segunda-feira, fevereiro 22, 2021

Mitologia brasileira alcança a maioridade na série 'Cidade Invisível'



Estamos acostumados a ver a mitologia brasileira representada por simpáticos personagens infantilizados em HQs e animações ao ponto de que a assustadora Cuca vira uma cantiga para ninar bebês. Porém, a série brasileira da Netlix “Cidade Invisível” (2021- ) quer mudar essa visão amenizada e fofa ao misturar thriller policial, o drama arquetípico do detetive noir e o fantástico (a mitologia brasileira de Cuca, Saci-Pererê, Curupira etc.). Investigando as circunstâncias da morte da sua esposa, um policial ambiental cai pelo buraco da toca do coelho e descobre um underground mítico que sobrevive no centro urbano brasileiro: entidades da mitologia brasileira escondendo-se em outras identidades para resistirem a uma maldição que quer exterminá-los. Além da Modernidade que desencanta o mundo, “Cidade Invisível” constrói uma metáfora política: a modernidade periférica que não quer apenas amealhar mais lucro, mas também destruir a mitologia e identidade nos quais se funda uma nação.

O conceito de desencantamento do mundo é bem conhecido de um dos precursores do pensamento sociológico, Max Weber – um longo processo histórico ocorrido na civilização ocidental no qual o mundo deixa de ser concebido como habitado por forças ocultas que podem ser manipuladas através da magia. Para Weber, a racionalização das religiões foi um exemplo desse processo: a magia foi progressivamente eliminada no interior das religiões para a prática religiosa passar a ser fundamentada na ética.

O próprio discurso conservacionista sofre esse “desencantamento”: para quê conservar uma Natureza destituída de seres fantásticos e forças ocultas, diante do Capitalismo industrial e tecno-científico? Por isso torna-se um discurso ético (“sustentabilidade”), ainda que em algumas vertentes haja resquícios do passado mágico – a “Hipótese de Gaia”, hipótese de ecologia profunda que vê o planeta como um imenso organismo vivo único.

No Brasil, a coisa não poderia ser diferente: os seres fantásticos que habitavam nossas florestas (Curupira, Saci-Pererê, Cuca, Mãe D’água Iara, Tutu Marambá etc.) ou viraram folclore, ou se transformaram em personagens infantilizados em HQs ou animações para crianças urbanas.

A novidade da série brasileira da Netflix Cidade Invisível (2021- ) é resgatar esses personagens do folclore de uma forma realista como seres que ainda resistem nos grandes centros urbanos brasileiros, assumindo novas identidades para se esconderem da racionalidade da especulação capitalista que destrói suas antigas moradas: rios, florestas ou vilas de pescadores.

É o primeiro lançamento em live-action do produtor Carlos Saldanha, responsável pelas animações Rio, Era do Gelo e Robôs. O conflito principal da trama é uma batalha no underground da sociedade entre a marcha da Modernidade e a preservação de uma tradição tornada literal pela presença das antigas divindades que habitavam a Natureza. Evocando o surrealismo colorido da série Deuses Americanos – sobre a série, clique aqui.

Porém, o mais interessante é como Carlos Saldanha combina Modernidade e Tradição no plano narrativo pela mistura de gêneros: temos uma típica trama noir de um detetive atormentado pelo mistério da morte da sua esposa que o levará a entrar na toca do coelho de um mundo fantástico. E, claro, a descoberta da verdade volta-se contra o próprio detetive como a boa e velha narrativa dos thrillers policiais. O buraco da toca do coelho que o leva a um submundo no velho bairro da Lapa, Rio de Janeiro.



Nem o detetive, e muito menos as divindades (e o próprio espectador), sabe o que está acontecendo e o alcance do Mal que está sendo libertado a partir de um incêndio na floresta em torno de uma vila de pescadores e a suspeita de crime ambiental envolvendo uma construtora. Empenhada em construir um eco-resort naquela localidade.

Quem ou o quê está matando um a um os seres míticos que se escondem numa sociedade subterrânea na Lapa?

O tropo “E se os contos populares fossem reais” é recorrente em produções nos últimos 20 anos (Buffy, A Caça-Vampiros, Supernatural, The Magicians, American Gods etc.), mas Cidade Invisível leva esse argumento a um novo plano: ao combinar o discurso conservacionista com mitologia brasileira, mostra uma realidade muito além da ética da sustentabilidade – além das florestas, o que está em risco é o imaginário nacional que dá sentido ao mundo que nos rodeia.




A Série

 O primeiro episódio abre em ritmo de ação que marcará todos os sete episódios da primeira temporada. Dois homens caminham à noite em uma densa floresta tropical quando um deles decide em atirar em um pássaro por prazer esportivo, quando uma lança em chamas o atravessa, lançada por uma criatura com a cabeça em chamas e os pés voltados para trás – imediatamente reconhecível como um Curupira.

Corta para o presente em uma festa numa pequena vila de pescadores quando irrompe um incêndio na floresta que tragicamente mata a antropóloga Gabiela (Julia Konrad), um dos líderes da conservação daquela área. Há uma suspeita de um incêndio intencionalmente provocado por uma construtora que insiste em retirar os moradores para que possa comprar o terreno.

O seu marido, Eric (Marco Pigossi) é um policial ambiental que, arrasado pela morte de sua esposa, passa a ter convicção aa ação criminosa da construtora, principalmente com o aparecimento de peixes mortos na região em que os pescadores vivem.




Tentando retornar ao seu trabalho depois de um período de licença de luto, Eric se depara com um estranho evento: um boto (pequeno cetáceo encontrado nos rios da Amazônia) aparece morto na areia em uma praia em plena cidade do Rio de Janeiro. Tentando levá-lo para uma legista, o boto transforma-se em um homem: Manaus (Victor Sparapane) – Eric rapidamente percebe que há algo de mais misterioso em andamento, que acabará envolvendo sua família, principalmente sua pequena filha.

Inadvertidamente, Eric deslizará rapidamente pelo buraco da toca do coelho, ao descobrir que Inês (Alessandra Negrini, personificando Cuca, a lendária personagem de Monteiro Lobato), dona de uma loungechamado “Cafofo Bar”, no coração da Lapa, é uma espécie de bruxa que lidera um grupo de seres da mitologia brasileira – onde cada um assumiu uma nova identidade: Tutu Marambá (Jimmy London) é o segurança e Iara (Jéssica Cores) é a cantora do bar. 

Além do fato de que esse grupo planeja recuperar o mais rápido possível o corpo de Manaus do IML carioca: temem que alguma maldição foi libertada nas matas da vila dos pescadores – uma entidade maligna que matará um por um daqueles remanescentes do glorioso passado mítico brasileiro. Esse temor é tão grande que Saci-Pererê (Wesley Guimarães) que se chama Isac, um anagrama de “Saci”, perambula pelas ruas, caminhando com uma prótese oculta; e Curupira (Fábio Lago) vive entravado numa cadeira de rodas, escondendo seus pés virados para trás, em meio ao lixo e dependentes de drogas nos becos do bairro. 




E essa maldição tem nome: Corpo-Seco (Eduardo Chagas) uma entidade que absorve a alma das vítimas, mas que já foi humana: um homem tão mau quem nem o Céu e o Inferno o aceitaram, e passou a perambular pelas matas. Até ser contido pela bruxa Inês, que magicamente aprisionou Corpo-Seco em um túmulo no meio da floresta. Porém, algo (ou alguém) o libertou.

Claro que tudo converge para o dono da construtora, o símbolo da Modernidade urbana brasileira, com todas as características do Capitalismo selvagem: sob a aparência ética do ecologicamente correto (quer construir um “eco-resort sustentável”), pretende destruir não só a vida das famílias de pescadores mas, indiretamente, destruir a resistência dos últimos seres mitológicos brasileiros que viviam nas matas.

Cidade Invisível vai muito além de mostrar em live-action o cruel e o brutal da mitologia brasileira, bem longe das versões infantis do “brincalhão” Saci-Pererê ou do “exótico” Curupira; ou mesmo de criar um simbolismo do desencantamento do mundo pela modernidade dos grandes centros urbanos brasileiros. 

Carlos Saldanha criou uma verdadeira metáfora política de um País cujo destino é tornar-se uma neocolônia tocada pelo capitalismo predatório: não se trata apenas de abrir novas oportunidades de negócios para o capital lucrar. Trata-se também de destruir a alma nacional ferindo de morte sua identidade mítica e resistência.

Neocolônia: um país desindustrializado, exportador de commodities, transformando o “exotismo” do País em atração turística de eco-resorts para gringos que trazem para cá seus próprios deuses.  


 

Ficha Técnica 

Título: Cidade Invisível

Criador: Carlos Saldanha

Roteiro: Carlos Saldanha, Mirna Nogueira, Carolina Munhóz, Raphael Dracon

Elenco: Marco Pigossi, Alessandra Negrini, Fábio Lago, Jessica Cores, Jimmy London, Julia Konrad, Wesley Guimarães 

Produção: Prodigo Films

Distribuição:  Netflix

Ano: 2021

País: Brasil

 

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