O cinema e audiovisual sul-coreano é brutal: conta histórias de vinganças numa sociedade marcada pelo abismo social e movida a ressentimento e humilhação. Com uma cultura que reflete a rápida ocidentalização com o K-Pop e a neopentecostalização. A produção Netflix da Coréia do Sul “Meus 84 m2” (84 Jegopmeteo, 2025) é mais um filme de uma extensa lista dessas histórias sobre luta de classes. Trabalhando como assistente de gerente em algum labirinto corporativo, um jovem investe todas as suas economias para comprar um pequeno apartamento no Centro de Seul, símbolo do sucesso da classe média. Três anos depois, ele está um caco, afogado em dívidas, fazendo malabarismos com empregos precarizaods, ignorado pelos bancos e caindo em um golpe de criptomoedas. Até descobrir que as paredes guardam ruídos perturbadores, vizinhos hostis e segredos inquietantes.
O cinema e audiovisual sul-coreanos é brutal. Esta é uma conclusão
a que chegou esse humilde blogueiro depois de assistir ao filme premiado com o
Oscar, Parasita, passando pela série Round 6.
Basta dar uma olhada nos filmes e séries produzidos na Coréia do
Sul, disponíveis nas plataformas de streamings, para o leitor descobrir as
recorrências temáticas como vingança, desigualdade social, humilhação,
ressentimento, luta de classes etc. Quase sempre terminando com sequências que
consistem basicamente em explosões emocionais sangrentas quando a verdade por
trás das aparências e ilusões é jogada na cara de todos.
A produção Netflix Sul Coreana Meus 84 m2 (84 Jegopmeteo,
2025) não deixa por menos e entra nessa já longa lista de produções recentes: a
série A Lição (2022), Doce Engano (2025), Esperando por Você
(2016), Vicenzo (2013) entre outros.
Para começar, o título do filme se refere à metragem média de
apartamentos de classe média na capital Seul - vendidos como símbolo de sucesso,
mas o que se acaba encontrando é uma bomba relógio de endividamento de
hipotecas sobre hipotecas. Ou de dívidas sendo pagas com mais dívidas,
principalmente com a ilusão pós-meritocrática de enriquecer rapidamente com criptomoedas.
Em seu primeiro longa-metragem de 2023, Unlocked ,
o roteirista e diretor Kim Tae-joon usou a premissa de um jogo de gato e rato
com um serial killer para expor nossa dependência moderna dos smartphones. Já
nesse thriller psicológico da Netflix 84 m2, o cineasta coreano foca sua
direção na vida moderna em apartamentos. Parte do mesmo pano de fundo cultural
de Round 6 e Parasita, fazendo uma parábola
moderna sobre as mazelas da ambição e luta de classes.
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Quando Noh Woo-sung (Kang Ha-neul) raspa todo o seu dinheiro das
suas economias, além de contrair dívidas, para comprar um apartamento
no notoriamente competitivo e especulativos mercado imobiliário de Seul,
ele acredita que este é o próximo passo rumo a uma vida bem-sucedida e status.
Três longos anos depois, ele se sente miserável. Trabalhando em dois empregos (num
escritório corporativo durante o dia e como entregador de aplicativo à noite) para
mal conseguir pagar a hipoteca, a exaustão física e mental de Woo-sung é
exacerbada pelos barulhos que ouve através das paredes dos apartamentos
vizinhos.
A Coréia do Sul é conhecida como “a república dos apartamentos”.
Vizinhos barulhentos incômodos são uma questão significativa em um país
onde 75% vivem em prédios co-residenciais com paredes de concreto
misturado com menos de 30 cm de largura, que não abafam completamente os sons
do dia a dia.
O número de reclamações anuais sobre ruído entre apartamentos
registradas no Centro de Relações de Vizinhos, administrado pelo Estado,
aumentou de 8.795 em 2012 para 36.435 em 2023. O problema do ruído entre
apartamentos em prédios de apartamentos em Seul tornou-se um problema tão grave
que o Ministério de Terras, Infraestrutura e Transporte anunciou que
autorizaria a conclusão das construções somente quando os novos edifícios
residenciais passassem no teste de qualificação sonora.
Hoje, um quinto das famílias coreanas possui 91% das terras
privadas do país, com os 50% das famílias mais pobres possuindo menos de 1%. A
maioria das pessoas que possuem propriedades é considerada "pobres com
moradia", termo usado para pessoas cuja renda é destinada principalmente a
custos de moradia.
O gerente de Woo-sung usa esse termo para descrever nosso
protagonista no início do filme. É um problema grave na Coréia, onde os imóveis
representavam 79% do patrimônio médio das famílias proprietárias de
suas casas em 2024.
84 m2 levanta essa questão: você
escolheria morar num apartamento, um símbolo da classe média e da vida moderna,
pela chance de enriquecer — mesmo que isso o leve à loucura? Ou escolheria
retornar à vida mais simples e tradicional do campo (como sugerida ao final do
filme), onde tudo é tranquilo, mas não há esperança de ascensão social?
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O filme revela um traço marcante da chamada Geração Z (os nativos
digitais multitarefas e imediatistas): a pós-meritocracia – um jovem buscando a
ascensão social no mercado especulativo imobiliário de Seul e que vê nas
especulações em criptomoedas e jogos on lines (o que acabam se tornando a mesma
coisa) uma oportunidade de fazer dinheiro rápido para realizar uma complexa
engenharia financeira de venda e recompra do apartamento para poder se livrar
das dívidas impagáveis.
O diretor e roteirista Kim Tae-joon usa a crise imobiliária de
Seul como oportunidade para discutir outros temas e metáforas como a
precarização do trabalho e da própria vida, o apartamento como prisão da vida
moderna, o significado dos barulhos dos vizinhos que atormentam o protagonista,
e a sensação de estar metido em uma conspiração e a paranoia que a busca
pós-meritocrática de riqueza acaba gerando.
O Filme
Trabalhando como assistente de gerente em algum labirinto
corporativo, Woo-sung investe todas as suas economias para comprar um pequeno
apartamento em um condomínio pré-fabricado no coração de Seul. Ele acha que
encontrou o sucesso, um emprego estável, uma noiva e o sorriso orgulhoso de sua
mãe. Três anos depois, ele está um caco, afogado em dívidas, fazendo
malabarismos com empregos, ignorado pelo banco e caindo em um golpe de
criptomoedas.
Então começa o barulho constante e enlouquecedor. Ele não consegue
dizer se é do apartamento de cima ou de baixo, simplesmente não para. Isso o
mantém acordado à noite e o desgasta. Ele tenta de tudo para consertar.
Quem está causando o barulho entre os apartamentos? O principal
culpado pela agitação no prédio é Yeong Jin-ho (Seo Hyeon-woo), um jornalista
freelancer descontente que mora no apartamento 1501. Jin-ho busca vingança
contra Jeon Eun-hwa (Yeom Hye-ran), uma ex-promotora que usou seu poder para
acabar com uma reportagem em que Jin-ho estava trabalhando sobre a péssima
construção do complexo de apartamentos. Agora, ela mora na luxuosa cobertura do
prédio com o marido.
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Uma reportagem justamente sobre a corrupção na especulação
imobiliária em Seul. O que se segue é um jogo de vingança sangrento, arruinando
a vida aparentemente perfeita de um homem que um dia sonhou com uma vida
pacífica na capital do país – Woo-sung pode se tornar o bode expiatório do
plano de vingança desse jornalista rancoroso.
O problema é que o plano de Jin-ho é tornar Woo-sung em um peão na
sua vingança, transformando-o no principal suspeito dos baques e gritos
misteriosos incomodam todos.
Isso aumenta para uma sensação gradual de insônia e paranoia. Os
vizinhos acham que ele é o culpado, mas ele perdeu o controle da realidade. E
esta primeira metade do filme é brilhantemente feita: consegue ser
claustrofóbica, muito próxima, escura e desconfortável. A atmosfera mal
iluminada apenas aumenta essa atmosfera de desconforto e ansiedade,
infiltrando-se em você lentamente. Você vê o que o filme está tentando dizer:
uma mensagem silenciosa sobre as pressões da propriedade, o desespero pelo
sucesso que corrói você lentamente e um horror psicológico chocante.
É nessa primeira parte do filme que Kim Tae-joon desenvolve os
principais simbolismos do filme:
a) O apartamento como prisão: O espaço que deveria ser um
refúgio se transforma em um labirinto claustrofóbico de ruídos, suspeitas e
vigilância. A arquitetura do prédio — com escadas e corredores estreitos —
reforça a sensação de confinamento e vigilância constante.
b) Ruído como metáfora: O som misterioso que atormenta
Woo-sung é mais do que um elemento de suspense. Ele simboliza o peso invisível
das dívidas, da pressão social e da desconfiança entre vizinhos — todos
sintomas de um sistema capitalista que desumaniza.
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c) Conspiração e paranoia: À medida que Woo-sung investiga
a origem dos ruídos, ele descobre uma rede de manipulação e vigilância que o
transforma em bode expiatório — uma crítica à forma como o sistema usa os mais
frágeis como escudos para proteger os poderosos.
Mas, embora o conceito seja brilhante, a única parte negativa de Meus
84 m2 é a segunda metade, que perde o ritmo e confunde o público sem nenhum
motivo real por trás de cenas de ação e plot twists arbitrários.
Então, o filme perde força ao tentar amarrar todos os fios
narrativos com reviravoltas excessivas e explicações didáticas. Mas, ao mesmo
tempo, do thriller psicológico, Meus 84 m2 vai se tornando uma sátira
comicamente sombria.
O filme reflete um ressentimento embutido na cultura pop do país.
Alguns consideram que seria uma condição existencial de um país espremido entre
duas potencias mundiais: China e Japão. Ou porque, mais do que o Japão (que por
questões psicossociais conseguiu conciliar elementos culturais milenares com a
moderna organização capitalista), sente os impactos no individualismo
neoliberal dentro do rápido processo de ocidentalização – vide o K-Pop e o
crescimento do neopentecostalismo numa cultura de origem budista e
confucionista.
Ficha Técnica |
Título: Meus 84
m2 |
Diretor: Kim
Tae-joon, Sharos S. Park |
Roteiro: Kim Tae-joon |
Elenco: Jennifer Aquino, Kang Ha-neul,
Seo Hyun-woo, Yeom Hye-ran |
Produção: MIZIFILM |
Distribuição: Netflix |
Ano: 2025 |
País: Coréia do Sul |
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