Vencedor de quatro
Oscars em 1977, “Rede de Intrigas” (Network, 1976) de Sidney Lumet foi interpretado
na época apenas como um drama sobre “o primeiro homem a morrer por causa dos
baixos índices de audiência”. O filme estava à frente do seu tempo com um tom
de sátira cínica e trágica que profetizava uma nova forma de sensacionalismo
midiático bem diferente da velha “imprensa marrom”: uma espécie de
sensacionalismo ecumênico, o novo evangelho da nova ordem mundial que estava sendo instaurado – a Globalização. Para compreender totalmente o quão profético foi o
filme “Network”, somente através do conceito de “capitalismo tardio” tal como desenvolvido
pelo economista marxista belga Ernest Mandel em 1972.
- Olá, eu sou Diana Cristensen, uma racista escravizadora do
circo do Tio Sam.
- E eu sou Laura Hobbs, uma negra suja e comunista.
O insólito diálogo acima entre a
executiva da rede de TV norte-americana UBS com uma líder ativista radical de
esquerda ao se conhecerem para fechar o acordo sobre a exibição no horário
nobre do programa chamado “A Hora Mao Tsé-Tung” , é um dos cínicos e
irônicos momentos do filme “Rede de Intrigas” de Sidney Lumet. Para
conseguir audiência a executiva não hesitará em exibir vídeos gravados pelos
próprios guerrilheiros do Exército Ecumênico de Libertação assaltando bancos e
cometendo atentados.
O filme “Network” é uma
devastadora crítica à submissão da programação televisiva à luta pela elevação
dos índices de audiência a qualquer preço. Em 1976 a sátira do roteiro de Paddy
Chayefsky foi entendida como um drama por críticos e pela Academia de Hollywood
que conferiu ao filme quatro Oscars (ator, atriz, ator coadjuvante e roteiro):
a história do “primeiro homem que morreu devido aos baixos índices de audiência”.
O filme estava à frente do seu
tempo e, mesmo ainda hoje, os críticos se referem à “Network” como um filme
sobre o sensacionalismo e a falta de ética da TV. Reduzir a essa leitura é
desprezar o fato de que o filme é um documento profético dos tempos da
globalização que estavam chegando, como bem compreendeu o cult documentário “Zeitgeist” (o documentário insere um trecho do filme para ilustrar a "Nova ordem mundial"),
o advento de uma época onde os conglomerados estão acima de Estados e nações e
a unificação de ideologias, partidos etc. em um único sistema financeiro
internacional passa a ser a nova religião ecumênica no chamado “capitalismo
tardio”.
“Network” vai além da crítica
moralista da falta de escrúpulos dos executivos da mídia. Mostra que o
sensacionalismo é o resultado direto da industrialização da cultura acelerada
pelo capitalismo onde negócios, política e religião se confundem em um ecumenismo
pós-moderno.
Para entendermos o verdadeiro
significado de “Network” temos mergulhar no conceito de “capitalismo tardio”
tal qual desenvolvido pelo economista e político marxista belga Ernest Mandel
para contextualizar a questão dos conteúdos televisivos dentro de um sistema de
industrialização generalizado não só das mercadorias, mas também da cultura.
O Filme
Quando os índices de audiência
começam a cair, a rede UBS decide demitir o veterano âncora do principal
telejornal da emissora Howard Beale (ganhador do Oscar Peter Finch). Indignado,
Beale anuncia ao vivo que irá se matar diante das câmeras como forma de protesto.
Com o súbito aumento da audiência pela expectativa de suicídio, a ambiciosa e
carreirista diretora de programação Diana Christensen (vencedora do Oscar Faye
Dunway) decide criar o “The Howard Beale Show” onde Beale poderá extravasar
toda a sua raiva contra o establishment e criará bordões como “Estou louco como
o diabo, e não aguento mais isso!”.
Como um pastor evangélico
televisivo, Beale convocará todos os espectadores a gritarem nas janelas seu
bordão e enviar milhares de telegramas de protesto à Casa Branca. Ele se
transforma no “Profeta tardio mais louco que Moisés” ou “O Profeta Louco das
Ondas de TV”. Juntam-se ao seu púlpito televisivo um freak show de videntes,
cartomantes e justiceiros.
Seu amigo pessoal e diretor de
Jornalismo da UBS Max Schumacher (William Holden) teme pela saúde mental de Beale
e tenta tirá-lo desse circo. Mas o “The Howard Beale Show” torna-se a salvação
financeira da emissora. Principalmente porque por trás de tudo isso ocorre uma
milionária aquisição da rede por um gigantesco conglomerado alimentado por
petrodólares árabes. A emissora precisa ser valorizada para haver retorno
financeiro ao gigantesco investimento.
A ironia de “Network” é mostrar
como na programação da UBS passam a conviver tranquilamente a indignação
evangélica de Beale que acha que é uma canal de comunicação com o Divino e o
programa “Hora Mao Tsé-Tung” co-produzido pelo “Exército Ecumênico de
Libertação” (um pastiche de islamismo, feminismo e comunismo) e o Partido
Comunista americano. Isso na emissora pivô de uma milionária engenharia
financeira global.
“Network” e o Capitalismo Tardio
Talvez o ponto alto do filme
seja a sequência em que o dono da CCA, Arthur Jensen, (gigantesco conglomerado que está fazendo
secretas transações com os árabes) faz um messiânico monólogo para Beale
compreender a nova religião global que ele deverá ser o seu maior profeta:
Arthur Jensen - Você é um homem velho... que pensa em termos de nações e pessoas. Não existem nações. Não existem pessoas. Não existem russos. Não existem árabes. (...) Só há um sistema holístico de sistemas! Um vasto e imanente, interligado, interagente... multivariante, multinacional domínio de dólares!Dólares petrolíferos, eletrodólares, multidólares. É o sistema internacional da moeda corrente... que determina a totalidade de vida neste planeta. Não há América. Não há democracia. Só há IBM e ITT... e AT&T... e Du Pont, Dow, Union Carbide... e Exxon. Essas são as nações do mundo de hoje. (...) Nós não estamos mais vivendo num mundo de nações e ideologias, Sr.Beale. O mundo... é um colegiado de corporações... inexoravelmente determinado... pelas leis imutáveis dos negócios. Um mundo perfeito... não haverá guerra ou fome... opressão ou brutalidade. Uma vasta e ecumênica "companhia-mãe" pela qual todos homens irão trabalhar para servir a um lucro comum que proverá todas as necessidades e tranqüilizará todas as ansiedades... E eu escolhi você, Sr.Beale... para pregar esse evangelho...
Beale - Por que eu?
Arthur - Porque você está na televisão, idiota!
O que é essa autêntica “Nova
Jerusalém” do novo messianismo ecumênico? Globalização? Sociedade
Pós-Industrial? O economista Ernest Mandel (1923-1995) preferia chamar de “Capitalismo
Tardio”. Ele achava um equívoco o termo “pós-industrial” porque, pelo contrário,
o capitalismo atual seria definido por uma industrialização generalizada e sem
precedentes não só para a produção de mercadorias, mas em todos os setores da
vida social: produção, lazer, cultura e trabalho (Veja MANDEL, Ernest “Capitalismo
Tardio”, série “Os Economistas”, Abril, 1982).
Por “industrialização” ele se
referia a categorias mais gerais e abstratas como mecanização,
super-especialização, padronização e fragmentação que no passado apenas se
referiam à produção de bens, mas agora se estendem à sociedade como um todo.
Essa industrialização
generalizada (que leva a hipertrofia de setores terciários como finanças,
comércio, publicidade, mídia, etc.) seria o resultado de uma crise do Capital
valorizar-se, isto é, a dificuldade em reverter a mais-valia acumulada no setor
produtivo em mais produção, principalmente pelo esgotamento dos recursos
naturais e limitação física dos mercados.
Para resolver essa contradição o
capital necessita expandir a lógica da industrialização para setores onde ainda
se produzia mercadorias de forma autoral ou artesanal para torná-los
industriais para promover a aceleração do consumo.
O evangelismo raivoso de Beale e
a “Hora Mao Tsé-Tung” já não podem mais ser comparados ao velho sensacionalismo
da “imprensa marrom” de jornalistas e empresários sem escrúpulos. Como mostra
magistralmente o filme “Network” são resultados de uma linha de montagem
cientificamente elaborada com prazo de validade marcado e de depreciação
acelerada para serem substituídos por outras novidades.
O novo sensacionalismo do
capitalismo tardio é um liquidificador de ideologias, nações, etnias e
religiões sob a égide do ecumenismo messiânico do novo evangelho global que
Howard Beale passa a ser o seu visionário. Partindo da lógica do capitalismo
tardio proposto por Mandel, é a ponta do iceberg da hipertrofia dos setores
terciários da economia (serviços, crédito, mídia, sistema financeiro etc.) pela
necessidade da busca do capital valorizar-se em outros setores para além da
produção.
Esse é o novo evangelho, o “zeitgeist”
dos conglomerados que são capazes de diversificar seus investimentos de fábrica
de parafusos a evangelistas televisivos possessos, passando por educação e
universidades que se transformam igualmente em linhas de montagem. Tudo sob o
messianismo do ecumenismo das religiões, raças, nações, sexos e ideologias.
Como fala aquele slogan de telefonia celular: “o mundo sem fronteiras”.
Ficha Técnica
- Título: Rede de Intrigas (Network)
- Diretor: Sidney Lumet
- Roteiro: Paddy Chayefsky
- Elenco: Faye Dunaway, William Holden, Peter Finch, Robert Duvall
- Produção: Metro Goldwyn-Mayer (MGM), United Artists
- Distribuição: Warner Home Video
- Ano: 1976
- País: EUA