quinta-feira, julho 17, 2025

Turismo e os dejetos humanos e da civilização no documentário 'Desastre Total: Cruzeiro do Cocô'

 


A indústria do turismo promete para seus clientes experiências renovadoras, alegria, aventura e diversão. Para fugirem de suas rotinas cinzentas. Mas às vezes descobrimos, da pior maneira possível, que não importa o quão distante nós vamos. Carregamos conosco as mazelas da civilização. É o que nos revela o documentário Netflix “Desastre Total: Cruzeiro do Cocô” (Trainwreck: Poop Cruise, 2025): em 2013 um navio de cruzeiro (com mais de 4 mil pessoas e treze andares) ficou sem energia após um incêndio na casa das máquinas. À deriva no Golfo do México, estarrecidos, passageiros e tripulantes viram excrementos humanos tomando corredores e escorrendo paredes abaixo: sem energia, simplesmente o sistema de esgotos deixou de funcionar. De repente, o navio de cruzeiro virou o microcosmo de tudo aquilo do qual queremos fugir viajando: dos excrementos, sejam humanos ou sociais – lixo, pobreza ou, simplesmente, o outro. Até a mídia descobrir e tudo virar um show de horrores sensacionalistas e uma catástrofe de relações públicas.

Por que viajamos? Para fugir da rotina cinzenta do dia a dia? Para encontrar em lugares distantes um propósito para a vida?  Para sentir a adrenalina da aventura que a rotina do escritório não deixa? Ou para conhecer lugares e pessoas que ainda não foram contaminadas pelos vícios das grandes cidades?

Seja qual for a resposta, a indústria do turismo parece corresponder a todas elas. Promete a seus clientes oportunidades de renovação, alegria e aventura. Mas nada que fuja do controle, já que o turista é, acima de tudo, um consumidor – entidade de status jurídico, garantido por direitos legais.

A questão é que essa indústria é repleta de contradições: tem que prometer aventuras, mas seguras; promete levá-lo a mundos selvagens e intocados, mas com toda infraestrutura para garantir uma experiência prazerosa; promete levá-lo a passeios em mares e terras distantes, mas levando consigo os serviços privilegiados do pacote turístico que você pagou.

Esse é o ponto. O turista quer fugir da civilização. Mas a arrasta consigo, não importa para onde vá.

Primeiro, arrasta o pressuposto da privada, conceito cunhado pelo sociólogo norte-americano Philip Slater no livro “Em Busca da Solidão” (Zahar, 1977): a prática na sociedade de acreditar que se eliminar tudo aquilo que é incômodo, ele desaparece. Assim como quando apertamos o botão da descarga do vaso de um banheiro.

Aterros escondem o nosso lixo. Imensos recursos hídricos substituem o que sujamos. O ar poluído é empurrado para longe. Mas também, socialmente, banimos indígenas para reservas, pobres e sem tetos são escondidos em abrigos municipais, enquanto as desigualdades sociais são encobertas pela publicidade e indústria do entretenimento. Logicamente, o psiquismo vai se estruturar por esse mesmo pressuposto: o botão da descarga é todo o aparato fármaco de pílulas ou drogas (legalizadas ou não) para simplesmente esquecermos ou ficarmos amortecidos.



Segundo, leva consigo a ideologia da indústria turística que transforma em mercadoria a promessa de que encontraremos a “aventura”, o “original”, o “único”, o “intocado”, o “elementar” na viagem que promete a quebra da nossa cinzenta rotina (veja ENZENSBERG, Hans Magnus, “Uma Teoria do Turismo”, In: Com Raiva e Paciência, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985).

A história de 2013 do navio de cruzeiro “Carnival Triumph”, cuja casa de máquinas pegou fogo no meio do Golfo do México, levando ao corte de energia do navio (deixando mais de 4.200 passageiros e funcionários presos por cinco dias longos, quentes e cada vez mais fétidos, após o mau funcionamento das descargas dos vasos sanitários) revela todas essas contradições de uma sociedade que não consegue escapar de si mesma.

Uma história contada pelo documentário Netflix Desastre Total: Cruzeiro do Cocô (Trainwreck: Poop Cruise, 2025), com toques de humor e de consternação de uma típica catástrofe de marketing e relações públicas de uma indústria em um nicho do turismo: o nicho dos navios de cruzeiro que nos prometem levar a ilhas, praias paradisíacas e experiências renovadoras.

O “Triumph”, que deveria navegar de Galveston, Texas, para Cozumel, México, sofreu um incêndio elétrico que desligou o motor e o ar-condicionado. E depois, a inacreditável “crise do cocô”: os sanitários elétricos deixaram de funcionar. Este foi definitivamente um problema para os milhares de passageiros e tripulantes a bordo. 



Um comunicado de imprensa inicial transmitiu a notícia de um incêndio a bordo do cruzeiro, mas estava sob controle. Um navio de cruzeiro à deriva no Golfo do México, sem potência do motor: interessante, infeliz, mas ainda não era matéria-prima para manchetes sensacionalistas.

Até o momento em que passageiros conseguiram começar a ligar para a imprensa através de sinais de wi-fis que conseguiam capturar de outros navios que passavam por perto. E começaram a relatar o desespero gerado pela crise dos dejetos humanos transbordantes que ocupavam corredores e cabines. Principalmente quando o navio se inclinava, pelas ondas ou por tentativas de rebocadores resgatá-lo para o porto mais próximo.

Voilà! A grande mídia tinha finalmente o gancho necessário para fazer as manchetes subirem à cobertura nacional: o “Cruzeiro do Cocô”.

 Crise que não fez apenas os dejetos transbordarem. Mas também essas contradições da indústria do turismo e, principalmente, como carregamos as mazelas da civilização junto conosco. Não importa o quão distantes vamos. Literalmente, o imaginário do pressuposto da privada de Philip Slater veio à tona – de forma crua, a crise do cruzeiro revelou aquilo que a sociedade quer esconder de nós: os dejetos e os outros.

O turista-consumidor foi atingido no seu direito principal: o direito de viajar para fugir de si mesmo.

O Filme

A história é contada em parte por meio de imagens de arquivo de notícias, das quais há muitas, porque, como disse um repórter: "Às vezes, surgem aqueles cenários que simplesmente chamam a atenção de todos".

Um navio de cruzeiro de 13 andares e 272 metros de comprimento – "um arranha-céu flutuante" – cheio de merda é um deles. A ele se juntam depoimentos de testemunhas oculares e olfativas de pessoas como Larry e sua filha Rebekah, que estavam lá para escapar do estresse do recente divórcio dos pais dela; Devin, a bordo com sua noiva e seus futuros sogros; a diretora de cruzeiro Jen; a bartender Hannah; o chef Abhi; e, o mais glorioso, Ashley, uma noiva, e Kalin e Jayme, suas duas solteiras. Doze anos depois, parece que nenhum deles ainda se conformou com a experiência.



Assim que a notícia do mau funcionamento do banheiro foi anunciada, seguiu-se um plano de contingência: fazer xixi nos chuveiros e fazer o que a maioria das pessoas no documento chama de “o Número 2” em pequenos sacos vermelhos de risco biológico. Nunca você ouvirá tantas pessoas falarem sobre evacuações com tantos eufemismos infantis.

Ninguém parecia gostar da ideia da bolsa. Alguns optaram por tomar comprimidos que prendessem o intestino. Outros seguiram o caminho do sorriso envergonhado e segurar a vontade.

Assim que as bebidas grátis começaram a fluir (uma tentativa do capitão para levantar o astral), alguns foliões bêbados jogaram os sacos vermelhos cheios de fezes ao mar. Enquanto isso, outros tentaram usar os banheiros fora de serviço, piorando ainda mais.

Abhi, um chef de cozinha do “Triumph” com o hábito de dizer o tempo todo que as coisas estavam “fucked up,” descreve o horror do banheiro: “As pessoas estavam fazendo cocô em cima do papel higiênico, então fazendo cocô em cima disso. Era camada após camada e após camada. Era como uma lasanha.” No final do documentário, ficamos sabendo que o pobre Abhi “nunca mais olhou para uma lasanha da mesma maneira.”



Dois eventos fizeram o problema piorar: para a empresa de cruzeiro, quando passageiros capturaram o sinal de wi-fi de navios que passavam e conseguiram avisara à imprensa o horror da situação, transformando tudo numa catástrofe de relações públicas. Para os passageiros, quando apareceram os rebocadores para conduzir o navio até a costa, fazendo-o inclinar bruscamente e o esgoto acumulado começar a escorrer por todos os andares e pelas paredes.

Mas o pior ainda estava por vir: quando a ordem social desapareceu em grande parte do Triumph. Então, o espectro da anarquia pairou sobre o “Cruzeiro do Cocô” - Arremessos de sacos de fezes uns sobre os outros, relações sexuais praticadas a céu aberto, xixi (ou “fazer o No. 1,” se preferir) na lateral do convés. Roubo e acumulação de comida em barracas improvisadas no convés e defendidas com unhas e dentes. Enquanto isso os passageiros brigavam por causa de espreguiçadeiras e pelas metragens quadradas do convés. 

O problema é que os dejetos e o cheiro fétido ocuparam todos os corredores e cabines dos treze andares do navio. Só sobrou o convés, para ser disputado a tapas por todos.

Paradoxalmente, mais movido por desespero do que por convicções teológicas, formou-se um grupo de estudos da Bíblia, onde as pessoas entoavam hinos de louvação a Jesus, clamando pelo perdão como se estivessem encomendando a alma à beira do final apocalíptico. Arrependam-se, turistas do Cruzeiro do Cocô!

A Carnival gastou 115 milhões de dólares limpando, consertando e adaptando o “Triumph”. A embarcação agora se chama “Carnival Sunrise”, caso o leitor queira reservar passagem.      

E os passageiros receberam reembolso total, despesas de transporte e pagamento de 500 dólares. Também receberam um cruzeiro gratuito. 

A grande lição de Desastre Total: Cruzeiro do Cocô é como a indústria do turismo não entrega (a não ser pela via publicitária) aquilo que promete: uma experiência totalmente outra em terras intocadas, únicas, originais etc. Mesmo que o cruzeiro chegasse ao seu destino, a Ilha de Cozumel, México, a estética mercadológica do “Exótico” e do “Diferente” encobriria a mesmice de recantos cercados de infraestrutura hoteleira cenográfica. Lugares para onde vamos querendo que confirmem as fotos dos folders que recebemos ao pagar pelo pacote turístico.

Lugares que, principalmente, perpetuem o pressuposto da privada: que desejos humanos e sociais (pobreza, desigualdade, criminalidade, violência etc.) sejam tirados na nossa vista ao apertar um botão de descarga em um banheiro.

A catástrofe do Cruzeiro Triumph apenas criou uma situação irônica e inacreditável: como uma jornada de cruzeiro revelou aquilo do qual todos queremos fugir – os excrementos biológicos e sociais que a civilização excreta.


 

 

Ficha Técnica


Título:  Desastre Total: Cruzeiro do Cocô

Diretor: James Ross.

Roteiro: James Ross

Elenco: Devin Marble, Larry Poret, Rebekah Poret

Produção: BBH Entertainment, RAW

Distribuição: Netflix

Ano: 2025

País: EUA

 

 

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