Quais fronteiras que separam a criança do adulto? A racionalidade? O
desenvolvimento físico? A maldade? O filme “A Caça” do diretor dinamarquês Thomas
Vinterberg (indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro), através de uma narrativa seca, crua e até brutal, segue o drama de
um professor falsamente acusado de abuso sexual em uma escola infantil como ato
de vingança de uma menina cujo beijo fora delicadamente recusado por ele. A
destruição de reputações e o linchamento moral são meticulosamente abordados: como a mentira pode se espalhar como um câncer
no meio de uma comunidade, destruindo a capacidade coletiva para a razão e
fomentando uma incrível crueldade e o mal em pessoas aparentemente tão
decentes. Mais do que isso, “A Caça” questiona a mitologia da pureza infantil,
discurso mobilizado pelos adultos para legitimar todo um sistema cultural e
moral baseado numa suposta evolução natural da infância à vida adulta.
A infância talvez
seja um dos mitos mais cultivados e protegidos da sociedade. Afinal, é o que
sustenta todo o sistema educacional, cultural e moral: a certeza de que
nascemos e evoluímos física e intelectualmente através do aprendizado, da
educação seja física ou cultural.
Ritos de passagem
para a entrada na vida adulta como demonstrações de destreza, coragem, força
física e domínio intelectual são eventos centrais na sociedade para determinar
essa fronteira que separaria a infância da vida adulta. Mas há momentos em que
essas fronteiras não ficam tão evidentes, principalmente quando as crianças
demonstram ter uma vida psíquica tão intensa quanto a dos adultos com desejos e
fantasias que não conseguem ser explicados pela oposição simplista
verdade/mentira.
E então nesses
momentos a sociedade deve intervir, muitas vezes de forma violenta.
O filme
Esse é o tema
central do filme A Caça do diretor dinamarquês
Thomas Vinterberg. A caça é tomada no filme tanto no sentido literal como
metafórico: a forma como o protagonista passa a ser “caçado” através da
difamação em uma pequena comunidade e a caça encarada nessa sociedade como um
ritual de passagem para a vida adulta.
Lucas (Mads
Mikkelsen) é um pai divorciado que é falsamente acusado de ter abusado
sexualmente crianças em uma escola infantil onde trabalha como professor. A
narrativa começa com Lucas em uma disputa judicial com sua ex-esposa que
utiliza o sistema do tribunal de família para minar o relacionamento com seu
filho adolescente. Lucas se refugia do seu sofrimento nos relacionamentos
saudáveis e amorosos com as crianças da escola.
Mas tudo começa a
tender para um realismo cada vez mais brutal e angustiante quando Lucas é acusado
por uma criança vingativa chamada Klara (Annika Wedderkopp), depois que sua
paixão pelo professor é delicadamente recusada. Depois que ela ouviu de seu
irmão piadas com amigos sobre um pênis ereto que viram em um site da Internet,
Klara acusa Lucas de ter mostrado o seu para ela. Depois disso a pequena e
pacata comunidade dinamarquesa converte seus moradores em monstros predadores
tão ameaçadores quanto aqueles dos pesadelos infantis.
Grethe, a diretora
da escola, faz uma entrevista superficial e sem sentido com Klara, concluindo a
partir dos fragmentos de diálogo com a menina de que outras crianças também foram
abusadas por Lucas. A diretora denuncia às autoridades e alarma os pais ao
orientá-los a ficarem atentos para possíveis sintomas de abuso sexual como
incontinência urinária e dores de cabeça.
Lucas é preso e
depois inocentado das acusações, mas a histeria e paranoia se espalham viralmente
pela comunidade que passa a aterrorizar Lucas, principalmente depois que seu
cachorro é encontrado morto e os mercados da cidade se recusam a vender para
ele qualquer produto.
A justiça absolve
Lucas por falta de evidências, mas não a pequena comunidade. Como diz Grethe “crianças
não mentem”. Como os adultos poderão lidar com essa evidente contradição dentro
da mitologia da infância supostamente idílica e inocente?
Freud e a mitologia da pureza infantil
Para Freud, o
infantil não se desfaz no adulto, mas permanece determinando seus desejos,
sonhos da vida adulta. O adulto portará para sempre a criança que o constituiu.
As pulsões infantis serão submetidas à ação do recalque e dos processos
secundários adultos, mas nunca abandonarão seus intentos de retorno ao prazer
primordial.
O mito da infância
como um paraíso idílico de inocência do qual fomos todos expulsos é uma dessas
estratégias de recalques adultas.
A reviravolta dessa mitologia inicia‑se quando Freud descobriu que os relatos
de pacientes sobre incidentes ocorridos na infância (a sedução, a cena
primitiva ‑ onde a criança teria testemunhado o coito parental, motivo de
profundo desgosto e medo; e a cena da castração ‑, onde um adulto a teria
punido pela privação física ou moral) jamais tinham acontecidos. As cenas foram
fantasiadas. Mais do que mentiras, estas três fantasias irão configurar o
próprio campo do Complexo de Édipo. E, mais ainda, indicar a presença de uma
vida sexual ativa na infância (ao contrário do que se acreditava nos meios
científicos da época, onde a sexualidade era considerada uma atividade
especificamente adulta e voltada para a procriação). Mas uma estranha vida
sexual, dominada por fantasias perversas e por nenhuma clareza na definição da
identidade sexual.
A partir daí, Freud voltou toda a atenção à infância, porque, cada vez
mais, terá certeza de que a sexualidade do adulto tem a ver com certas maneiras
que a criança tem de referir‑se a seus primeiros objetos. Chamou de etapas a essas três maneiras: a etapa
oral, a anal e a genital ou fálica. Essas maneiras eram como modelos através
dos quais a criança progressivamente erogenizava o seu corpo, até atingir, aos
cinco anos, o corpo sexuado com papel definido, capaz de atingir o gozo do
adulto.
Uma personagem freudiana
O que os moradores
da pequena comunidade dinamarquesa não conseguem suportar é a linha de
continuidade entre a criança e o adulto. A absolvição de Lucas pela Justiça
torna a contradição no interior do mito da superioridade adulta insuportável. Por
isso, Lucas deve ser o bode expiatório daquela comunidade, a válvula de escape
da tensão reinante.
O ponto alto do
filme (a missa de Natal onde Lucas, após a absolvição, confronta-se com toda a
comunidade reunida na igreja) é bem simbólico: na verdade, todos estão ali não
pelos valores da piedade e compaixão, mas para reforçar a mitologia da pureza
de Cristo recém-nascido.
Klara é
nitidamente um personagem freudiano: ela vive a fantasia da sedução, forma
imaginária da criança lidar com o objeto da pulsão (Lucas) criando uma
narrativa perversa. O detalhe no filme é que para Klara, o suposto ato de
molestação não é nem verdade e nem mentira, mas fantasia. Sem compreender essa
forma imaginária da criança explicar o mundo e a si mesma, os adultos acabam
interpretando ao pé-da-letra.
“Crianças não
mentem”, pensam todos. Não compreendem que a criança fantasia, criação
imaginária que está para além da verdade e da mentira.
“A Caça” e o Dogma 95
O diretor Thomas
Vinterberg segue à risca os princípios do movimento Dogma 95 do qual fez parte
ao lado do cineasta Lars Van Trier – restrições ao uso de técnicas e
estilizações nos filmes, pivilegiando filmagens em loco, câmera na mão e som
ambiente. A narrativa é seca, realista e até brutal. Linguagem perfeita para
mostrar como a mentira pode se espalhar como um câncer no meio de uma
comunidade, destruindo a capacidade coletiva para a razão e fomentando uma
incrível crueldade e o mal em pessoas aparentemente tão decentes.
Em uma nota ainda
mais sombria, Vinterberg nos faz ainda lembrar de uma traiçoeira tendência que
estamos testemunhando na atualidade: a perigosa aliança entre a Justiça e o
tradicionalismo. A Caça nos mostra
que é instintivo no homem o impulso em proteger crianças, principalmente do
sexo feminino, sem pensar o quão destrutivo pode sê-lo. Principalmente ao
utilizar os processos legais.
Os trâmites
jurídicos são uma das mais nobres invenções do homem: ele é o guardião entre os
seres humanos da sua tendência de destruir uns aos outros e a si mesmos. Os
tradicionalistas querem destruir essa garantia jurídica contra a falibilidade
humana ao manipulá-la. Afinal, eles acreditam que recebem as ordens para
destruir reputações de homens acusados diretamente da boca de Deus.
Casos famosos como
o escândalo da Escola Base em 1994 (denúncias de supostos abusos
sexuais envolvendo crianças – mais tarde desmentidos pela Justiça - fizeram a escola de em bairro de São Paulo ser
fechada diante do linchamento dos meios de comunicação) mostram que essa
aliança pode se tornar ainda mais destrutiva com a repercussão midiática.
Ficha Técnica |
Título: A Caça (Jagten)
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Direção: Thomas Vinterberg
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Roteiro: Tobias Lindholm, Thomas Vinterberg
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Elenco: Mads Nikkelsen, Thomas Bo Larsen, Annika
Wedderkopp
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Produção: Danmarks Radio, Zentropa Entertainments, Zentropa International
Sweden
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Distribuição: Califórnia Filmes
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Ano: 2012
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País: Dinamarca, Suécia
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