terça-feira, julho 29, 2025

Morango do Amor é o amor da Sociedade do Cansaço


Lá em 2015, o hype da gourmetização invadiu festas juninas, com suas “releituras” dos “clássicos” populares, dentro da retórica do “artesanal” e do “rústico”. Era a época da guerra híbrida pré-impeachment, uma reação a ascensão da classe C. Dez anos depois acompanhamos um hype ainda mais radical: sai a maçã, entra o morango do amor!  Vídeos ensinando a receita, provando o doce e até memes sobre o assunto somam milhões de visualizações no Instagram e no TikTok. Nova releitura de um clássico popular? Só que dessa vez menos um movimento de guerra híbrida e muito mais um sismógrafo do zeitgeist do século XXI:  a Sociedade do Cansaço – a representação instagramável do amor na qual a maçã (o fruto mais carregado de simbolismos do Ocidente) é substituído pelo morango. A encenação intensiva do eu chega ao amor, mas com uma dinâmica psíquica carregada de simbolismos: o simbolismo do fruto, a natureza da cobertura, o ato de consumo e a fantasia de amor subjacente. Encenar o amor cansa!

Os leitores mais antigos desse Cinegnose devem lembrar das nossas observações sobre a gourmetização das festas juninas como operação psicológica na guerra híbrida brasileira que levou ao impeachment de 2016.

Como resposta ao crescimento da classe C e os seus novos hábitos de consumo em shoppings e aeroportos, o “raio gourmetizador” de uma classe média recalcitrante atingia quermesses e arraiais populares das festas juninas com uma complexa retórica dos “ingredientes” e das “harmonizações”, criando toda uma mitologia do “rústico”, do “artesanal” e do “nativo”: releituras de clássicos como pamonha, curau e pé de moleque, pipoca trufada, chocolate quente cremoso, cocadas brulée etc. – clique aqui.

Mas ainda a maçã do amor mantinha-se ilesa, livre da gourmetização. Se bem que, no final da onda das “releituras” dos clássicos populares, já estavam aparecendo versões gourmet da maçã do amor com cobertura de chocolate amargo...

Dez anos depois, no mês em que se comemoram as festas julinas, acompanhamos uma hype ainda mais radical: sai a maçã, entra o morango do amor!  Vídeos ensinando a receita, provando o doce e até memes sobre o assunto somam milhões de visualizações no Instagram e no TikTok.

A guloseima consiste em um morango envolto por brigadeiro branco —geralmente feito com leite em pó— e uma fina camada de açúcar caramelizado vermelho. 

Na trend que tomou conta das redes sociais, diversos confeiteiros reivindicam serem os precursores e inventores. O morango do amor ganhou força total a partir da segunda metade de julho e segue em crescimento no Google Trends. Termos como "onde comprar", "receita" e "o que é" estão em destaque de buscas sobre o assunto, que parece ter viralizado em um grande efeito manada —assim como o pistache e outras comidinhas virais.

Novo raio gourmetizador? Mais uma vez, operação ideológica para elitizar uma festa popular? Guerra híbrida?

Este humilde blogueiro acredita que dessa vez não. Na verdade, estamos diante de um claro exemplo de como a cultura pop funciona como um ótimo sismógrafo do espírito do tempo, ou o chamado “zeitgeist” – e o Google Trends é uma ótima ferramenta para visualizar as curvas do sismograma.



E sabemos que o zeitgeist do nosso tempo é aquilo que o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han denomina como “Sociedade do Cansaço”: o século XXI seria marcado pela enfermidade neurológica: a depressão, déficit de atenção, síndrome de hiperatividade, transtorno de personalidade limítrofe, síndrome de Burnout. Verdadeiros enfartos determinados pelo excesso de positividade pelo indivíduo ter quer performatizar qualquer experiência. Performatizar até a si mesmo – transformar o seu eu como marca distintiva num mercado.

Por que não também o amor? Afinal, bons momentos, como cenas de afeto, amor e amizade, precisam ser momentos instagramáveis, performatizados para ganhar likes, engajamento etc.

 Por isso chama a atenção essa substituição da maçã (uma fruta riquíssima de simbolismos, quase arquetípica) pelo morango – uma fruta “leve” porque não carrega todo o peso mítico-religioso da maçã.

Além do morango representar o amor na própria Natureza. Seu simbolismo é mais imanente, ligado à sua própria natureza: a cor vermelha da paixão, a forma que lembra um coração, o sabor que equilibra doce e azedo.

Olhando em perspectiva, a hype midiática atual do morango do amor é mais uma variação de uma persistente associação simbólica do amor com o doce. Mas nos últimos 150 anos, a sua forma comercial e industrializada ficou longe das associações antigas com o mel e o Divino (o “néctar dos deuses”) para ser ocupado pelo simbolismo dos bombons, trufas, bolos e sobremesas com frutas vermelhas.

Portanto, haveria duas camadas de análise sobre essa onda de morangos do amor: o simbolismo psicanalítico do amor na era da comercialização (a compulsão oral); e toda a simbologia arquetípica envolvida na substituição da maçã pelo morango.



Primeira camada: o amor na ponta da língua

A onipresente associação midiática do amor com o doce, longe de ser uma metáfora inocente, essa conexão revela profundas verdades sobre nossos desejos mais arcaicos, as lógicas do consumo e a dificuldade contemporânea de lidar com a complexidade do afeto.

A presença da oralidade no consumo é uma das ferramentas mais fortes da publicidade, rivalizando com o sexo e erotismo. Principalmente quando o impulso oral é associado com o amor, por acabar envolvendo a sexualidade, aceitação e autoestima.

Principalmente porque a oralidade envolve a primeira experiência de amor. O primeiro contato do bebê com o amor e o cuidado não é simbólico, é físico e oral. O seio materno (ou a mamadeira) é a fonte simultânea de nutrição e afeto. A satisfação da fome se confunde com a sensação de ser amado, protegido e acolhido. O "doce" do leite é, portanto, a primeira "prova" material do amor.

Explorado pela sociedade de consumo, essa pulsão arcaica se torna regressiva por vender um imaginário da gratificação imediata.

A associação do amor adulto com o doce apela diretamente para essa memória psíquica arcaica. O doce na boca reativa, em um nível inconsciente, essa sensação primária de segurança e satisfação total. A mídia explora isso ao nos oferecer uma regressão a um estado infantil de prazer. Em vez de lidar com a complexidade do amor adulto, somos convidados a "consumir" uma pílula de afeto que remete a essa primeira e mais simples forma de amor.

O doce é, nesse sentido, um sucessor simbólico do seio materno: um objeto parcial que promete uma satisfação completa e imediata, calando a angústia e a carência.

Compulsão e viciosidade são as palavras chaves na oralidade do consumo: assim como o bebê guarda na memória o prazer da primeira vez em que foi alimentado pelo seio materno e tenta compulsivamente o leite mesmo sem estar com fome para tentar repetir a experiência prazerosa, da mesma forma ocorre a viciosidade do consumismo.

Nunca a segunda vez conseguirá repetir as sensações da primeira experiência (principalmente porque foi idealizada pela retórica publicitária ou pela idealização do amor materno), criando a compulsão e repetição – o vício em drogas seguiria essa mesma dinâmica: a primeira experiência é intensa e impactante, que será obsessivamente buscada depois sem sucesso, criando dependência e destruição com o aumento da dosagem.

Portanto, em termos do psiquismo, sociedade de consumo e a dependência por drogas compartilham da mesma dinâmica regressiva.



Segunda camada: os frutos do amor

Esta camada é mais complexa por tratar dessa passagem simbólica da maçã para o morango em quatro eixos psicanalíticos: o simbolismo do fruto, a natureza da cobertura, o ato de consumo e a fantasia de amor subjacente.

A maçã é, talvez, o fruto mais carregado de peso simbólico no Ocidente. Ela remete diretamente ao Jardim do Éden: a tentação, o fruto proibido, o conhecimento, o pecado original e a queda. Também ecoa em contos de fadas como Branca de Neve, onde a maçã é o veículo do veneno e do sono profundo, um perigo sedutor oferecido por uma figura de autoridade rival (a madrasta).

A maçã representa o desejo como transgressão. Ela simboliza o objeto proibido pela Lei do Pai (Deus, o Rei). O amor, aqui, nasce de um ato de desobediência que tem consequências permanentes e dramáticas. É um amor que funda uma história, que expulsa do paraíso da inocência e inaugura a condição humana marcada pela falta e pelo trabalho.

Ao contrário. o morango, não carrega esse peso mítico-religioso. Seu simbolismo é mais imanente, ligado à sua própria natureza: a cor vermelha da paixão, a forma que lembra um coração, o sabor que equilibra doce e azedo.

Em uma simbologia psicanalítica, o morango representa o desejo como imanência e sensualidade. O amor aqui não precisa de uma Lei externa para se tornar desejável; ele já é, em sua própria natureza, sensual e atraente. Ele não evoca a culpa da transgressão, mas o convite à indulgência. Se a maçã é o drama da origem do desejo, o morango é a celebração do desejo já existente.

A maçã é coberta por uma casca de caramelo dura, vermelha e brilhante. Essa cobertura é uma barreira. Ela sela a fruta e precisa ser quebrada, violada, com uma mordida forte. O som da casca quebrando é parte essencial da experiência.

Metáfora poderosa para o hímen, a virgindade ou uma defesa psíquica. O acesso ao "coração" do objeto requer um ato de agressividade oral, uma violação. O prazer está condicionado à superação de um obstáculo. Há uma tensão entre o exterior (duro, liso) e o interior (macio, suculento), e a satisfação vem do ato de romper essa fronteira.



Por outro lado, o morango do amor é tipicamente coberto por chocolate macio, cremes ou caldas. A cobertura não é uma barreira, mas um ornamento. Ela não esconde o morango, mas o embeleza, o adorna e se funde a ele. O ato de comer é suave, sem violência.

Diferente da maçã do amor, a cobertura aqui serve à estetização do desejo. O objetivo não é romper, mas aprimorar a experiência sensorial. Representa uma fantasia de um amor sem barreiras, sem defesas a serem quebradas, onde tudo é suave, fluido.

Amor instagramável da Sociedade do Cansaço

E, acima de tudo, visualmente perfeito (Instagramável). É o amor como uma obra de arte a ser consumida, não um forte a ser conquistado.

A febre do morango é um fenômeno de espaços privados ou semiprivados e da era digital: confeitarias gourmet, delivery por aplicativo, jantares românticos. Seu consumo é delicado, limpo e, crucialmente, performático. A foto do morango é quase tão importante quanto o ato de comê-lo.

O consumo do morango está ligado a uma performance íntima para o Olhar do Outro (a rede social). Representa um amor que se privatizou, se tornou um bem de consumo de luxo e uma marca de estilo de vida. Não é sobre comunidade, mas sobre o indivíduo (ou o casal) curando sua própria experiência de romance e exibindo-a.

A transição da Maçã do Amor para o Morango do Amor como ícone pop do romance simboliza uma mudança crucial no zeitgeist do século XXI. Passamos de um modelo de amor "neurótico", estruturado pela Lei, pela culpa e pela fantasia da transgressão, para um modelo de amor "narcísico" ou "performativo", estruturado pelo imperativo do gozo, pela performance estética e pela lógica do mercado.

Em termos freudianos, ao regredir o amor a uma experiência arcaica do narcisismo primário (a gratificação imediata da satisfação infantil), temos o outro transformado em “ego ideal” (a projeção narcísica de si mesmo no outro) e não do “ideal do ego” (a conquista de uma meta, objetivo, que envolva superação de barreiras e até transgressão).

A velha e poderosa figura da autoridade que proíbe (o Deus Pai da maçã) foi substituída pelo olhar onipresente e sedutor do mercado e das redes sociais, que não proíbe, mas ordena: "Gozem! Consumam! E, acima de tudo, mostrem a todos o quão perfeito é o seu gozo." A tragédia do pecado foi substituída pela ansiedade de ter um perfil sem curtidas.

Como aponta o filósofo Byung-Chul Han, a Sociedade do Cansaço é marcada pelo excesso de positividade, pelo bombardeio neuronal: redes sociais, smartphones, home office, o trabalho precarizado mediado por plataformas digitais, o trabalho corporativo fragmentado por "jobs" etc. 

E é justamente nesse tipo de sociedade que o Eu se torna performático e, por isso, até o psiquismo é precarizado: deve ser assertivo, encenar a si próprio constantemente para criar um diferencial, uma marca distintiva num mercado de concorrência psíquica cada vez maior.

Encenar a si próprio cansa, principalmente numa sociedade na qual até o amor tem que ser instagramável.

 

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