Um casal discute no meio da noite. Uma história de grande perda, mágoas e incomunicabilidade. Ela pega sua mala, abre a porta do apartamento para sair da vida dele, mas encontra uma estranha barreira entre ela e seu futuro: um muro escuro e fosco com tijolos irregulares e estranhas propriedades magnéticas. E o que é pior: todo o prédio foi cercado por esse muro. Todas as janelas e saídas foram bloqueadas, sem que ninguém percebesse. Eles e todos os moradores do prédio terão que encontrar a saída e resolver o mistério. A produção Netflix alemã “Brick” (2025) vai na esteira de filmes quebra-cabeças “scape room”, como “Cubo” ou “Jogos Mortais”, com uma pressuposta vibe estilo Matrix. Mas, principalmente, “Brick” é um thriller tecnológico cujo muro é uma metáfora da insegurança alemã pela ascensão do neonazismo no país, além da insegurança da própria Europa com a Guerra Fria 2.0 com a Rússia.
Alemanha pode ser considerado o país que o foi ponto nevrálgico
das transformações do Capitalismo no século passado. Deu a resposta ao crash de
1929 com o erguimento de uma economia industrial-militar de pleno emprego do
nazismo nas décadas de 1930-40. Depois da derrota na Segunda Guerra Mundial,
ergueu o Muro de Berlim para o Ocidente iniciar a Guerra Fria contra a União
Soviética, o outro vencedor da Guerra. Para depois derrubá-lo em 1989 e unificar
o país, em outra transformação: a Globalização.
Agora a Alemanha reflete o medo do recente renascimento do
fascismo de direita e o neonazismo no país. E aquele muro assume um significado
totalmente novo com os movimentos anti imigratórios e a xenofobia.
Associe esse zeitgeist ao mistério recorrente no cinema em jogar
um pequeno elenco de personagens em uma caixa, trancar a porta e vê-los
trabalhar juntos (ou se desfazerem) tentando escapar, e terá o thriller
tecnológico da Netflix alemã Brick (2025), um filme que claramente vai
na esteira de filmes como Escape Room, Jogos Mortais ou o quebra-cabeças de
ficção científica Cube.
A fórmula pode parecer simples: um mistério platônico, aparentemente
metafísico, e um elenco de personagens prisioneiros que parecem desajustados
demais para resolver o enigma. Mas, como ficção científica, trabalha com um
arquétipo gnóstico antiquíssimo: a relação existencial com um mundo que, de
repente, descobrimos ser uma prisão. Sem sabemos o porquê termos sido
condenados a esse encarceramento.
Brick reflete
esses dos elementos, transformando-se numa espécie de thriller tecnofascista –
há no mistério de um casal em crise conjugal que descobre que, do nada, um muro
hightech levantou-se mantendo-os prisioneiros em um apartamento, uma
ambiguidade que só se estende ao longo da narrativa: Ets? Invasão alienígena? Terceira
Guerra Mundial? Uma conspiração do Estado Profundo? Uma conspiração de uma Big
Tech de nano segurança? Uma medida protetiva para algum tipo de contaminação
que está ocorrendo lá fora? Ou apenas a metáfora da incomunicabilidade de um casal
em crise?
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Um casal, morador na cidade de Hamburgo, Alemanha, que teve uma
terrível perda no passado, cujo casamento não conseguiu se recuperar, em meio a uma discussão de divórcio descobre que todas as janelas e a porta do apartamento estão
bloqueadas por uma parede preta fosca tesselada, feita de tijolos irregulares,
em que picaretas e furadeiras não obtêm qualquer efeito. E até mesmo tem
propriedades perigosamente magnéticas – atrai metais, para depois repeli-los
como se fossem balas disparadas de um revólver.
Eles descobrem-se como se estivessem sepultados naquele
apartamento. Restando apenas a alternativa arrombar uma parede e entrar em
outro apartamento, o que permitirá ao filme a inclusão progressiva de mais
personagens no mistério.
Cada personagem inédito traz algo de novo à mistura,
posicionando-se no espectro entre cauteloso e impetuoso, pensativo e
entusiasmado. A história do diretor e roteirista Philip Koch sugere que eles
estão presos em uma "sala de escape distorcida" ou em algum
multiverso semelhante a Matrix, e de fato há ecos de outros filmes,
desde O Cubo (1997), de Vincenzo Natali, até Vivarium (2019),
de Lorcan Finnegan. Há até mesmo alguma reflexão sobre se a parede de tijolos
não os está mantendo dentro, mas sim mantendo fora de alguma ameaça
desconhecida.
É uma premissa Além da Imaginação, mas que certamente
reflete a instabilidade e a insegurança de uma nação que, mais uma vez, está às
portas de uma nova Guerra Fria na Era Trump: o avanço militar russo na Guerra
da Ucrânia, os aumentos de investimentos militares dos países que compõem a
OTAN e a sensação de o país estar no centro de uma encruzilhada geopolítica.
Mas também Brick reflete um subgênero que cresceu nos
tempos de lockdown da COVID-19. Com as medidas de segurança de isolamento
social, filmar em um único local se tornou um método muito econômico de fazer
filmes (ou até mesmo séries inteiras).
Lançamentos recentes como Evil Dead Rise, Sinners, Carry-On e Bramayugam provaram
que há muito o que fazer em um só lugar. Acabam se tornando um excelente
exercício de roteiro que trabalha coma limitação espacial. Enquanto outros
roteiros, como o do clássico Depois de Horas (After Hours, 1985)
exploram as possibilidades da limitação temporal – no caso do filme de Scorsese,
tudo ocorre em uma noite-madrugada.
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O Filme
Brick começa com Koch plantando na
narrativa o que pode ou não ser uma pista preliminar do que está por vir – uma
extensa obra em todo o prédio, central da ação, está chegando ao fim, e nuvens
de fumaça densa e cinzenta pairam no céu distante, marcando um incêndio em
HafenCity em uma grande empresa de nano segurança, Nanotech, perto de Hamburgo.
O diretor de fotografia Alexander Fischerkoesen confere a essa cena externa uma
qualidade onírica e grandiosa, com a luz ofuscante e as cores vibrantes.
Lembrando as cenas abertas do filme Vivarium, que dá uma estranha
sensação de estarmos vendo um quadro do pintor surrealista Magritte.
O filme conta a história de Tim (Matthias Schweighöfer) e Liv (Ruby
O'Fee), um casal de Hamburgo casado há quase 7 anos. Mas, depois que Liv sofreu
um aborto espontâneo, Tim a excluiu completamente de sua vida e dedicou todas
as suas horas de vigília ao desenvolvimento de seu jogo – Tim é um programador
designer de jogos.
Mesmo assim, Liv tentou reacender o que haviam perdido, pedindo a
Tim que fizessem uma viagem de carro a Paris. Sem perceber que seu casamento
estava em declínio, Tim decidiu priorizar o trabalho em vez da esposa mais uma
vez.
Então, na calada da noite, Liv decide fazer as malas e partir com
o objetivo de recomeçar sua vida. Tim tenta impedi-la, mas ela não está com
vontade de ouvi-lo. Abre a porta do apartamento para sair da vida dele, mas encontra
uma estranha barreira entre ela e seu futuro – a parede preta fosca. Como o
prédio estava em reforma, eles presumem que seja algum tipo de camada protetora
para proteger os moradores de perigos. Dito isto, quando percebem que o muro é
impenetrável e com misteriosas propriedades magnéticas, começam
a suspeitar que estão diante de um fenômeno que a humanidade nunca tinha visto
antes.
Liv é arquiteta, capaz de identificar que o material daquele paredão
é absolutamente desconhecido. Seria algum tipo de ataque alienígena?
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Arrombar uma parede e entrar em outro apartamento liberta a
história de seu cenário claustrofóbico inicial e permite que o diretor-roteirista
Koch introduza outros personagens. Entre eles, estão um casal apaixonado e
drogados Marvin (Frederick Lau, trazendo um alívio cômico na história) e Ana
(Salber Lee Williams); o idoso Oswalt (Axel Werner) e sua neta Lea (Sira-Anna
Faal); e o policial Yuri (Murathan Muslu, com uma aparência suspeita como se
soubesse o que está acontecendo).
A designer de produção Theresa Anna Ficus define habilmente o tom
de cada novo apartamento, com, por exemplo, o extravagante ninho de amor de
Marvin e Ana, todo roxo e neon.
Brick avança em ritmo acelerado,
adotando alguns dos moldes de filmes-catástrofe clássicos como A
Aventura do Poseidon (1972), enquanto aguardamos a próxima revelação e
o último desafio, e descobrimos quem sobreviverá – as propriedades magnéticas
do muro negro escondem capacidades de autoproteção, que coloca em risco aqueles
que tentam de alguma forma descobrir uma saída.
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O comportamento de Yuri é cada vez mais suspeito: seu olhar
furioso e físico musculoso, além da
insistência em tentar convencer a todos de que o muro é necessário para manter
todos seguros de algum perigo incerto lá fora. Além de tentar destruir os papéis
de cálculos matemáticos que Friedman (Alexander Beyer) fez a respeito da
distribuição espacial dos encaixes dos tijolos irregulares do muro. Ele parece
ter criado algum tipo de aplicativo que sirva de chave.
Todos conhecem Friedman morto (supostamente, vítimas das
propriedades magnéticas do muro), mas eventualmente Yuri será um suspeito de
tentar matá-lo.
O que fica evidente em Brick é como o Muro é tanto real
como metafórico. Pelas suas propriedades e pela forma repentina como surgiu,
cercando todo o prédio, o muro tem características nano tecnológicas –
sugerindo que sua natureza é bem terrena, ao invés de alienígena – referências a
uma grande empresa chamada Nanotech, uma Big Tech supostamente envolvida com o “Estado
Profundo” é para fazer o espectador começar a coçar a cabeça.
Mas também o muro nano tecnológico funciona como metáfora.
Primeiro, a incomunicabilidade do casal Tim e Liv que não se recuperou da perda
da filha. Tim, um workaholic, acabou se afundando no trabalho. Deixando Liv
sozinha para assimilar o trauma.
Além disso, a crise força o casal Tim e Liv interagir com vizinhos
que mal conheciam. É necessário derrubar paredes para conhecê-los. Uma metáfora sobre a “multidão solitária”
(David Riesman) que as grandes cidades geram.
E, de mais a mais, “muros” é um tema recorrente na retórica
política atual. Dos muros separando os EUA do México sempre cogitado pelo
presidente Donald Trump para frear uma suposta onda de imigrantes ilegais, ao
medo crescente na Europa pela conflagração de uma guerra aberta entre OTAN e a
Rússia no cenário da Guerra da Ucrânia.
Principalmente a Alemanha, que ainda vê a ascensão de partidos de
extrema-direita fascistas nas últimas eleições.
Ficha Técnica |
Título: Brick |
Diretor: Philip
Koch |
Roteiro: Philip Koch |
Elenco: Matthias Schweighöfer, Ruby
O. Fee, Frederick Lau, Salber Lee Williams |
Produção: Nocturna Productions,
W&B Television |
Distribuição: Netflix |
Ano: 2025 |
País: Alemanha |