segunda-feira, abril 21, 2014

A crueldade do mito da infância no filme "A Caça"

Quais fronteiras que separam a criança do adulto? A racionalidade? O desenvolvimento físico? A maldade? O filme “A Caça” do diretor dinamarquês Thomas Vinterberg (indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro), através de uma narrativa seca, crua e até brutal, segue o drama de um professor falsamente acusado de abuso sexual em uma escola infantil como ato de vingança de uma menina cujo beijo fora delicadamente recusado por ele. A destruição de reputações e o linchamento moral são meticulosamente abordados:  como a mentira pode se espalhar como um câncer no meio de uma comunidade, destruindo a capacidade coletiva para a razão e fomentando uma incrível crueldade e o mal em pessoas aparentemente tão decentes. Mais do que isso, “A Caça” questiona a mitologia da pureza infantil, discurso mobilizado pelos adultos para legitimar todo um sistema cultural e moral baseado numa suposta evolução natural da infância à vida adulta.

A infância talvez seja um dos mitos mais cultivados e protegidos da sociedade. Afinal, é o que sustenta todo o sistema educacional, cultural e moral: a certeza de que nascemos e evoluímos física e intelectualmente através do aprendizado, da educação seja física ou cultural.

Ritos de passagem para a entrada na vida adulta como demonstrações de destreza, coragem, força física e domínio intelectual são eventos centrais na sociedade para determinar essa fronteira que separaria a infância da vida adulta. Mas há momentos em que essas fronteiras não ficam tão evidentes, principalmente quando as crianças demonstram ter uma vida psíquica tão intensa quanto a dos adultos com desejos e fantasias que não conseguem ser explicados pela oposição simplista verdade/mentira.

E então nesses momentos a sociedade deve intervir, muitas vezes de forma violenta.

O filme


Esse é o tema central do filme A Caça do diretor dinamarquês Thomas Vinterberg. A caça é tomada no filme tanto no sentido literal como metafórico: a forma como o protagonista passa a ser “caçado” através da difamação em uma pequena comunidade e a caça encarada nessa sociedade como um ritual de passagem para a vida adulta.

Lucas (Mads Mikkelsen) é um pai divorciado que é falsamente acusado de ter abusado sexualmente crianças em uma escola infantil onde trabalha como professor. A narrativa começa com Lucas em uma disputa judicial com sua ex-esposa que utiliza o sistema do tribunal de família para minar o relacionamento com seu filho adolescente. Lucas se refugia do seu sofrimento nos relacionamentos saudáveis e amorosos com as crianças da escola.

Mas tudo começa a tender para um realismo cada vez mais brutal e angustiante quando Lucas é acusado por uma criança vingativa chamada Klara (Annika Wedderkopp), depois que sua paixão pelo professor é delicadamente recusada. Depois que ela ouviu de seu irmão piadas com amigos sobre um pênis ereto que viram em um site da Internet, Klara acusa Lucas de ter mostrado o seu para ela. Depois disso a pequena e pacata comunidade dinamarquesa converte seus moradores em monstros predadores tão ameaçadores quanto aqueles dos pesadelos infantis.

Grethe, a diretora da escola, faz uma entrevista superficial e sem sentido com Klara, concluindo a partir dos fragmentos de diálogo com a menina de que outras crianças também foram abusadas por Lucas. A diretora denuncia às autoridades e alarma os pais ao orientá-los a ficarem atentos para possíveis sintomas de abuso sexual como incontinência urinária e dores de cabeça.

Lucas é preso e depois inocentado das acusações, mas a histeria e paranoia se espalham viralmente pela comunidade que passa a aterrorizar Lucas, principalmente depois que seu cachorro é encontrado morto e os mercados da cidade se recusam a vender para ele qualquer produto.

A justiça absolve Lucas por falta de evidências, mas não a pequena comunidade. Como diz Grethe “crianças não mentem”. Como os adultos poderão lidar com essa evidente contradição dentro da mitologia da infância supostamente idílica e inocente?

Freud e a mitologia da pureza infantil


Para Freud, o infantil não se desfaz no adulto, mas permanece determinando seus desejos, sonhos da vida adulta. O adulto portará para sempre a criança que o constituiu. As pulsões infantis serão submetidas à ação do recalque e dos processos secundários adultos, mas nunca abandonarão seus intentos de retorno ao prazer primordial.

O mito da infância como um paraíso idílico de inocência do qual fomos todos expulsos é uma dessas estratégias de recalques adultas.

A reviravolta dessa mitologia inicia‑se quando Freud descobriu que os relatos de pacientes sobre incidentes ocorridos na infância (a sedução, a cena primitiva ‑ onde a criança teria testemunhado o coito parental, motivo de profundo desgosto e medo; e a cena da castração ‑, onde um adulto a teria punido pela privação física ou moral) jamais tinham acontecidos. As cenas foram fantasiadas. Mais do que mentiras, estas três fantasias irão configurar o próprio campo do Complexo de Édipo. E, mais ainda, indicar a presença de uma vida sexual ativa na infância (ao contrário do que se acreditava nos meios científicos da época, onde a sexualidade era considerada uma atividade especificamente adulta e voltada para a procriação). Mas uma estranha vida sexual, dominada por fantasias perversas e por nenhuma clareza na definição da identidade sexual.

A partir daí, Freud voltou toda a atenção à infância, porque, cada vez mais, terá certeza de que a sexualidade do adulto tem a ver com certas maneiras que a criança tem de referir‑se a seus primeiros objetos. Chamou de etapas a essas três maneiras: a etapa oral, a anal e a genital ou fálica. Essas maneiras eram como modelos através dos quais a criança progressivamente erogenizava o seu corpo, até atingir, aos cinco anos, o corpo sexuado com papel definido, capaz de atingir o gozo do adulto.

Uma personagem freudiana


O que os moradores da pequena comunidade dinamarquesa não conseguem suportar é a linha de continuidade entre a criança e o adulto. A absolvição de Lucas pela Justiça torna a contradição no interior do mito da superioridade adulta insuportável. Por isso, Lucas deve ser o bode expiatório daquela comunidade, a válvula de escape da tensão reinante.

O ponto alto do filme (a missa de Natal onde Lucas, após a absolvição, confronta-se com toda a comunidade reunida na igreja) é bem simbólico: na verdade, todos estão ali não pelos valores da piedade e compaixão, mas para reforçar a mitologia da pureza de Cristo recém-nascido.

Klara é nitidamente um personagem freudiano: ela vive a fantasia da sedução, forma imaginária da criança lidar com o objeto da pulsão (Lucas) criando uma narrativa perversa. O detalhe no filme é que para Klara, o suposto ato de molestação não é nem verdade e nem mentira, mas fantasia. Sem compreender essa forma imaginária da criança explicar o mundo e a si mesma, os adultos acabam interpretando ao pé-da-letra.

“Crianças não mentem”, pensam todos. Não compreendem que a criança fantasia, criação imaginária que está para além da verdade e da mentira.

“A Caça” e o Dogma 95


O diretor Thomas Vinterberg segue à risca os princípios do movimento Dogma 95 do qual fez parte ao lado do cineasta Lars Van Trier – restrições ao uso de técnicas e estilizações nos filmes, pivilegiando filmagens em loco, câmera na mão e som ambiente. A narrativa é seca, realista e até brutal. Linguagem perfeita para mostrar como a mentira pode se espalhar como um câncer no meio de uma comunidade, destruindo a capacidade coletiva para a razão e fomentando uma incrível crueldade e o mal em pessoas aparentemente tão decentes.

Em uma nota ainda mais sombria, Vinterberg nos faz ainda lembrar de uma traiçoeira tendência que estamos testemunhando na atualidade: a perigosa aliança entre a Justiça e o tradicionalismo. A Caça nos mostra que é instintivo no homem o impulso em proteger crianças, principalmente do sexo feminino, sem pensar o quão destrutivo pode sê-lo. Principalmente ao utilizar os processos legais.

Os trâmites jurídicos são uma das mais nobres invenções do homem: ele é o guardião entre os seres humanos da sua tendência de destruir uns aos outros e a si mesmos. Os tradicionalistas querem destruir essa garantia jurídica contra a falibilidade humana ao manipulá-la. Afinal, eles acreditam que recebem as ordens para destruir reputações de homens acusados diretamente da boca de Deus.

Casos famosos como o escândalo da Escola Base em 1994 (denúncias de supostos abusos sexuais envolvendo crianças – mais tarde desmentidos pela Justiça -  fizeram a escola de em bairro de São Paulo ser fechada diante do linchamento dos meios de comunicação) mostram que essa aliança pode se tornar ainda mais destrutiva com a repercussão midiática.

Ficha Técnica


Título: A Caça (Jagten)
Direção: Thomas Vinterberg
Roteiro: Tobias Lindholm, Thomas Vinterberg
Elenco: Mads Nikkelsen, Thomas Bo Larsen, Annika Wedderkopp
Produção: Danmarks Radio, Zentropa Entertainments, Zentropa International Sweden
Distribuição: Califórnia Filmes
Ano: 2012
País: Dinamarca, Suécia



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