Se no documentário anterior, “Democracia em Vertigem”, Petra Costa procurou entender por que a elite que sempre esteve no Estado (banqueiros, grande mídia e construtoras) cansou da Democracia e virou o tabuleiro, em “Apocalipse nos Trópicos” (2024) ela vai detalhar o papel da religião nessa virada. O processo de envenenamento psíquico de uma nação “com a mudança religiosa mais rápida da história da humanidade”: o crescimento dos evangélicos. Em particular, um tipo de fundamentalismo cristão a partir de uma releitura do livro bíblico do Apocalipse: Jesus não é mais “paz e amor”, mas agora um guerreiro em uma batalha espiritual. Era o tipo de Jesus que a elite do mercado religioso precisava para transformar a fé em arma política na última batalha do fim dos tempos: a batalha contra os “esquerdopatas”. Se assistir ao “Apocalipse nos Trópicos” com o documentário anterior em mente, conseguirá entender por que a elite que virou o tabuleiro da Democracia gostou desse fundamentalismo: o niilismo das finanças e a presunção da catástrofe da grande mídia se sintonizam bem com a ideia de um Apocalipse nos trópicos.
Petra Costa retorna com força ao cenário político brasileiro em
seu novo documentário, Apocalipse nos Trópicos, lançado pela Netflix em
julho de 2025. A obra é uma continuação temática de Democracia em Vertigem,
mas desta vez com foco na interseção entre religião e política — especialmente
o papel do fundamentalismo evangélico na ascensão da extrema direita no Brasil.
Lá em Democracia em Vertigem, Petra tornou a cronologia dos
fatos que levaram o País da ditadura militar aos governos de centro-esquerda de
Lula e Dilma em apenas um cenário para entender por que a elite se cansou a
Democracia e do Estado de Direito, virou o tabuleiro e envenenou corações e
mentes com ódio e polarização.
Agora, em Apocalipse nos Trópicos, a diretora vai detalhar
esse processo de envenenamento psíquico de uma nação.
Se no documentário anterior, descrevia os grupos da elite que
sempre estiveram no Estado durante a história recente, bancando a democracia e
a república (os banqueiros, as famílias proprietárias da grande mídia e as
construtoras), agora no atual documentário, Petra Costa revela o papel da
religião não só na manutenção do status quo. Mas principalmente, no papel de pastores
e igrejas neopentecostais na virada do tabuleiro, para que essa elite
recolocasse as peças (os políticos) nos lugares.
Tudo pontuado por detalhes de pinturas medievais baseadas no livro
bíblico do Apocalipse, o documentário começa com o título irônico: como é
possível falar de “Apocalipse” nos “Trópicos”? Ao pensarmos em “trópicos”
pensamos em praias ensolaradas, alegria, sensualidade e otimismo. Bem diferente
do Apocalipse sugerido pelas pinturas com detalhes bizarros dos sofrimentos no
Inferno.
O estilo do documentário segue a narrativa em primeira pessoa do
documentário anterior:
A minha formação laica não estava ajudando a decifrar os sinais do meu entorno... eu sabia o que tinha sido a Revolução Russa, a fórmula do oxigênio... mas nada sobre o Apóstolo Paulo, João de Patmos ou os Quatro Cavaleiros do Apocalipse. Era se compartilhássemos a mesma Terra, mas falássemos línguas diferentes... Então eu finalmente começo a estudar a Bíblia.
Petra declara isso depois de acompanhar pastores e deputados da
Bancada da Bíblia ungindo os lugares do plenário um pouco antes de uma sessão
do Congresso. Seria como estivessem entregando as rédeas do governo para uma
entidade distinta: Jesus. E visitar igrejas evangélicas nas cidades-satélites
da Capital Federal.
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A narradora compartilha a perplexidade em tentar compreender como
a política nacional, cujo centro é uma cidade planejada pelos princípios da
racionalidade da arquitetura e urbanismo modernos, foi cooptada pela religião.
Como um país que promulgou uma das constituições “mais progressistas do
planeta”, viu o debate público dos grandes temas nacionais se tornar irracional
ao ser absorvido pela fé. Gerando a cismogênese que cliva qualquer consenso
público.
O documentário mostra imagens de arquivo da construção de
Brasília, Niemayer e Lúcio Costa, a vista área da Praça dos Três Poderes que
criou “um triângulo perfeito com cada poder em um vértice, e a separação de
Igreja e Estado”.
Apocalipse nos Trópicos vai
acompanhar a gênese daquilo que Petra Costa define como “uma das mudanças
religiosas mais rápidas da história da humanidade”, na qual em poucas décadas
os evangélicos cresceram de 5% para mais de 30% da população brasileira.
E começa na ditadura militar com o grupo de lobby americano
chamado A Família (The Family) que enviou missionários americanos para o
Congresso Brasileiro para evangelizar congressistas desde os anos 60.
Missionários americanos iam ao Congresso sob a aparência pública dariam
curso de inglês para os parlamentares, quando na verdade eles queriam evangelizar
congressistas brasileiros. A portas fechadas eram cafés da manhã que se
transformavam em verdadeiros estudos da Bíblia.
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Eles faziam “cafés da manhã de oração nacional”, que duraram todo
período da ditadura militar, além de um programa de envio de milhares de
missionários americanos.
Cujo ponto alto são as imagens de 1974 do “maior evento de
evangelização do mundo” com o pastor Billy Graham em um culto realizado no
Maracanã lotado. Que o governo ditatorial tornou obrigatória a transmissão ao
vivo pela TV.
Da Teologia da Libertação à Teologia do Domínio
Por que tudo isso? Segundo o documentário para conter o avanço da
Teologia da Libertação na Igreja Católica. Pelo menos foi o que pensaram Herry
Kissinger, que era o secretário de Segurança americana e de Relações
Exteriores, e outras pessoas do governo americano.
Apocalipse nos Trópicos é incisivo
ao mostrar que não era uma mera tomada de posição em um mercado religioso. Mas
algo muito maior: a tomada de assalto do Estado por um pensamento religioso bem
específico. Principalmente, favorável à geopolítica norte-americana.
E isso passava pela reconfiguração da imagem de Jesus. Dessa vez,
adaptada ao viés apocalíptico de uma “guerra espiritual no fim dos tempos”.
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E quando detalhes de pinturas medievais do Apocalipse se tornam
mais insistentes, dando um ritmo mais frenético na montagem das imagens.
Principalmente nas entrevistas com o pastor Silas Malafaia,
apresentado no documentário quase como um operador político de Jair Bolsonaro,
exortando os milhões de fiéis a votarem no “ungido” para enfrentarmos o “fim
dos tempos”.
Como foi possível essa mudança radical de Jesus? Afinal, sempre
associamos o enviado de Deus com o perdão, a compaixão e o amor. E não como um
guerreiro implacável com uma espada flamejante.
O documentário dá uma interessante informação histórica sobre o
protestantismo.
Em 1827, um jovem pastor irlandês, John Nelson Darby, virou essa ideia de ponta-cabeça. Eu jamais teria imaginado seu efeito profundo na política brasileira. Abalado pelo Iluminismo, Darby leu o Livro do Apocalipse como ninguém tinha lido antes. Da mais racional e literal possível. Para ele, fazia todo sentido que esse mundo depravado devesse enfrentar a ira final de Deus. As coisas continuariam piorando até a chegada do apocalipse. Então, não havia motivo para desejar e promover a paz. Seus ensinamentos eletrizaram o pensamento evangélico, dando origem a um movimento fundamentalista que acreditava que, quanto pior as coisas ficassem na Terra, mais rápido seria o retorno de Jesus.
O que Petra Costa descreve aqui é uma importante transformação no movimento evangélico: da Teologia da Prosperidade (cujos efeitos políticos eram apenas residuais) para a Teologia do Domínio, na qual a religião é explicitamente direcionada para a política, transformada em batalha espiritual.
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E que acompanhou Bolsonaro para dentro do Estado.
Esse novo Jesus não ama mais a paz e o amor. Jesus agora é
belicoso: quanto pior melhor, para acelerar o retorno Dele para esse planeta.
Quem explica a Teologia da Dominação é o onipresente Malafaia a
certa altura do documentário:
Uma teologia que prega que cristãos devem controlar todos os aspectos da sociedade. No Novo Testamento, a prostituta da Babilônia aparece sentada no topo de sete montes. Que, para eles, representam todas as áreas da cultura, economia e governo da nação. Eles dizem que cristãos precisam tomar esses montes das forças malignas. Um por um. Com essa eleição, eles começam a cumprir a sua própria profecia. Escalando até o topo o monte mais instável. O monte da política.
Nesse momento, o documentário corta para mostrar imagens do caos
em Manaus durante a pandemia da COVID-19. Mortos e caixões saindo de hospitais
pela falta de oxigênio nas unidades de saúde e a inoperância logística do
Ministério da Saúde no Governo Bolsonaro. Fazendo o número de mortos
ultrapassar a China.
E imagens em vista aérea de dezenas de covas sendo abertas em um
cemitério, com enterros em série facilitados por tratores.
Sugerindo que, para a bizarra teologia fundamentalista, o
coronavírus nada mais era do que um sinal do fim dos tempos e da vinda de
Jesus.
Dando sentido à bravata de Jair Bolsonaro diante de jornalistas:
“Lamento. Quer que eu faça o que? Eu sou Messias, só não faço milagres”.
Porque, como mostra o documentário, principalmente nas falas
enlouquecidas de Malafaia no púlpito, o verdadeiro inimigo nessa guerra do fim
dos tempos são os “esquerdopatas”.
Por isso, mais do que os quatro evangelhos canônicos, o Livro do
Apocalipse é o livro chave para todo o movimento fundamentalista, evangélico e
neopentecostal. Porque a guerra leva à paz, à liberdade. Lembrando a Novilíngua
de George Orwell em 1984.
Assistir ao documentário Apocalipse nos Trópicos, tendo
ainda em mente as imagens de Democracia em Vertigem, é compreender como
essa teologia fundamentalista baseada no Apocalipse teve um crescimento tão
rápido e deletério na política nacional: para o mercado financeiro, o
aceleracionismo do Apocalipse (o “quanto pior, melhor”) só estimula as práticas
disruptivas de enriquecimento rápido. Niilismo e financeirização estão juntas
no imaginário de um novo tipo de investidor - o pós-meritocrático.
E para a grande mídia, parece que esse fundamentalismo teológico
compartilha do mesmo princípio do imaginário midiático: o da presunção da
catástrofe.
Ficha Técnica |
Título: Apocalipse
nos Trópicos |
Diretor: Petra
Costa |
Roteiro: Petra Costa,
Alessandra Orifino, David Barker |
Elenco: Petra Costa, Jair Bolsonaro,
Silas Malafaia, Lula, Henry Kissinger |
Produção: Busca Vida Filmes,
Impact Partners |
Distribuição: Netflix |
Ano: 2024 |
País: Brasil |