sexta-feira, julho 25, 2025

O brutal cinema sul-coreano da luta de classes em 'Meus 84 m2'

 


O cinema e audiovisual sul-coreano é brutal: conta histórias de vinganças numa sociedade marcada pelo abismo social e movida a ressentimento e humilhação. Com uma cultura que reflete a rápida ocidentalização com o K-Pop e a neopentecostalização. A produção Netflix da Coréia do Sul “Meus 84 m2” (84 Jegopmeteo, 2025) é mais um filme de uma extensa lista dessas histórias sobre luta de classes.  Trabalhando como assistente de gerente em algum labirinto corporativo, um jovem investe todas as suas economias para comprar um pequeno apartamento no Centro de Seul, símbolo do sucesso da classe média. Três anos depois, ele está um caco, afogado em dívidas, fazendo malabarismos com empregos precarizaods, ignorado pelos bancos e caindo em um golpe de criptomoedas. Até descobrir que as paredes guardam ruídos perturbadores, vizinhos hostis e segredos inquietantes.

O cinema e audiovisual sul-coreanos é brutal. Esta é uma conclusão a que chegou esse humilde blogueiro depois de assistir ao filme premiado com o Oscar, Parasita, passando pela série Round 6.

Basta dar uma olhada nos filmes e séries produzidos na Coréia do Sul, disponíveis nas plataformas de streamings, para o leitor descobrir as recorrências temáticas como vingança, desigualdade social, humilhação, ressentimento, luta de classes etc. Quase sempre terminando com sequências que consistem basicamente em explosões emocionais sangrentas quando a verdade por trás das aparências e ilusões é jogada na cara de todos.

A produção Netflix Sul Coreana Meus 84 m2 (84 Jegopmeteo, 2025) não deixa por menos e entra nessa já longa lista de produções recentes: a série A Lição (2022), Doce Engano (2025), Esperando por Você (2016), Vicenzo (2013) entre outros.

Para começar, o título do filme se refere à metragem média de apartamentos de classe média na capital Seul - vendidos como símbolo de sucesso, mas o que se acaba encontrando é uma bomba relógio de endividamento de hipotecas sobre hipotecas. Ou de dívidas sendo pagas com mais dívidas, principalmente com a ilusão pós-meritocrática de enriquecer rapidamente com criptomoedas.

Em seu primeiro longa-metragem de 2023, Unlocked , o roteirista e diretor Kim Tae-joon usou a premissa de um jogo de gato e rato com um serial killer para expor nossa dependência moderna dos smartphones. Já nesse thriller psicológico da Netflix 84 m2, o cineasta coreano foca sua direção na vida moderna em apartamentos. Parte do mesmo pano de fundo cultural de Round 6 e Parasita, fazendo uma parábola moderna sobre as mazelas da ambição e luta de classes.



Quando Noh Woo-sung (Kang Ha-neul) raspa todo o seu dinheiro das suas economias, além de contrair dívidas, para comprar um apartamento no notoriamente competitivo e especulativos mercado imobiliário de Seul, ele acredita que este é o próximo passo rumo a uma vida bem-sucedida e status. Três longos anos depois, ele se sente miserável. Trabalhando em dois empregos (num escritório corporativo durante o dia e como entregador de aplicativo à noite) para mal conseguir pagar a hipoteca, a exaustão física e mental de Woo-sung é exacerbada pelos barulhos que ouve através das paredes dos apartamentos vizinhos.

A Coréia do Sul é conhecida como “a república dos apartamentos”. Vizinhos barulhentos incômodos são uma questão significativa em um país onde 75% vivem em prédios co-residenciais com paredes de concreto misturado com menos de 30 cm de largura, que não abafam completamente os sons do dia a dia.

O número de reclamações anuais sobre ruído entre apartamentos registradas no Centro de Relações de Vizinhos, administrado pelo Estado, aumentou de 8.795 em 2012 para 36.435 em 2023. O problema do ruído entre apartamentos em prédios de apartamentos em Seul tornou-se um problema tão grave que o Ministério de Terras, Infraestrutura e Transporte anunciou que autorizaria a conclusão das construções somente quando os novos edifícios residenciais passassem no teste de qualificação sonora. 

Hoje, um quinto das famílias coreanas possui 91% das terras privadas do país, com os 50% das famílias mais pobres possuindo menos de 1%. A maioria das pessoas que possuem propriedades é considerada "pobres com moradia", termo usado para pessoas cuja renda é destinada principalmente a custos de moradia.

O gerente de Woo-sung usa esse termo para descrever nosso protagonista no início do filme. É um problema grave na Coréia, onde os imóveis representavam 79% do patrimônio médio das famílias proprietárias de suas casas em 2024. 

84 m2 levanta essa questão: você escolheria morar num apartamento, um símbolo da classe média e da vida moderna, pela chance de enriquecer — mesmo que isso o leve à loucura? Ou escolheria retornar à vida mais simples e tradicional do campo (como sugerida ao final do filme), onde tudo é tranquilo, mas não há esperança de ascensão social?



O filme revela um traço marcante da chamada Geração Z (os nativos digitais multitarefas e imediatistas): a pós-meritocracia – um jovem buscando a ascensão social no mercado especulativo imobiliário de Seul e que vê nas especulações em criptomoedas e jogos on lines (o que acabam se tornando a mesma coisa) uma oportunidade de fazer dinheiro rápido para realizar uma complexa engenharia financeira de venda e recompra do apartamento para poder se livrar das dívidas impagáveis.

O diretor e roteirista Kim Tae-joon usa a crise imobiliária de Seul como oportunidade para discutir outros temas e metáforas como a precarização do trabalho e da própria vida, o apartamento como prisão da vida moderna, o significado dos barulhos dos vizinhos que atormentam o protagonista, e a sensação de estar metido em uma conspiração e a paranoia que a busca pós-meritocrática de riqueza acaba gerando.

O Filme

Trabalhando como assistente de gerente em algum labirinto corporativo, Woo-sung investe todas as suas economias para comprar um pequeno apartamento em um condomínio pré-fabricado no coração de Seul. Ele acha que encontrou o sucesso, um emprego estável, uma noiva e o sorriso orgulhoso de sua mãe. Três anos depois, ele está um caco, afogado em dívidas, fazendo malabarismos com empregos, ignorado pelo banco e caindo em um golpe de criptomoedas.

Então começa o barulho constante e enlouquecedor. Ele não consegue dizer se é do apartamento de cima ou de baixo, simplesmente não para. Isso o mantém acordado à noite e o desgasta. Ele tenta de tudo para consertar.

Quem está causando o barulho entre os apartamentos? O principal culpado pela agitação no prédio é Yeong Jin-ho (Seo Hyeon-woo), um jornalista freelancer descontente que mora no apartamento 1501. Jin-ho busca vingança contra Jeon Eun-hwa (Yeom Hye-ran), uma ex-promotora que usou seu poder para acabar com uma reportagem em que Jin-ho estava trabalhando sobre a péssima construção do complexo de apartamentos. Agora, ela mora na luxuosa cobertura do prédio com o marido.



Uma reportagem justamente sobre a corrupção na especulação imobiliária em Seul. O que se segue é um jogo de vingança sangrento, arruinando a vida aparentemente perfeita de um homem que um dia sonhou com uma vida pacífica na capital do país – Woo-sung pode se tornar o bode expiatório do plano de vingança desse jornalista rancoroso.

O problema é que o plano de Jin-ho é tornar Woo-sung em um peão na sua vingança, transformando-o no principal suspeito dos baques e gritos misteriosos incomodam todos.

Isso aumenta para uma sensação gradual de insônia e paranoia. Os vizinhos acham que ele é o culpado, mas ele perdeu o controle da realidade. E esta primeira metade do filme é brilhantemente feita: consegue ser claustrofóbica, muito próxima, escura e desconfortável. A atmosfera mal iluminada apenas aumenta essa atmosfera de desconforto e ansiedade, infiltrando-se em você lentamente. Você vê o que o filme está tentando dizer: uma mensagem silenciosa sobre as pressões da propriedade, o desespero pelo sucesso que corrói você lentamente e um horror psicológico chocante.

É nessa primeira parte do filme que Kim Tae-joon desenvolve os principais simbolismos do filme:

a) O apartamento como prisão: O espaço que deveria ser um refúgio se transforma em um labirinto claustrofóbico de ruídos, suspeitas e vigilância. A arquitetura do prédio — com escadas e corredores estreitos — reforça a sensação de confinamento e vigilância constante.

b) Ruído como metáfora: O som misterioso que atormenta Woo-sung é mais do que um elemento de suspense. Ele simboliza o peso invisível das dívidas, da pressão social e da desconfiança entre vizinhos — todos sintomas de um sistema capitalista que desumaniza.



c) Conspiração e paranoia: À medida que Woo-sung investiga a origem dos ruídos, ele descobre uma rede de manipulação e vigilância que o transforma em bode expiatório — uma crítica à forma como o sistema usa os mais frágeis como escudos para proteger os poderosos.

Mas, embora o conceito seja brilhante, a única parte negativa de Meus 84 m2 é a segunda metade, que perde o ritmo e confunde o público sem nenhum motivo real por trás de cenas de ação e plot twists arbitrários.

Então, o filme perde força ao tentar amarrar todos os fios narrativos com reviravoltas excessivas e explicações didáticas. Mas, ao mesmo tempo, do thriller psicológico, Meus 84 m2 vai se tornando uma sátira comicamente sombria.

O filme reflete um ressentimento embutido na cultura pop do país. Alguns consideram que seria uma condição existencial de um país espremido entre duas potencias mundiais: China e Japão. Ou porque, mais do que o Japão (que por questões psicossociais conseguiu conciliar elementos culturais milenares com a moderna organização capitalista), sente os impactos no individualismo neoliberal dentro do rápido processo de ocidentalização – vide o K-Pop e o crescimento do neopentecostalismo numa cultura de origem budista e confucionista.


 

Ficha Técnica

Título:  Meus 84 m2

Diretor: Kim Tae-joon, Sharos S. Park

Roteiro: Kim Tae-joon

Elenco: Jennifer Aquino, Kang Ha-neul, Seo Hyun-woo, Yeom Hye-ran

Produção: MIZIFILM

Distribuição: Netflix

Ano: 2025

País: Coréia do Sul

 

 

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