sexta-feira, abril 26, 2024

'Tarde da Noite Com o Diabo': a TV oculta e misteriosa dos anos 1970-80


"Tarde da Noite com o Diabo” (Late Night With The Devil, 2023) é outra produção ao lado de “Poltergeist”, “Videodrome” ou “Ring: O Chamado”: o imaginário da TV dos anos 1970-80 que criou uma aura misteriosa e oculta em torno dela. Uma época que a TV terminava a programação e saia do ar, deixando ruídos na tela. Para onde vai o mundo quando a TV sai do ar? Nos EUA fez crescer o “cinema da meia noite”, para insones em busca de filmes bizarros e experimentais. As TV abertas responderam com os talk shows da meia-noite. “Tarde da Noite com o Diabo” é um mockumentary em torno de um programa chamado “Night Owls With Jack Delroy" estamos prestes a assistir às imagens historicamente infames de uma noite que “chocou toda uma nação”. Um programa especial de Halloween de 1977 com uma perigosa combinação: médiuns, parapsicólogos e... uma garota possuída pelo demônio. O filme é uma deliciosa combinação de simbolismos que vão do parapolítico ao gnóstico: um acordo faustiano entre o programa, a simbologia da Coruja e a infame irmandade secreta californiana conhecida como “Bohemian Grove” e o simbolismo do “Abraxas” na cosmogonia gnóstica. 

Os leitores mais velhos desse blog, incluindo este humilde blogueiro, vão lembrar de uma época em que as emissoras de TV abertas saiam do ar quando encerrava a programação. Emissoras estatais, como a TV Cultura, terminavam com o hino nacional brasileiro – afinal, nos anos 1970, vivíamos a ditadura militar.

Diferente, os canais privados colocavam na tela a programação do dia seguinte – que invariavelmente começava às 6h com Telecursos e Curso de Madureza Ginasial. 

Com a TV fora do ar e a tela cheia de chuviscos, hora de todos irem para a cama!

Mas no começo dos anos 1970 a TV Record de São Paulo resolveu inovar: na madrugada do domingo permanecia no ar com o “Varig é a dona da Noite”: uma programação para encher a madrugada com filmes europeus e os indefectíveis desenhos animados da Hanna-Barbera. Ao que consta, telefonemas inundaram o PABX da emissora com telespectadores insones agradecendo a iniciativa que tornava as noites menos solitárias.

Nessa época, esse humilde blogueiro era um pré-adolescente que imaginava: o que será que acontece com o mundo quando todos dormem e a TV sai do ar? “Varig é a Dona da Noite” era a oportunidade para checar como é o mundo quando todos estão dormindo. Isso era excitante em meio a uma atmosfera de mistério – era como se estivesse se embrenhando num mundo misterioso e underground.

 Essa relação do telespectador com uma era da TV que terminava a programação e saia do ar deu origem nos EUA ao cinema da sessão da meia-noite: filmes com temática livremente estranha e bizarra que eram exibidos em horários alternativos das madrugadas, para espectadores aventureiros e sedentos por experimentações. 



Essa experiência que criou uma, por assim dizer, “cultura da meia-noite” passou a ser emulada pela TV aberta nos EUA com talk shows da meia-noite para o telespectador sentir algum tipo de companhia quando todos foram para a cama.

Só que, ao contrário do cinema, o aparelho de TV cria uma relação de intimidade: o aparelho está a poucos centímetros de você, dentro da intimidade do seu lar, como você implicitamente estivesse autorizando a entrada de qualquer coisa na sua casa... inclusive o Mal.

A dupla de diretores e escritores australianos, os irmãos Colin e Cameron Cairnes, fizeram um astuto uso desses detalhes excepcionalmente misteriosos e assustadores da TV dos anos 1970-80 – que acontece no mundo quando todos dormem e a TV sai do ar? O que pode acontecer na madrugada, assistindo à TV enquanto todos dormem?

Tarde da Noite com o Diabo (2024) é mais uma produção que repercute esse imaginário dos 70-80’s como Videodrome de David Cronenberg, Poltergeist de Tobe Hooper ou Ringu de Hideo Nakata.  

Mas ao contrário dessas produções, Tarde da Noite com o Diabo não se concentra na situação do telespectador passivo diante da TV, mas no processo de criação dos conteúdos televisivos: a corrida pela audiência, a ameaça de cancelamento do programa, a corrida da produção em trazer atrações cada vez mais bizarras para manter a audiência no canal e evitar o efeito zapping e assim por diante.

Inteligente, cínico e às vezes literalmente e diabolicamente engraçado, o filme oferece uma visão disruptiva do gênero de terror sobre possessão demoníaca. O filme assume a forma de um mockumentary found footage – a descoberta de uma fita mestre há muito perdida com imagens dos bastidores de um malfadado especial de Halloween de 1977 “Night Owls”, um talk show noturno sob ameaça de cancelamento pela baixa audiência, apresentado por Jack Delroy (David Dastmalchian, perfeito!). 



Jack e seu produtor fizeram de tudo para criar um especial de Halloween bizarro e do outro mundo. Mas as coisas começam a fugir do controle – principalmente quando conhecemos os detalhes da trajetória de Jack Delroy: associado à controversa sociedade secreta Bohemian Grove, ligado ao simbolismo da Coruja que dá nome ao talk show.  Além de trazer convidados associados à simbologia gnóstica dos “Abraxas”.

O Filme

O apresentador do programa de conversa e variedades noturno inventado pelo filme é Jack Delroy, um Johnny Carson mais jovem e com um senso de humor mais rápido que está desesperado para subir ao topo da audiência. Construído como um pseudodocumentário, o filme nos informa brevemente sobre a trajetória de carreira de Delroy apresentando "Night Owls With Jack Delroy", um show que vai bem ao longo dos anos, mas que não consegue superar seu principal concorrente: Johnny Carson. 

Como a narração em off nos informa na sequência de abertura do filme, Delroy está arriscando tudo entrar para na história da TV americana — sempre indicado ao Emmy, mas nunca o vencedor. Toda a introdução nos prepara para o que veremos à frente: estamos prestes a assistir às imagens historicamente infames de uma noite que “chocou toda uma nação”.

Arrisca tudo mesmo! Faz uma espécie de pacto faustiano no começo dos anos 1970 com a controversa irmandade secreta chamada Bohemian Grove - um clube exclusivo masculino fundado em 1872 localizado em Monte Rio, Califórnia, em um lugar conhecido como Bohemian Grove. Todo verão, no mês de julho, seus membros (em torno de 2.500 pertencentes à elite financeira, política e midiática global) participam de um “acampamento” onde se programam dentro de uma intensa pauta constituída por palestras sobre conjuntura mundial, lazer e um estranho ritual conhecido como Cremation of Care feito sob os pés da estátua de uma coruja com 12 metros de altura.



Estranhos rituais arcanos como esse sugerem incursões dessa elite global no ocultismo, misticismo e esoterismo – magia ritual como arma parapolítica.

A certa altura, quando o seu assistente de palco está assustando com as manifestações diabólicas ao vivo, reclama: “Mas você não é membro do Bohemian Grove? Precisa fazer tudo isso para o programa não ser cancelado?”. Jack responde: “as pessoas superestimam demais o poder daquela gente...”.

É quando Tarde da Noite com o Diabo começa um inteligente humor autorreferente.

Delroy e seus produtores têm uma ideia desesperada e final para evitar o cancelamento do programa: eles planejam um show excitante e assustador que aproveitará a mania cultural por coisas ocultas que está em ascensão nos anos 1970. A lista de convidados naquela noite inclui um médium, um pesquisador cético, além de uma parapsicóloga que trata uma garota que sofre de possessão demoníaca.

Todos esses personagens são historicamente familiares dos anos 1970. Carmichael the Conjurer (Ian Bliss), é o cético do filme. Foi inspirado em James Randi, que apareceu no “The Tonight Show” para desmascarar habilidades paranormais, mais notavelmente as do ilusionista Uri Geller, em 1973. Randi também confrontou médiuns na TV ao vivo (como Christou, neste filme, interpretado por um Hammy Fayssal Bazzi) e foi um crítico midiático franco da parapsicologia.

Tarde da Noite com o Diabo também evoca Michelle Remembers, autora de um best-seller de 1980, desacreditada pelo psiquiatra Lawrence Pazder sobre sua paciente, Michelle Smith, que alegou ter sido submetida a abuso satânico ritual. 



No filme, a médica é uma parapsicóloga interpretada por Laura Gordon. Ela é acompanhada no programa pela sua paciente, Lilly (Ingrid Torelli), cujas oscilações entre o olhar morto e vibrante é diabolicamente inquietante. Se há uma regra de horror, é que não há nada mais assustador do que uma garotinha possuída por um demônio.

Não precisa ser muito perspicaz para esperar que toda essa combinação vai terminar da pior maneira possível naquela noite de 1977.

Para além do simbolismo da coruja (referência direta às denúncias sobre estranhos rituais ocultistas realizados no Bohemian Grove), há um outro simbolismo que dá um sabor gnóstico à crítica da TV feita pelo filme. É o simbolismo gnósticos dos “Abraxas”.

O simbolismo gnóstico “Abraxas” – alerta de Spoilers à frente

Lilly foi a única sobrevivente de um suicídio em massa de um culto satânico – a chamada “Primeira Igreja de Abraxas”.

Aqui “Abraxas” é apresentada como uma entidade demoníaca que possui Lily.



No sistema gnóstico de Basilides (um dos primeiros professores gnósticos em Alexandria, Egito, entre 117-138 DC), “Abrasax”, ou a sua forma variante “Abraxas” (“ΑΒΡΑΣΑΞ”), é o “Grande Arconte”, o príncipe das 365 esferas que compõem o Cosmos. Seu nome contém o número 365. Ou seja, a soma dos números representados pelas letras gregas em ΑΒΡΑΣΑΞ é 365:

Α = 1, Β = 2, Ρ = 100, Α = 1, Σ = 200, Α = 1, Ξ = 60

Abraxas é “o poder acima de tudo, o primeiro princípio. Para psicólogo suíço Jung, no seu tratado gnóstico de 1916 chamado os “Sete Sermões aos Mortos”, Abraxas representaria um deus acima do Deus Cristão e o Diabo, que combinaria todos os opostos num único Ser.

Na cosmologia de Basilides, ele é o assistente do Demiurgo (Yaldabaoth, o “filho do caos”), o criador desse Cosmos composto por esses “365 céus” para os quais designou regentes para cada um desses mundo. 

Abraxas está acima de todos os Regentes ou Arcontes, cuja missão principal é diversionista: através das ilusões da religião consoladora, do hedonismo e da racionalidade da Conhecimento e do Poder manter a humanidade prisioneira nesse Cosmos.

A astúcia dos simbolismos lidados por Tarde da Noite com o Diabo é aproximar o gênio diversionista demoníaco de Abraxas com a TV: como foi conveniente a invenção dos meios de comunicação de massas, para aumentar exponencialmente o poder da criação das ilusões pelos Arcontes. 

Em síntese, Tarde da Noite com o Diabo é um filme atmosférico: consegue capturar essa atmosfera mística e oculta que envolvia a TV nos anos 1970: o que acontecia com o mundo quando a TV saia do ar?


 

 

Ficha Técnica

 

Título: Tarde da Noite com o Diabo

Diretor:  Cameron Cairnes, Colin Cairnes

Roteiro:  Cameron Cairnes, Colin Cairnes

Elenco: David Dastmalchian, Laura Gordon, Ian Bliss, Ingrid Torelli, Fayssal Bazzi

Produção: IFC Films, Shudder

Distribuição: Diamond Films (Brasil)

Ano: 2023

País: Austrália, EUA

 

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