrário e a ideologia
linguística no campo da moda e estilismo).
Barthes era um intolerante
perante a mistura de má fé com boa consciência que os mitos e estereótipos
produzem na sociedade e que depois as pessoas consomem como sentidos inatos. As
fotografias corporativas seriam o típico objeto de análise barthesiano: um
sistema de significação cercado por um ar de razão, boa fé e harmonia que pode
ser desmontado, evidenciando o arbitrário do discurso visual.
Inspirado principalmente no
método de análise semiológica (uma vertente europeia da semiótica, ciência geral
dos signos) proposto por Barthes no “Sistema da Moda” vamos fazer uma análise de natureza ensaística e introdutória. Como “corpus” de análise
vamos nos basear em uma amostragem dos resultados do mecanismo de busca do “Google
Imagem” para a expressão “fotografia corporativa”.
Em um primeiro olhar, o
sistema da fotografia corporativa parece possuir uma linguagem pobre, binária:
exterior/interior da empresa; trabalhando em equipe/trabalhando sozinho;
situações positivas/situações negativas; concentrada no trabalho/desconcentrada;
fotografias simbólicas/fotografias realistas; pessoas olhando para a câmera/sem
olhar para câmera. Isso é compreensível em instituições totais que exigem
adesão imediata por meio de uma linguagem simples e sem matizações.
Percebendo essas dicotomias das
situações no conjunto de fotografias, segundo passo é dividi-las em grupos de
significações ou “classes de equivalência”, ou seja, a equivalência entre as
situações particulares mostradas pelas fotos com uma ideia abstrata, imaterial
e universal. O que podemos perceber na significação recorrente do corpus de
análise, as classes formadas seriam essas:
[Exterior da empresa ≡ competição]; [Interior da empresa ≡ colaboração]; [olhando para a câmera ≡ pessoa exemplar]; [sem olhar para a câmera ≡ equipe]; [pessoas concentradas ≡ precisão]; [pessoas sorridentes ≡ vitoriosas]; [pessoas sérias ≡ luta pela vitória]; [fotos simbólicas ≡ positividade]; [fotos simbólicas ≡ negatividade]. Temos, portanto, nove classes de equivalência no pequeno universo desse ensaio (veja fotos abaixo).
Se percebermos bem, essas
classes de equivalência podem ser agrupadas em dois grandes “filo” ou divisões:
[situações positivas] e [situações negativas].
Classes das situações positivas para a empresa
Percebemos que fora da empresa
reina a competição: pessoas correndo com pastas e celulares, situações
individualistas, fotos simbólicas de homens de terno correndo para romper fitas
de chegada etc. Ao contrário, no interior da empresa reina colaboração,
trabalho em equipe e “colaboradores” que posam sorridentes, lado a lado, para
as câmeras. Nessas fotos há uma divisão entre os sorridentes (em posição
destacada, à frente dos outros) como aquele que parece ser o vencedor, o
exemplar; e aqueles concentrados diante de laptops e celulares que parecem
ainda lutar pela vitória.
Nessa classe há uma dupla mensagem
contraditória: se no interior da empresa reina a colaboração e fora dela a
competição, essa oposição operada entre sorridentes e não sorridentes demonstra
o contrário – há também competição em um ambiente de aparente solidariedade e
harmonia. Mesmo nas fotos de reuniões, a câmera procura concentrar o foco
sempre em alguém mais destacado (em pé, diante do laptop, com uma caneta na mão
a dizer algo etc.) desfocando os demais personagens da mesma cena.
As fotos dessa classe parecem conter
um “ato falho” ou um sintoma do jogo corporativo: todos devem ser colaboradores
imbuídos de espírito de equipe, mas em seu conjunto as fotos falam o contrário:
a câmera privilegia aquele que se destacou, o exemplar, o vitorioso.
Classe de situações negativas para a empresa
Aqui também existe uma dupla
mensagem contraditória: são fotos simbólicas que representam três tipos de
situações “negativas” para a atmosfera de colaboração no interior da empresa:
stress, fofoca e boato. Embora as fotos representem situações não desejáveis
para o ambiente de trabalho, estranhamente as fotos mantém a mesma linguagem
das fotos “positivas” – matiz azul, tons pastéis, pouquíssimo contraste, dando
uma aspecto de “cotidianidade” ou “normalidade”. Estranhamente não há uma
retórica “dramática” (contraste mais forte, sombras ou alteração de matiz) que
dê um aspecto de exceção ou disfuncionalidade às situações.
Seria mais um ato falho do jogo
corporativo? Afinal, sabemos que muitas vezes o jogo corporativo torna-se
maquiavélico onde stress, fofocas e boatos podem ser instrumentalizados por
chefias para produzir competições internas, dinamismo para, segundo essa
filosofia, arrancar os “colaboradores” da passividade e conformismo. Filmes
como “Cisne Negro” (Black Swan, 2010) mostra bem isso na situação de uma Companhia
de Balé cujo diretor artístico manipula a competição entre duas bailarinas
alimentando fofocas e intrigas para arrancar delas o máximo de desempenho.
O sistema Retórico: os estereótipos
Vimos acima que as classes de
equivalências formam os signos, ou seja, as menores unidades de significação do
sistema das fotografias corporativas. Essa equivalência é sempre arbitrária
(por exemplo, [exterior ≡ competição]), isto é, atribuem-se valores abstratos a
coisas materiais. Mas o sistema necessita que essas relações semióticas sejam
naturais e imperativas para que sejam consumidas como imagens evidentes por si
mesmas. Entra em ação o sistema retórico com a finalidade de criar estereótipos
e clichês de cores, vestuários etc.
Um longo inventário dos elementos
retóricos desse sistema iria além do espaço dessa postagem, mas vamos analisar
os principais:
(a) Na maior parte das fotografias
encontramos personagens femininos com cabelos longos e lisos e os homens lisos
e curtos. Há raras exceções de personagens masculinos com cabelos encaracolados
ou ondulados. Os cabelos lisos são onipresentes. Símbolo do conformismo ou de
marca étnica?
(b) O uso de óculos é verificado
principalmente em mulheres e quase sempre em situações de concentração em laptops,
celulares ou atentas em reuniões. Isso não é verificado nos personagens
masculinos. Parece que os óculos são necessários para caracterizar “seriedade”
e “profissionalismo” nos personagens femininos. Em algumas fotos as mulheres
seguram canetas. Nas fotos, às mulheres é mais exigido o uso de ícones da
seriedade (canetas, óculos, dedos segurando o queixo etc.) do que aos homens.
(c) Nas fotos simbólicas onde se mostram
cumprimentos com as mãos como um ícone dos fechamentos de negócios, a
esmagadora maioria é com personagens masculinos.
(d) A cor azul é onipresente,
como fundo ou como a matiz da fotografia. Eva Heller em seu livro “Psicologia Del
Color” demonstra, a partir de entrevistas realizadas com um universo de 2.000
pessoas, que a cor azul combinada com o verde transmite os valores mais caros
ao mundo corporativo: harmonia, confiança e amizade. Não é à toa que no papel
de parede do Windows XP dominava o verde e o azul e essa combinação está
presente em muitos materiais impressos corporativos. Porém, a cor azul como dominante
é a cor masculina por excelência.
(e) Também há uma onipresente
tonalidade pastel nas cores, com poucos contrastes, criando uma atmosfera de
harmonia e serenidade – mesmo nas cenas “negativas” de stress, boatos e
fofocas.
(f) Massiva utilização do plano de
câmera contra-plongeé (debaixo para cima) para incutir nos personagens (quase
sempre masculinos) idealismo, visão de futuro, poder e sucesso profissional.
Para a nossa surpresa, o sistema
retórico demonstrou ser extremamente machista, colocando uma diferença
hierárquica principalmente de sexo, ao contrário do sistema de classes de
equivalência onde tanto homens como mulheres são mostrados como personagens
vitoriosos, exemplares ou de destaque. Mais uma vez parece encontrarmos um ato
falho: embora o discurso corporativo mantenha os valores de equipe, colaboração
e igualdade, o sistema retórico demonstra uma implícita discriminação sexual no
dia-a-dia de trabalho.
Postagens Relacionadas:
- A Semiótica do poder das imagens
- O que há de comum entre a fotografia e o dinheiro
- A semiótica da macumba
- Filme "Cisne Negro": o drama do artista privado da sua arte