Qual a
representação do imaginário da bicicleta na música e no cinema? Para nossa
surpresa encontramos uma conexão sincromística entre estas representações que relacionam a bicicleta
com um particular estado de consciência (pelo seu singular design que funde homem
e máquina) e o gnosticismo do pensador Basilides: o alterado estado mental de
"suspensão" que permitiria silenciar o ruído da linguagem para que
ouçamos o espírito.
Basilides, um dos primeiros professores
gnósticos em Alexandria, Egito, no século II da Era Cristã, nutria uma radical
desconfiança em relação à capacidade da linguagem apreender a realidade. Sua
teoria pode ser resumida na ideia da Grande Negação: se a verdade sobre Deus
está além do conhecimento humano, a negação do conhecimento e da linguagem é o
sagrado caminho.
No seu escrito “Sete Sermões aos
Mortos” Basilides afirma que diante da plenitude (Pleroma – a origem de onde
tudo foi emanado) “pensamento e existência cessam porque o eterno é desprovido
de qualidade”. O mundo criado (o cosmos físico), ao contrário, é regido pelo
princípio de “diferenciação” onde aquilo que era uno é cindido em qualidades
opostas. Através da linguagem e do conhecimento o homem torna-se obcecado em
apreender as qualidades do devir nomeando-as através de conceitos e palavras
uma realidade que é difusa, fluída, relativa. Se as qualidades do Pleroma são
pares opostos que se anulam mutuamente (a união dinâmica dos opostos: plenitude/vazio,
belo/feio, tempo/espaço, energia/matéria etc.), ao contrário, a linguagem
humana as diferencia, discrimina, tonando-nos vítimas dos pares de opostos.
O resultado é o Mal: na busca do Belo,
o homem produz o feio; na busca da paz acaba produzindo a guerra, na busca do
eficaz por meio da tecnologia acaba produzindo a inutilidade, etc. Essa
reversão irônica da linguagem (a não transitividade entre linguagem e
realidade) acaba tornando o homem prisioneiro dos próprios conceitos e
palavras, não conseguindo ouvir, dentro de si, a reminiscência do Uno, do
Pleroma, da plenitude original que o uniria a Deus.
“O que não deveis esquecer jamais é que o Pleroma não tem qualidades. Somos nós que criamos essas qualidades através do intelecto. Quando lutamos pela diferenciação ou pela igualdade, ou por outras qualidades, lutamos por pensamentos que fluem para nós a partir do Pleroma, ou seja, pensamentos sobre as qualidades inexistentes do Pleroma. Enquanto perseguis essas idéias, vós vos precipitais novamente no Pleroma, chegando ao mesmo tempo à diferenciação e à igualdade. Não a vossa mente, mas o vosso ser constitui a diferenciação. Eis por que não deveríeis lutar pela diferenciação e pela discriminação como as conheceis, mas sim por VOSSO PRÓPRIO SER. Se de fato assim o fizéssemos, não teríeis necessidade de saber coisa alguma sobre o Pleroma e suas qualidades e, ainda assim, atingiríeis o vosso verdadeiro objetivo, devido à vossa natureza. No entanto, como o raciocínio aliena-vos de vossa real natureza, devo ensinar-vos o conhecimento para que possais manter vosso raciocínio sob controle.”(BASILIDES, “Sete Sermões aos Mortos” disponível em: http://www.gnosisonline.org/teologia-gnostica/sete-sermoes-aos-mortos/)
Por isso Basilides propõe um singular
estado de consciência: o silêncio, o estado de “suspensão”, o esvaziamento da
mente por meio da suspensão de toda atividade dos mecanismos de abstração da
linguagem (diz-se que os discípulos de Basilides eram obrigados, como ritual de
iniciação, a ficarem em silêncio por três anos...). Manter o “raciocínio sob
controle”, lutar “contra a diferenciação”. Com esses termos Basilides refere-se
a um estado de suspensão entre os pares opostos, o “tertium quid”, o terceiro
elemento que solde as qualidades.
A Experiência da Bicicleta: estado de "suspensão"
E o que essa longa introdução tem a ver
com ciclismo? Se fizermos um sobrevoo nas representações da cultura pop em
relação à bicicleta e ciclismo, veremos que essa prática desportiva e meio de
transporte ocupa uma posição especial na confluência entre especiais
estados de consciência e esforço físico, corpo e mente.
Um primeiro exemplo é o Kraftwerk
(grupo pop alemão considerado os padrinhos da música Techno e industrial),
cujos membros são apaixonados pelo ciclismo e que, a partir do mecanismo,
ergonomia e design da bicicleta, destilaram o “ethos” da sua proposta musical:
a união entre Homem, Máquina e Natureza. Certa vez, um dos integrantes do
grupo, Ralf Hütter, fez a seguinte afirmação após a elaboração do clássico
single “Tour de France” de 1983: “a bicicleta é mais do que um mero instrumento
de lazer, é algo mais próximo da declaração política. Não é para férias, É o
homem-máquina. Sou eu, o homem-máquina na bicicleta. Velocidade, equilíbrio,
uma certa liberdade de espírito, manter a forma, técnica e perfeição
tecnológica, na aerodinâmica”.
Para ele, a bicicleta é em si um
instrumento musical: o som ritmado da corrente, engrenagens, a respiração e batimento
cardíaco, tendo como fundo o som contínuo “shhhhhh” do contado do pneu no
asfalto. Tal como um mantra, confere uma “liberdade ao espírito” ao esvaziar a
mente, seja pela repetição de sons e movimento, seja pelo esgotamento físico.
Aqui podemos fazer uma surpreendente
conexão entre Basilides e a bicicleta: o estado de consciência de suspensão na
bicicleta é, ao mesmo tempo, simbólico e literal. Montar na bicicleta e se
deslocar velozmente como se estivesse suspenso e, ao mesmo tempo, o som ritmado
do corpo e do mecanismo anulando o trabalho mental.
Por experiência própria, é
surpreendente os “insights” ou ideias que, paradoxalmente, advém desse vazio
mental. A união dos opostos. Assim como na criação por brainstorming onde um
estado caótico de ideias desconexas produz, ao longo do tempo, uma massa
crítica que, de repente, produz um salto qualitativo: do nada, do caos, surge
repentinamente a ordem, uma ideia.
É como se o barulho da atividade mental
racional e cotidiana não nos deixasse ouvir as camadas mais profundas do nosso
interior. É necessário silenciar a mente, nem que seja por meios violentos como
no filme “O Clube da Luta”: a luta tem um aspecto de disciplina, ascese, tal
qual um mantra onde os pensamentos e a racionalidade são subjugados à
disciplina da repetição até que se convertam no oposto: o estado de suspensão
de sentido para a libertação da consciência.
Músicas como “Bicycle Race” do Queen
apontam para esse silêncio da racionalidade.
Você diz barca eu
digo picada
Você diz tubarão eu digo ei, cara Tubarão nunca foi minha cena E não gosto de “Guerra nas Estrelas” Você diz Deus dê-me uma escolha Você diz Deus eu digo Cristo Eu não acredito em Peter Pan, Frankenstein ou Super Homem Tudo o que quero fazer é Bicicleta, Bicicleta, Bicicleta Eu quero montar na minha bicicleta |
ET de Spielberg: a síntese icônica das representações da bicicleta na cultura pop |
Conceitos, escolhas, palavras são como
ruídos que impedem a liberdade do espírito ouvir a si mesmo, suas
reminiscências que o faça se conectar de volta à plenitude.
Esvaziamento da mente e liberdade de
espírito alcança o estado alterado de consciência que chega à catarse e
transcendência que altera a maneira como enxergamos a relidade, como na música
“Bicycle, Bicycle, You are my Bicycle” da banda "Be Your Own Pet":
De cada senhora
Somos rápidos, nós somos rápidos Somos rápidos, estamos explodindo Tudo porque Estamos sobre duas rodas, garota Estamos sobre duas rodas, garota Mude as cores da sua maquiagem Todos os dorminhocos vão acordar Tudo porque todos, porque todos, porque Porque, porque ... Sem engrenagens, sem freios Nada real, nem falso |
Transcender ao ponto das engrenagens e
freios da bicicleta desaparecerem. Tal liberdade conduz à suspensão: nada real
e nem falso, a busca de uma experiência que supere o dilema dos pares opostos,
da armadilha que a linguagem e o conhecimento não conseguem se libertar. Ir
além das engrenagens e freios (razão e linguagem).
A arquetípica figura em contra-luz de
um ser extraterrestre montado em uma bike BMX no pôster do filme ET de
Spielberg é uma síntese das representações pop em torno do imaginário da
bicicleta: suspenso no ar tendo a Lua como fundo. A representação icônica de
todo um imaginário gnóstico que envolve a bicicleta: suspensão como um estado
alterado de consciência que possibilite o silêncio que nos faça ouvir a voz
íntima da gnose.