sábado, junho 07, 2014

A Copa das não-notícias

A grande mídia esperou até o último instante, aguardando talvez alguma “bala de prata” que prejudicasse, suspendesse ou, no mínimo, colocasse em xeque a realização da Copa do Mundo no Brasil. Um evento que se tornou uma verdadeira dor de cabeça para uma mídia que assumiu explicitamente a oposição política. Mas a Copa vai começar e agora nada pode passar impune: uma nova etapa da guerrilha semiológica iniciada no ano passado se inicia. A pauta negativa, “recomendação” interna da TV Globo para todos os jornalistas na cobertura da Copa, revela uma novidade no paiol das bombas semióticas: a não-notícia. Produto das revistas de celebridades e das coberturas esportivas extensivas como Olimpíadas e Copa do Mundo, elas agora estão sendo turbinadas politicamente por meio de duas estratégias semióticas: fazer o espectador confundir causa e efeito dos acontecimentos e a armadilha da generalização nas indefectíveis enquetes.

Desde as grandes manifestações de junho do ano passado, a grande mídia (que de início execrou como vandalismo e infantilismo político para, logo depois, procurar inseri-las no plot narrativo da oposição na proximidade de ano eleitoral – mensalão, PEC 37 etc.) mobilizando uma pesada artilharia semiótica de construção de textos e imagens que sintetizem em um frame, fotograma, parágrafo, legenda de foto etc. um conjunto de percepções e fragmentos ideológicos. Chamamos esse arsenal de recursos retóricos e semiológicos de “bombas semióticas”.

Desde junho do ano passado uma variedade
de bombas semióticas assolaram
a opinião pública
Ao longo desse período detectamos diversos tipos de bombas: dessimbolizações, infotenimento, a black bloc good bad girl, fotos-choques, cavalos de Tróia, guerrilha de memes, exploração fetichista de animais e mulheres, tomates e inadimplência. Isso sem falar de acidentes com jornalistas no momento em que montavam bombas como, por exemplo, o caso da bomba semiótica do Enem ou a “barrigada” darepórter da rádio CBN que via no campus da USP mensagens cifradas análogas às do tráfico de drogas nos morros do Rio de Janeiro. Essa variedade de bombas semióticas teve um objetivo em comum: manter a opinião pública em estado de constante tensão em um País supostamente à beira do abismo econômico e em situação pré-insurrecional.

Mas agora quando a agenda nacional passa a ser dominada pela Copa do Mundo, entra em cena uma nova bomba semiótica: a da não-notícia. A grande mídia caiu em si que não só vai ter Copa, mas como também manifestações de protestos podem ficar isoladas ou, no mínimo, deslocadas na opinião pública em relação ao evento esportivo internacional.

quinta-feira, junho 05, 2014

Max Headroom antevia o fim do jornalista e as bombas semióticas

Voz sampleada, gaguejante e distorcida de um personagem dotado de senso de humor cínico e irônico. Era Max Headroom, personagem digital resultante de uma secreta experiência da gigantesca Rede 23 de TV para substituir o jornalista estrela da emissora numa conspiração para encobrir uma bomba subliminar que matava espectadores. “Max Headroom” (Max Headroom, 1985), criado por Peter Wagg e exibido pela emissora inglesa Channel 4, além de ser um ícone do imaginário ciberpunk da então nascente tecnologia digital, foi um filme profético: já estava lá a futura precarização do trabalho do jornalista até o seu desaparecimento através da tecnologia telemática (repórteres guiados por telemetria e dependentes de controladores) e as bombas semióticas criadas na atual guerrilha semiológica das mídias, simbolicamente representados no filme pelos mortais “blipverts”.

As representações dos jornalistas no cinema sempre ficaram em um movimento pendular entre de um lado heróis investigativos e idealistas vivendo no underground da sociedade e, do outro, ambiciosos e potencialmente corruptos. Filmes como A Montanha dos Sete Abutres (Ace in the Hole, 1951) e O Quarto Poder (Mad City, 1997) mostram jornalistas inescrupulosos, ambiciosos e manipuladores, enquanto Todos Os Homens do Presidente (All the President’s Men, 1976) mostram Bernstein e Woodward como a quintessência do jornalismo investigativo capaz de derrubar o presidente da maior potência do mundo.

Já o filme piloto de uma série chamado Max Headroom, criado por Peter Wagg para o Channel 4 inglês em 1985, rompe com essa dualidade das representações cinematográficas do jornalismo ao vislumbrar um futuro (na verdade, a atualidade) onde as tecnologias telemáticas modificam radicalmente o papel do jornalista: do profissional que buscava a notícia, que pesquisava os dados brutos e buscava conexões, ao mero veículo de uma suposta transparência da imagem tecnológica onde o repórter vira o protagonista da própria notícia. Tudo isso para encobrir a própria precarização da profissão.

terça-feira, junho 03, 2014

Por que as aves atacam em "Os Pássaros"?


Hitchcock não levava a sério as ideias freudianas e irritava-se com as interpretações psicanalíticas de seus filmes, principalmente do filme “Os Pássaros” (The Birds, 1963): “Idiotas estúpidos! Sempre estive consciente do que fiz em todas as minhas obras”, esbravejava. Mas as imagens dos pássaros atacando seres humanos em um pequeno vilarejo litorâneo tornaram-se atemporais, como se Hitchcock, mais do que roteirizar, dirigir, montar e editar, inconscientemente tivesse buscado seus insights tanto em fatos científicos ocorridos com aves em 1961 na Califórnia, quanto nos arquétipos do inconsciente coletivo da humanidade. Por isso, de todos os filmes do diretor (Hitchcock considerava o filme como o “menos Hitchcock” da sua carreira), “Os Pássaros” foi o filme que mais rendeu interpretações, sejam científicas, psicanalíticas, filosóficas e gnósticas: por que os pássaros de Hitchcock atacaram? É o que vamos tentar responder.

A crítica especializada em geral considera o filme Os Pássaros o último grande filme de Hitchcock, rodado em 1963 quando a reputação do diretor estava no auge. O filme anterior Psicose (1960) tinha sido um sucesso e a Universal Pictures deu para o diretor três milhões de dólares para o seu próximo projeto. Hitchcock já havia se tornado a marca exclusiva do cinema de suspense com narrativas sobre espionagem, psicopatia, frieza, romance e muito humor negro.

Porém, Os Pássaros foi o filme que o redefiniu ou, como o próprio diretor considerou, era o filme “menos Hitchcock” da sua cinematografia até aquele momento: ele pela primeira vez se valeu da tecnologia como os efeitos sonoros construídos por um instrumento eletrônico chamado Mixtur-trautonium (o filme não possui trilha musical a não ser diegéticas – crianças cantando na escola, som do rádio do carro ou quando a protagonista toca ao piano); efeitos especiais indicados ao Oscar para criar os temíveis pássaros assassinos; e a utilização de muitas tomadas externas, técnica que ele nunca preferiu – costumava rodar os filmes completamente em estúdios.

sábado, maio 31, 2014

A bomba semiótica Forte Apache

Depois de 14 anos das comemorações dos 500 anos do descobrimento do Brasil onde os índios foram recebidos com armas e bombas pela polícia e a grande mídia relatou tudo de forma burocrática e irônica, repentinamente eles foram redescobertos e levados a sério. “Índios cercam o Palácio do Planalto” é o tom geral das manchetes com muitas fotos com flechas e índios em poses ameaçadores em contraste ao futurismo de Brasília. É a bomba semiótica Forte Apache. Esse conceito não tem nada de ironia ou deboche: o núcleo dessa bomba linguística são fotos onde poses e situações forçam a associação com o imaginário hollywoodiano do western. Seja apanhando, sejam fotografados, os indígenas brasileiros continuam estranhos em sua própria terra: às vésperas do campo de batalhas simbólico decisivo da Copa do Mundo, tornam-se, agora, suportes passivos dos signos construídos por espertos fotógrafos. São as “fotos-choques”, estado semiótico intermediário entre o fato real e o fato alterado.

O presidente eleito pelo colégio eleitoral em 1985, Tancredo Neves estava entre a vida e a morte no Hospital das Clínicas em São Paulo. E eu iniciava minha carreira no jornalismo como um "foca" na reportagem do jornal A Tribuna de Santos. Ficava impressionado como, apesar do caos que era uma redação, o jornal conseguia ser finalizado e chegava diariamente nas bancas. Aos poucos ia pegando os macetes: as notícias e os textos jornalísticos eram praticamente padronizados, bastando apenas preencher as variáveis: o que, quem, quando, como, onde e por que.

Enquanto Tancredo agonizava em São Paulo e o País torcia pela sua recuperação, descobri que a lógica de linha de produção das redações era fria e pragmática: nas gavetas da mesa do diretor da redação já estavam prontos obituários, biografia, editoriais, retrancas (palavra ou pequena frase sobre manchetes para apresentar o tema da matéria), fotos e páginas inteiras já diagramadas sobre vida e morte de Tancredo Neves.

Logo entendi todo o processo semiótico de produção noticiosa que permitia que aquela loucura de vai e vem na redação desse certo: editores e diretores produziam uma forma, uma estrutura de texto onde a reportagem apenas preenchia as lacunas com as variáveis da chamada “pirâmide invertida” da matéria jornalística. Tempo era racionalizado e as matérias prontas em minutos. Um processo tão técnico e pragmático que os repórteres não percebiam o viés, o enfoque ideológico que sempre estava nessa estrutura pré-fabricada que descia do "aquário" das reuniões de pauta para nós, os "focas".

sexta-feira, maio 30, 2014

Em Observação: "Irreversível" (2002) - o tempo nos devora

Quem não conhece a célebre pintura de Goya de Saturno (Cronos na mitologia grega) devorando seu próprio filho? Como filhos de Cronos, também somos devorados pelo tempo, tornando cada tomada de decisão nossa em causas de efeitos que serão irreversíveis. Esse é o tema do filme francês “Irreversível” de Gaspar Noé. “O tempo destrói tudo” diz a frase de abertura, em um filme que lembra “Amnésia” de Nolan: a história é contada no sentido inverso onde acompanhamos a desconstrução de personagens que de selvagens e brutais vão se tornando sensíveis e apaixonados. Noé propõe uma reflexão incômoda e brutal sobre o tempo, através de duas cenas que já são consideradas antológicas na história do cinema: um estupro e a briga em uma boate gay onde um rosto é desfigurado por um extintor de incêndio. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.

Título: Irreversível (2002)

Diretor: Gaspar Noé

Plot: Contado de trás para frente, o filme narra a busca por vingança de Marcus e Pierre, depois que Alex (Mônica Belucci) namorada de Marcus e ex de Pierre, é estuprada violentamente.

Por que está “Em Observação”? – O blog se interessa por filmes que exploram a questão do tempo na narrativa. Irreversível, ao lado de Amnésia de Christopher Nolan, é um desses filmes: a história é contada ao contrário e cada cena é rodada totalmente sem cortes, até a câmera dar uma pirueta e jogar o espectador para outra cena, a parte anterior da história. E por que? O sentido já é dado logo no início do filme com a frase “o tempo destrói tudo”.  Muitos críticos definem o filme como uma fábula sobre o destino. A cada cena que passa o filme parece indagar porque as coisas não tomaram outro rumo, porque somos vítimas do destino.

O plot é extremamente simples, mas a grande atração é a edição e cenas violentas como a do estupro e o estrago que o extintor de incêndio faz no rosto de um personagem na sequência da briga em uma boate gay. Tudo no filme parece feito para criar no espectador estranhamento, repulsa e incômodo. Na primeira exibição no Festival de Cannes 2002 Irreversível foi definido como “repulsivo”, “doentio” e “gratuito”. O enquadramento da câmera não centraliza ninguém na tela, gira de forma desfocada e surreal para marcar o recuo no tempo da narrativa e a narrativa parece desconstruir os personagens: à medida que o tempo passa (ou volta) os protagonistas Pierre e Marcus vão se tornando totalmente diferente daqueles seres brutais e selvagens do início do filme. De homens sedentos por vingança, vão se transformando em seres apaixonados e bem menos agressivos, incapazes de fazer mal a uma mosca.

Por isso, a grande questão que o Gaspar Noé quer discutir: a irreversibilidade do tempo, o porquê das nossas tomadas de decisões e como elas, a cada instante, influenciam de forma irreversível, o futuro. De certa forma, o diretor francês parece querer desconstruir um dos grandes mitos do cinema, principalmente norte-americano: o mito da segunda chance, a possibilidade da vida nos oferecer sempre uma segunda oportunidade para nos redimir de erros cometidos no passado. Noé parece ter em mente o mito grego de Cronos devorando seus próprios filhos. Como filhos do tempo que somos, também somos devorados por ele, vencidos pela sua irreversibilidade. Tudo finda e é consumido, tornando nossas decisões fatalidades.

Por isso essa discussão do tempo é essencialmente gnóstica, já que para os gregos Cronos refere-se a apenas uma faceta da existência: o tempo cronológico e linear das coisas terrenas. É imperfeito e produz a entropia e caos. Ainda existiria Kairos (o momento indeterminado no tempo onde algo de novo acontece) e Aeon (o tempo divino onde as horas não passam cronologicamente, o tempo de Deus). Daí o descompasso que sempre vivemos entre Cronos e o nosso psiquismo,o efêmero versus o eterno.

Daí a linguagem fílmica intensiva do diretor nas cenas: sem cortes, elas são pensadas para serem impactantes e duradouras em nosso psiquismo, apesar da transitoriedade que a linguagem fílmica impõe – a história tem que ser contada, o tempo deve passar.

O que esperar do filme? – A crítica afirma que a violência e o desconforto (produzido pelo enquadramento e ausência da decupagem nas cenas) fazem muitos espectadores abandonarem o filme na metade. Assim o crítico de cinema Tony Pugliesi sintetiza o que o leitor do Cinegnose pode esperar do filme Irreversível: “Incômodo. Se tivéssemos que escolher apenas uma palavra para descrever Irreversível, com certeza, a palavra escolhida seria "incômodo". Ou então poderíamos utilizar palavras similares como intrigante e chocante. Entretanto, incômodo, como você irá perceber ao longo desta análise, nada tem a ver com a possibilidade que o filme de Gaspar Noe seja uma película ruim, muito pelo contrário. Chocante porque a produção possui duas tomadas (seqüências) fantásticas que já entram para a história do cinema devido a forma de como foram gravadas e, também, claro, pela coragem de Noé em gravar essas seqüências. Acredite, elas são muito difíceis de serem até mesmo assistidas. Intrigante, óbvio, pelo modo como a película fora filmada; edição fantástica, brilhante. E ela que faz o filme.”

quarta-feira, maio 28, 2014

A bomba semiótica fashion da Ellus

Modelos vestindo uma camiseta onde se lia “Abaixo Este Brasil Atrasado”. Dessa forma terminava o desfile da Ellus no último SPFW após um desfile repleto de signos militares estilizados. Mais tarde, a irônica foto da mesma camiseta na vitrine de uma loja da grife tendo ao lado um manequim carregando uma blusa com o icônico Mickey Mouse estampado. Essa é a mais nova bomba semiótica, dessa vez fashion. E por que? Porque o niilismo político é fashion, assim como os radicais chics com o seu visual “heroin hero”. Desde que o dandismo morreu com Oscar Wilde, a moda sente a necessidade de expiar o fantasma da sua suposta futilidade e superficialidade. O niilismo político da camiseta que protesta contra o “Brasil Atrasado” é a reedição da estratégia de tornar a moda supostamente sintonizada com a realidade do seu tempo, assim como Viviene Westwood fez com o Punk. E para isso, a Ellus foi buscar na atmosfera turva e tensa da atualidade o mote para tentar mostrar que Moda possui alguma relevância política.

Em uma vitrine de uma loja da grife Ellus em um shopping na Zona Sul do Rio de Janeiro vemos vários manequins com modelos da marca. Chama a atenção uma camiseta preta com os dizeres “Abaixo Este Brasil Atrasado”. Ironicamente, ao lado vemos outro manequim com uma blusa em que vemos o icônico personagem do Mickey Mouse estampado.

A engajada camiseta teve sua estreia no desfile da coleção Primavera-Verão 2014-15 no São Paulo Fashion Week (SPFW) em abril desse ano, com toda pompa e circunstância, com direito até a “carta-manifesto”. Ciceroneado pelo galã global Cauã Reymond, ele entra na passarela ao final com os fashionistas Adriana Bozon, Lea T., Laís Ribeiro e Rodolfo Murilo, todos vestindo a engajada camiseta da Ellus, para finalizar com uma selfie diante dos fotógrafos.

A “carta-manifesto” (na verdade uma colcha de retalhos com os principais mantras repercutidos por redes sociais e nas colunas econômicas da grande mídia) fala em “Brasil=ineficiência, improdutividade”, “custo Brasil”, “políticos e governos antiquados”, “protecionismo” e a ameaça de ficarmos “isolados nas geleiras do Polo Sul”.

segunda-feira, maio 26, 2014

Semiótica do amor revela o desencontro marcado

Dia dos Namorados se aproxima como mais uma data dentro da agenda comercial que envolve Páscoa, Dia das Mães, Black Friday etc. Os críticos mais ingênuos acusam de materialismo a imposição comercial da necessidade em demonstrar amor, afeto ou carinho com presentes caros. Mas a crítica perde de vista algo de mais profundo e perverso: se para a sociedade de consumo o amor é uma mercadoria, ela deve ser inserida na lógica básica mercantil: a escassez do produto conduz a sua valorização no mercado. Por isso, na atualidade estamos presenciando uma intensa estratégia semiótica de produção de, por assim dizer, desencontros marcados: frustrações afetivas, insatisfações sexuais e carências amorosas. Tudo para criar a percepção de que o amor é um bem precioso porque está em falta, agregando cada vez mais valor a jantares românticos, caixas de bom bons e joias. Dessa forma, o amor é mais um bem que se insere na lógica mais geral de criação de escassez para a criação de commodities como a água, meio ambiente, segurança e felicidade.

Dia dos namorados se aproxima, dessa vez ofuscada pela abertura da Copa do Mundo de futebol no Brasil. Celebrado como o dia dos casais apaixonados, surgiu até movimento publicitário de uma marca de cerveja para que o evento seja antecipado um dia antes e os namorados possam acompanhar a abertura da Copa.

Realmente, toda a publicidade e a sociedade de consumo sempre necessitaram do fluxo incessante de amor, paixão, afeto e desejos como matéria prima para a promoção de campanhas de produtos e serviços. Mas ao longo dos tempos o Dia dos Namorados na mídia não se contentou apenas em usar o amor como isca subliminar para vender carros, perfumes, chocolates, roupas e cosméticos. Mais do que isso, hoje o amor é oferecido como mercadoria: como algo que você busca, encontra, experimenta e conquista.

quarta-feira, maio 21, 2014

O que matou Theodor W. Adorno?


O sociólogo, musicólogo e pensador Theodor W. Adorno sempre foi um estrangeiro no seu próprio país e nos EUA para onde fugiu com a ascensão do nazifascismo na Alemanha. Expoente máximo da chamada Escola de Frankfurt, sua crítica da sociedade e da indústria cultural inspirou estudantes que em 1969 se levantavam em manifestações radicais de esquerda e que se inconformaram com a recusa de Adorno em ser uma espécie de guru do movimento. Quarenta e cinco anos depois, pesquisadores como Bill Niven da Notthingan Forest University afirmam que os conflitos pessoais de Adorno com líderes estudantis e a pecha em torno dele de “apocalíptico e pessimista” podem tê-lo matado. Ao contrário desse estereótipo, sua morte prematura interrompeu o seu projeto mais otimista e libertário onde através de uma via “negativa” (e gnóstica) tentava encontrar a “metafísica em queda” que o levaria a fazer uma arqueologia das oportunidades perdidas: a busca das experiências singulares impossíveis de serem dominadas pelos conceitos da Filosofia, ideologias e poderes.

domingo, maio 18, 2014

Por que roqueiros dos anos 80 se tornam neoconservadores?

Fazendo caras feias e rostos vincados, roqueiros dos anos 80 se zangam e protestam dizendo que 30 anos depois, nada mudou no País. Artistas e bandas de rock que na década de 1980, inspirados no punk e pós-punk, se opunham ao regime militar e reivindicavam pelas Diretas Já e democracia. Hoje, queixam-se para uma mídia ávida por declarações conservadoras não só contra o Governo e o PT, mas  contra a própria instituição da Política e dos políticos. Por que só depois de 30 anos descobriram que o País “só patina ou piora”? Oportunismo em meio de carreiras em declínio? Forma de ganhar visibilidade midiática adotando o neoconservadorismo? Talvez a explicação não seja tão simples: por trás do niilismo e pessimismo fashion desses roqueiros talvez exista a repetição do trauma de uma geração que cresceu sob o impacto da cultura hiperinflacionária dos anos 80. Presos a essa cena de décadas atrás, de contemporâneos tornaram-se extemporâneos.

Em foto promocional do 18° discos dos Titãs, o grupo posa com caras de maus e vestidos de preto sobre lambretas. “São as caras feias de um Brasil que, vira e mexe não muda”, dá legenda o jornal O Globo. E na matéria o guitarrista (e colunista do próprio jornal) Tony Bellotto, 53, fuzila: “é uma merda pensar como o Brasil há 30 anos ou patina, ou piora”.

É recorrente a leva de roqueiros dos anos 80 como Lobão, Roger, Dinho Ouro Preto, Léo Jaime entre outros que não só desfilam opiniões catastrofistas e de descrédito não só ao Governo Federal e ao PT, mas em relação à própria instituição da Política em redes sociais e grande mídia.

A ânsia em se portarem como críticos politicamente incorretos algumas vezes beira ao protofascismo como no episódio da “pegadinha” do colunista da Folha Antônio Prata que, simulando ter aderido ao neoconservadorismo, escreveu sobre uma suposta conspiração de “gays, vândalos, negros, índios e maconheiros” no Brasil do PT. O roqueiro Roger do “Ultraje a Rigor” caiu na “pegadinha” e no twitter congratulou o articulista por “ter culhões”. Roger não entendeu a ironia, na ansiedade de fazer parte da onda neoconservadora na grande mídia.

sábado, maio 17, 2014

Um marco gnóstico no filme "Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças"

Um marco entre os filmes gnósticos. Se Matrix se tornou um clássico no Gnosticismo pop onde o homem é prisioneiro em um cosmos simulado por máquinas, no filme “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” (2004) temos uma mudança nas representações do Gnosticismo no cinema: agora o homem é prisioneiro em um mundo interno, a própria mente, através do sono do esquecimento induzido por uma tecnociência demiúrgica. “Brilho Eterno” é profético em relação ao novo século que então se iniciava ao fazer uma crítica às chamadas tecnologias do espírito (autoajuda, neurociências etc.) e a sua popularização através da cultura Prozac que promete deletar nossas inquietações (sonhos e memórias) por meios de recursos fármacos e neurocientíficos para, em troca, nos proporcionar a paz dos cemitérios.

Ao lado do filme Vanilla Sky (2001), o filme de Michel Gondry  Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (Eternal Sunshine of the Spotless Mind, 2004) é um marco na história dos filmes gnósticos. Esses dois filmes representaram o fim do que chamamos modelo Matrix de Gnosticismo pop: o mundo ilusório no qual o protagonista se encontra aprisionado é mais uma simulação tecnológica perfeita produto de um Demiurgo computacional como em Matrix (1999), aliens como Cidade das Sombras (Dark City, 1998) ou um diretor de TV como em Show de Truman (1999); a partir de Vanilla Sky e Brilho Eterno vemos o protagonista preso em um mundo interior devido a alguma desordem neurológica ou psíquica, conflitos interiores, alucinações ou sonhos.

Se no modelo Matrix de Gnosticismo pop já era colocado a necessidade da gnose através de uma busca interior ou reforma íntima para conseguir superar a ilusão aprisionadora, agora a partir de filmes como Brilho Eterno, esse mergulho interior passa a ser mais profundo, demonstrando que a prisão começa a partir dos próprias bloqueios psíquicos como traumas, ressentimentos e angústias.

sexta-feira, maio 16, 2014

Linchamento no Guarujá revela sintoma do retrofascismo

Para além do horror diante da barbárie do linchamento de uma dona de casa por vizinhos e até crianças em Guarujá/SP, o mais perturbador nesse episódio é a ambígua declaração do governador do Estado de São Paulo Geraldo Alckmin, sugerindo que o ato bárbaro era injustificável porque, afinal, “tudo não passou de boato”- então, se os boatos fossem verdadeiros o linchamento seria justificado? Essa surpreendente declaração para um governador confirmaria as sinistras previsões de Arthur Kroker e Michael Weinstein nos anos 1990: uma integração entre Estado, pan-capitalismo e violência sacrificial. O impulso primitivo amplificado pelas redes digitais seria a fase “interativa” dos rituais de sacrifício cotidianamente praticados pelos linchamentos midiáticos de reputações ou dos refugos sociais (desempregados, velhos e pobres) oferecidos como objeto sacrificial e bodes expiatórios em programas diários de TV. É o retrofascismo à espera de uma tradução política para, mais uma vez na História, ocupar o Estado.

“O homem preferirá ainda querer o nada ao nada querer” (Nietzsche)

O trágico episódio do linchamento da dona de casa Fabiane de Jesus por vizinhos, amigos e até crianças na cidade do Guarujá/SP provocado por um boato amplificado pela rede social Facebook poderia ter passado despercebido como mais um caso num cotidiano de chacinas e violências em bairros pobres e periféricos se não fosse por duas características e um sintoma importante:

(a) Uma explosão primitiva de violência motivada por um boato através de uma rede social produto da alta tecnologia de comunicação digital desse início de século. Tecnologia digital e primitivismo coexistindo como fossem dois lados de uma mesma moeda;

(b) O boato a partir de um suposto retrato falado publicado em página do Facebook dava conta de que Fabiane seria sequestradora de crianças para rituais de magia negra. Se na sua origem primitiva o linchamento é um impulso sacrificial para esconjurar o mal em uma comunidade, o episódio tem um quê de estranha ironia: um linchamento (ritual de sacrifício) para punir uma pessoa que supostamente sequestrava crianças para rituais que também visam esconjurar o mal ou/e compactuar como ele;

segunda-feira, maio 12, 2014

O pós-humano no filme "The Machine"

Do mito do Golem do misticismo judaico, passando pelo robô Maria do clássico “Metrópolis” de 1927 até chegar ao computador HAL 9000 de “2001” de Kubrick, a Inteligência Artificial (IA) é vista como ameaça ou realização máxima do homem, mas nunca sua superação por supostamente faltar nela a essência da humanidade: a consciência ou alma. Mas o filme inglês “The Machine” (2013) insere a discussão da IA em outro patamar, desenvolvido no cinema desde os personagens dos replicantes de “Blade Runner” (1982) de Ridley Scott: o do “pós-humano”. “The Machine” acrescenta a essa novo enfoque da IA um componente místico que estaria motivando a agenda tecnocientífica atual: o tecnognosticismo - a ambição de nos livrarmos da carne e do orgânico através da transcendência espiritual possibilitada pela tecnologia. Encontrar a imortalidade da alma através de upload final para um banco de dados, “nuvem” de bits ou rede eletrônico-neuronal.

A Inteligência Artificial (IA) é um dos grandes arquétipos do imaginário contemporâneo, capaz de alimentar tanto as utopias mais luminosas quanto os maiores pesadelos distópicos da literatura e do cinema.

Herdeiro direto das mitologias do Golem (ser artificial associado ao misticismo judaico da Cabala, trazido à vida através de processos mágicos), dos homunculus da Alquimia e de Frankenstein (a criação da escritora Mary Shelley que materializou a advertência do pintor Goya de que o sono da Razão produz monstros), a evolução da ambição tecnocientífica pela Inteligência Artificial pode ser dividida em três etapas:

Primeira, representada pelo filme Metrópolis de Fritz Lang: através de uma estética cartesiana emblemática da vanguarda artística da primeira metade do século XX apresenta a personagem robótica Maria, comandada pelos malignos propósitos de uma elite que escraviza trabalhadores – mas também o símbolo da necessidade do homem comandar a máquina com o coração para mediar os conflitos entre a classe dominante e dominada. Em si a máquina é benéfica, bastando ao homem buscar não a Razão, mas a sua humanidade para controlá-la de forma sábia.

quarta-feira, maio 07, 2014

O logo da novela e a bomba semiótica da pararrealidade

O logo da telenovela “Geração Brasil” da TV Globo traria no seu design uma subliminar sugestão dos números dos candidatos de oposição ao Governo? Delirante teoria conspiratória? Prepotência dos jornalistas? Designers e profissionais criativos veem exagero em tal acusação, já que toda marca produziria espontaneamente associações visuais, já que para a Semiótica todo signo produziria uma imagem mental. Posições ideológicas à esquerda, calejadas pela desconfiança em relação à grande mídia, falam em manipulação subliminar. Mas parece que todas as posições acabam se tornando vítimas da espiral das interpretações, a doença infantil da Semiótica. A cura? Desconstruir o logo da telenovela através de técnicas as mais objetivas possíveis como a de recorrência sincrônicas e diacrônicas, comutação e Gestalt. E no final descobrirmos que, na verdade, o suposto poder subliminar do logo não provém dele mesmo. Sua força é alimentada por uma pararrealidade criada pela TV ao fundir diariamente ficção com não-ficção.

Surge a polêmica entre jornalistas, simpatizantes da esquerda e profissionais de design e criação de que logomarca da novela das 19h Geração Brasil (ou “G3R4Ç4O BR4S1L”) conteria “coincidentemente” em sua linguagem “internetês” (ou Leet, para ser mais preciso) os números dos candidatos de oposição: o “40” (PSB de Eduardo Campos – PE) e “45” (PSDB de Aécio Neves – MG).

O problema de toda análise semiótica ou gestalt é que, se tomarmos o objeto de forma isolada, todas as análises podem se cancelarem como meras interpretações subjetivas: se todo signo cria uma imagem mental no interpretante, logo o que estamos vendo poderia ser apenas o signo de outro signo da realidade – e o que é “realidade” para a Semiótica é uma questão metafísica, já que seu interesse é puramente pragmático: entender as significações obtidas de acordo com a posição relativa do interpretante.

terça-feira, maio 06, 2014

Palestra de executivo revela a secreta religião americana


O que há por trás da performance de uma palestra de um executivo norte-americano? Broadway, Hollywood, teatro vaudeville e todo um mix cultural único de um país que conseguiu fundir “business”, “show” e “entertainment”. Assistir ao discurso desses protagonistas corporativos é testemunhar o ineditismo de um país que conseguiu fundir a fé tecnológica, o espírito pioneiro dos puritanos e o triunfo do liberalismo comercial. O pesquisador canadense Arthur Kroker chamava isso de “capitalismo pentecostal”: a calculada canastrice da palestra de um executivo inspirada no pantheon dos simulacros da cultura pop , a crença no pragmatismo tecnológico como moralmente bom e a fé em um destino manifesto de levar a religião americana para todo o mundo.

domingo, maio 04, 2014

Em Observação: "La Hora Fría" (2006) - cineteratologia dos zumbis?

Oito pessoas, isoladas no subterrâneo em um mundo pós-guerra química, vivem sob a ameaça de zumbis mutantes e fantasmas. Mais do mesmo para os fãs de cinema pós-apocalíptico e de zumbis? Isso é que o “Cinegnose” vai conferir: um filme de uma época em que o cinema espanhol começa repentinamente a interessar-se sobre o tema zumbis, ao lado de produções como “REC” e “[REC] 2”, com interessantes variações sobre o tema. “La Hora Fría” é uma oportunidade para verificar algumas hipóteses da chamada Cineteratologia – o estudo da morfologia e natureza dos monstros no cinema como metáfora do espírito de uma determinada época. Mais um filme indicado pelo nosso leitor Felipe Resende.

sábado, maio 03, 2014

Em Observação: "The Machine" (2013) - a ciência entre a humanidade e as sombras

Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende. A crítica destaca que a produção britânica “The Machine” combina temas do filme premiado pelo Oscar “Ela” e o clássico “Blade Runner” de Ridley Scott (1982). Em meio a uma nova Guerra Fria, dessa vez entre o Ocidente e a China, programadores de computador fazem pesquisas em Inteligência Artificial e neurociência até desenvolverem um androide com alma e consciência em um laboratório militar subterrâneo. O filme apresenta a ambiguidade atual das tecnociências que enquanto mantém esperanças altruístas nos benefícios humanos das descobertas científicas, convivem com a sombra de aplicações muito mais sombrias pelos poderes que as mantêm.

quinta-feira, maio 01, 2014

Globo reage à crise de audiência e credibilidade com desespero metalinguístico

Sai a estética futurista de Hans Donner, entra os passos do funk e um visual menos high tech onde até a icônica zebrinha dos anos 1970 que dava os resultados do futebol parece renascer com nova roupagem. E tudo isso com muita auto-referência e metalinguagem. Essa é a repaginada do programa dominical “Fantástico” e dos telejornais da emissora que parecem sentir o golpe da perda de audiência e credibilidade. Uma simulação de reunião de pauta com telespectadores dando palpites sobre temas pré-estabelecidos no “Fantástico” é o desespero metalinguístico de criar uma percepção de transparência e credibilidade de um jornalismo que tenta se equilibrar entre o papel de oposição política assumido pela emissora e a necessidade de aparentar objetividade noticiosa. A transformação da estética Hans Donner na identidade visual da emissora parece apontar para o sintoma da sua perda de relevância e o fim de uma utopia modernista que a TV Globo representou durante da ditadura militar e não consegue mais sustentar diante do novo cenário. E a resposta da emissora é autofágica.

Os tempos estão mudando e a TV Globo já não é mais a mesma. As audiências vêm despencando há muito tempo numa irresistível curva descendente para uma emissora que já chegou a 100% de audiência com a novela Selva de Pedra em 1972 e o Jornal Nacional dando 80% nos anos 1980. Bem diferentes são os tempos atuais: o Jornal Nacional desce aos 17%, a estreia do Novo Fantástico no último domingo registrou média de 16,5%, Silvio Santos supera os números de audiência do reality show musical SuperStar e assim por diante.

Paradoxalmente, o faturamento da emissora é mantido em patamares elevados. Para os analistas, graças ao impacto no mercado publicitário do famoso “incentivo”chamado BV (Bonificação por Volume) – comissões repassadas da TV Globo para as agências de publicidade que variam de acordo com o volume de propaganda negociado entre elas. Seria o principal mecanismo que perpetuaria o monopólio midiático da emissora.

segunda-feira, abril 28, 2014

A Serpente do Paraíso rouba a cena no filme "Noé"

No livro bíblico do Gênesis, a história da arca de Noé tem apenas três páginas. Conhecendo o senso hollywoodiano de espetáculo e a inclinação de Darren Aronofsky em explorar complexas simbologias místicas e esotéricas, era de se esperar que o filme “Noé” (Noah, 2014) não fosse um thriller bíblico nos moldes de “Os Dez Mandamentos”. Pelo contrário, Aronofsky subverte o famoso personagem bíblico através de uma releitura gnóstica e cabalística. O diretor não só abandonou a Bíblia como transformou a Serpente do Jardim do Éden no personagem principal, trazendo para as telas a antiga versão gnóstica do mito do Paraíso, sob uma embalagem atual política e ecologicamente correta.

Quem conhece a obra do cineasta Darren Aronofsky, sabe que se pode esperar de seus filmes profundos simbolismos místicos e esotéricos. Foi assim em filmes como Pi (um thriller cabalístico onde um gênio matemático procura uma constante numérica universal), Cisne Negro (fábula gnóstica sobre a exploração da luz interior humana por um demiurgo representado pelas exigências mercadológicas de uma companhia de balé) e Fonte da Vida (uma jornada de elevação espiritual através de complexos simbolismos gnósticos e alquímicos).

  Com o filme Noé (Noah, 2014) não poderia ser diferente. Porém, desta vez Aronofsky saiu do campo dos dramas seculares traduzidos por simbolismos para entrar em uma narrativa bíblica fazendo uma releitura paradoxalmente sem referência à Bíblia: Aronofsky fez uma subversão flagrantemente gnóstica e cabalística do famoso personagem bíblico.

sábado, abril 26, 2014

Um pesadelo semiótico zumbi no filme "Pontypool"



O que acontece quando um filme sobre zumbis mistura referências a escritores como Norman Mailer e William Burroughs? Resulta em um dos mais surpreendentes e originais filmes do gênero dos últimos anos. A produção canadense “Pontypool”(2008) cruza dois insights da literatura ensaística: as coincidências sincromísticas que antecederiam eventos importantes na história e a linguagem humana como um vírus letal que parasita a humanidade. Em “Pontypool” o vírus não é disseminado pelo sangue, ar ou corpo, mas pelas palavras. O que resulta num interessante “terror semiótico”: certas palavras estariam infectadas, aquelas mais carregadas de afeto e emoção. E nos Dias dos Namorados isso pode ser fatal... Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.

segunda-feira, abril 21, 2014

A crueldade do mito da infância no filme "A Caça"

Quais fronteiras que separam a criança do adulto? A racionalidade? O desenvolvimento físico? A maldade? O filme “A Caça” do diretor dinamarquês Thomas Vinterberg (indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro), através de uma narrativa seca, crua e até brutal, segue o drama de um professor falsamente acusado de abuso sexual em uma escola infantil como ato de vingança de uma menina cujo beijo fora delicadamente recusado por ele. A destruição de reputações e o linchamento moral são meticulosamente abordados:  como a mentira pode se espalhar como um câncer no meio de uma comunidade, destruindo a capacidade coletiva para a razão e fomentando uma incrível crueldade e o mal em pessoas aparentemente tão decentes. Mais do que isso, “A Caça” questiona a mitologia da pureza infantil, discurso mobilizado pelos adultos para legitimar todo um sistema cultural e moral baseado numa suposta evolução natural da infância à vida adulta.

A infância talvez seja um dos mitos mais cultivados e protegidos da sociedade. Afinal, é o que sustenta todo o sistema educacional, cultural e moral: a certeza de que nascemos e evoluímos física e intelectualmente através do aprendizado, da educação seja física ou cultural.

Ritos de passagem para a entrada na vida adulta como demonstrações de destreza, coragem, força física e domínio intelectual são eventos centrais na sociedade para determinar essa fronteira que separaria a infância da vida adulta. Mas há momentos em que essas fronteiras não ficam tão evidentes, principalmente quando as crianças demonstram ter uma vida psíquica tão intensa quanto a dos adultos com desejos e fantasias que não conseguem ser explicados pela oposição simplista verdade/mentira.

domingo, abril 20, 2014

Reality show aponta para nova função social da televisão: a "TV excremental"

No momento em que mídias de convergência como Internet e dispositivos móveis ameaçam as mídias tradicionais, a TV abraça o conceito de “shows de realidade” onde especialistas nas mais diversas áreas atendem ao pedido de socorro de pais ou casais que não conseguem dar conta de filhos chiliquentos, cães maníacos, apartamentos entulhados de bugigangas ou de guarda-roupas que passaram da moda. Para sobreviver a irrupção das mídias digitais interativas e em tempo real, a TV aponta para uma mudança de função: de mídia informativa ou de entretenimento, para agenciadora das necessidades psíquicas de sacrifício, disciplina, vigilância e reenergização dos telespectadores através da violência, funções a que o pesquisador canadense Arthur Kroker conceitua como "TV excremental". O reality “Socorro! Meu filho come mal” da GNT é um caso exemplar.

Em um fenômeno de sincronismo, no momento em que terminava a postagem anterior sobre o filme Edtv (clique aqui para ler) e a discussão sobre a função social do reality show, eis que dou de cara na TV com o reality da GNT Socorro! Meu filho come mal comandado pela nutricionista Gabriela Kapim.

Há uma verdadeira febre na TV a cabo atual de programas reality com especialistas nas mais diversas áreas, de adestradores de cachorros a educadores infantis, passando personal trainers, personal stylists ou personal organizers. Super Nanny, Santa Ajuda, Pronto Socorro da Moda etc., variações do gênero reality show sempre com especialistas que recebem pedidos de socorro de telespectadores que não conseguem dar conta de filhos mal educados, cães maníacos, apartamentos entulhados de bugigangas ou de guarda-roupas que passaram da moda.

sábado, abril 19, 2014

A televisão excremental no filme "Edtv"

Ao lado de “Show de Truman”, o filme “Edtv” (1999) de Ron Howard, mais do que antecipar uma TV atual onde o conceito de reality show contamina de reportagens a programas de gastronomia e decoração, anteviu uma nova função social - a “TV excremental”. Uma televisão que há muito abandonou a pretensão de ser uma “janela aberta para o mundo” para assumir um papel fisio-psicológico: processar os excrementos psíquicos. Assim como o corpo que depois de ingerir, acumular, metabolizar e produzir tem que no final excretar para manter o ciclo vital, da mesma forma milhões de telespectadores necessitam excretar fluxos psíquicos (sacrifício, disciplina, vigilância e violência) para que o ciclo se renove no dia seguinte após um dia inteiro de alimentação e trabalho para acumulação de méritos e riqueza alheia.

Desprezado pela crítica e pelo público. Esse foi o destino do filme Edtv (1999) do premiado diretor Ron Howard (Oscar de melhor diretor em Uma Mente Brilhante, 2001) que se quer chegou a ser exibidos nos cinemas brasileiros. Muitos creditaram o fato desse filme ter caído no esquecimento à coincidência de ter sido lançado no mesmo ano de Show de Truman de Peter Weir: assim como em Edtv, também antecipava a questão dos reality show que, mais tarde, se tornaria um gênero televisivo mundial.

O sucesso de Show de Truman eclipsou Edtv, mas olhando hoje percebemos que embora tratem do mesmo objeto, a proposta de discussão é bem diferente: enquanto Weir contava a história de um protagonista cuja vida foi fabricada para ser entretenimento de milhões sem ele saber, Howard quer discutir não só a questão das celebridades instantâneas produzidas pelos reality show como também os destinos da TV em um novo milênio dominado pela cultura digital em tempo real.

domingo, abril 13, 2014

Como fazer uma notícia para um telejornal

Como o dramaturgo do Teatro do Absurdo Eugène Ionesco pode explicar o suposto escândalo da questão de uma prova de Filosofia de uma escola pública que citava a música da Valesca Popozuda? Não só explica como também fornece um método para a criação de notícias em telejornais: a estratégia de descontextualização. Mais uma bomba semiótica onde a fabricação da notícia é ordenada pela organização de fragmentos díspares em função de uma lógica que parece fazer os pedaços convergir em direção a um desenlace que já se tem em vista. Como nos romances, tudo parece ser o presságio de um inevitável abismo para onde o País caminharia. Uma bomba semiótica cujo efeito é turbinado tanto pelo preconceito de classe contra o funk  quanto pelo jornalismo metonímico do “Não Vai Ter Copa”.

Como recortar um elemento do real para apresentá-lo como notícia em um telejornal? Na peça A Cantora Lírica Careca (La Cantatrice Chauve, 1950) Eugène Ionesco, dramaturgo do Teatro do Absurdo – 1909 a 1994) nos fornece um método bem interessante que é seguido à risca na atualidade para a montagem de bombas semióticas. Em primeiro lugar, devemos declarar como “extraordinário” um conjunto de elementos qualquer:

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