quinta-feira, fevereiro 25, 2021

'Wokexploitation' e tautismo são ciladas do BBB21 na guerra semiótica

Poucos lembram que o reality show “Big Brother” foi inspirado num experimento científico mal sucedido de 1992 chamado Biosfera 2: oito “tripulantes” confinados numa estrutura isolada do exterior monitorados 24 horas por câmeras, tendo que retirar ar e alimentos dos animais e vegetais daquele meio ambiente simulado. Porém, baratas (muitas baratas!) e ervas daninhas acabaram com tudo. Mas o que foi fracasso vira oportunidade na versão midiática do experimento: a “ecologia maléfica” vira “wokexploitation”: saem baratas e entram as mazelas sociais e humanas como show. Todos os lados do espectro político tentam tirar alguma lição das eliminações (como a rejeição recorde de Karol Konká). Porém o BBB é mais bem sucedido do que foi o Biosfera 2: criou um sistema tautista (tautologia + autismo midiático) onde nenhuma máscara cai ou lição moral é ensinada, tornando-se apenas um dispositivo de sequestro de pauta para, principalmente, a esquerda cair. A única coisa real no BBB é a ecologia maléfica colocada a serviço da guerra semiótica.

Embora o reality show “Big Brother”, idealizado pela empresa de entretenimento Endemol, faça alusão à distopia de George Orwell “1984”, na verdade o show foi explicitamente inspirado na experiência científica Biosfera 2 de trinta anos atrás: quatro homens e quatro mulheres entraram numa gigantesca estrutura geodésica de vidro e metal com 12.000 metros quadrados, em Tucson, Arizona, em pleno deserto, para ali ficarem trancafiados por dois anos. 

A enorme estrutura abrigava 3.800 espécies animais e vegetais e simulações dos cinco principais biomas do planeta Terra , com o propósito de entender como a biosfera planetária funciona e como o ser humano interage com os ecossistemas. Os reclusos participantes do projeto foram monitorados por dois mil sensores eletrônicos, centenas de câmeras, e assistidos por 600 mil pagantes em todo o mundo – público restrito a cientistas e acadêmicos.

O projeto foi um fracasso científico – ácaros e gafanhotos devoraram as plantações; das 25 espécies de vertebrados, somente seis sobreviveram e os únicos organismos que prosperaram foram ervas daninhas, formigas e baratas... muitas baratas!

Porém, foi um sucesso midiático: além da repercussão na impressa mundial, dois anos depois inspirou o reality show da MTV “Real World” (“Na Real”, no Brasil) e, mais tarde, o próprio John De Mol, arquiteto do reality Big Brother.

Certa vez o pensador Jean Baudrillard chamou essa reverberação de um experimento científico no campo do show midiático de “ecologia maléfica”: se na Biosfera 2 a presença do Mal assombrou a utopia tecnocientífica de um suposto equilíbrio benigno nos ecossistemas (assim como os liberais acreditam num equilíbrio do mercado sustentado por uma “mão invisível”), da mesma forma seres humanos confinados em um estúdio que pretende emular o ecossistema humano somente terá como resultado um ambiente predado pela intolerância, preconceito, violência, estupidez e crueldade – leia BAUDRILLARD, Jean “A Ecologia Maléfica”, In: IDEM, A Ilusão do Fim ou a Greve dos Acontecimentos, Lisboa: Terramar, 1992.



A diferença é que para a mídia esse é o resultado esperado e lucrativo: o “wokexploitation”, transformar em show voyeurístico as mazelas sociais e do “demasiado humano” – de “woke” termo político afro-americano para se referir a questões relativas à justiça racial e social.  




Do moralismo de Bial ao jogo de Leifert

Mas esse espírito “exploitation” nunca era admitido pelos produtores desse gênero televisivo. Por exemplo, na era Pedro Bial do “Big Brother Brasil” (BBB), era visível o esforço não só da edição como também do apresentador em tentar enquadrar as situações vividas pelos participantes às longas crônicas moralizantes declamadas antes da eliminação cada jogador. A cada declaração politicamente incorreta de um participante, Bial intervinha para diluir o impacto.

Até então, o grande desafio para o BBB era confinar tamanha “biodiversidade” (gordos, atléticos, homossexuais, transsexuais, ricos, pobres, homofóbicos, heteros, emos... ) e transformar suas relações explosivamente maléficas em lições de moral, assim como no projeto Biosfera 2 onde o sexo entre os tripulantes era proibido. Tentava-se exorcizar, ou pelo menos ocultar, o Mal e manter um ambiente asséptico entre os “brothers”.

Com a era Tiago Leifert, isso acabou. O BBB passou a ser assumido apenas como um jogo, sem mais pretensões moralizantes ou motivacionais. Quem sabe, porque o atual apresentador seja um entusiasta dos games de computador e introdutor do jogo como evento esportivo no jornalismo esportivo da emissora.

wokesploitation é a própria natureza do reality show desde que foi para além do campo científico – de baratas ao bullying. Mas no Brasil ganha um sentido político: transformar em entretenimento mórbido e sensacionalista o ativismo identitário como homossexualidade, feminismo, racismo, transsexualidade etc. 




BBB e guerra cultural

Desde o golpe de 2016, a agenda da “guerra cultural” tornou-se a prioridade da grande mídia, em particular da TV Globo, com duas funções táticas: como controle de danos (aparentar imparcialidade depois de ter anabolizado o extremismo de direita para engrossar o caldo das manifestações de rua com camisetas da CBF) e como guerra semiótica – tirar a esquerda do deserto do real da luta de classes  para confiná-la na matrix do “lugar de fala” das guerras culturais. 

Luta de classes se transforma em cultura de cancelamentos.

Tática explícita desde a vitória da jovem acreana “feminista e militante petista” Gleici no BBB18 – clique aqui

A edição do BBB desse ano revela como a Globo é uma peça na engrenagem semiótica da extrema direita em criar polarizações e o relativismo cultural que alimenta indefinições morais e ausência de referências – a “pós-verdade” que transforma a cena política em apenas opiniões que competem entre si, seja nas redes sociais como em uma reality show.

Nessa última edição acompanhamos essa tendência de estimular polêmicas identitárias com supostos militantes como a rapper negra Karol Konká e a psicóloga e DJ Lumena, criando uma verdadeira paródia de “cancelamentos”, “lugares de fala” e “lugares de prática”: é como se, de repente, estivessem autorizadas a insultar e cancelar qualquer pessoa que viessem a discordar de suas posições. Até o paroxismo da autorização de pessoas negras torturarem psicologicamente umas as outras  - p. ex.: Karol X Lucas.

Porém, a relação do BBB com o mundo real para por aí, como dispositivo de agenda, isto é, como sequestro de pauta política pela “guerra cultural”. 




O sistema tautista

O BBB é um sistema tautista (tautologia + autismo midiático), fechado em si mesmo, autopoiético, no qual cada crise, polêmica ou escândalo retroalimenta o sistema – sobre o conceito de tautismoclique aqui. Por isso é inócuo analistas tentarem ver na eliminação recorde da Konká (99,17%) a “queda das máscaras” de militantes. Assim como os analistas econômicos da grande mídia tentam ver um sentido nas subidas e descidas do tautista mercado financeiro – tentam ver em jogos especulativos das ações alguma coisa como aprovação ou não da agenda liberal de Bolsonaro.  

Konká perdeu R$ 5 milhões em shows e programas de TV cancelados somado ao fim de posts patrocinados em seu perfil de Instagram? A rapper perdeu um milhão de seguidores? Ora, nesse sistema tautista todos ganham: movimentou as marcas num inédito intervalo publicitário após uma eliminação no dia de recorde histórico de audiência: 37,7 pontos com picos de 39,9. 

O momento atípico abriu a janela de oportunidades para, por exemplo, a patrocinadora Amstel propor um bate-papo sobre empatia com a participação de influenciadores como Preta Gil; um cupom de descontos da Americana como convite para “repensar os limites do julgamento” e a Anitta propor um “publi” entre a Karol Konká com a 99...

E o primor de reposicionamento de discurso de Konká após o longo intervalo (lembrando outro reposicionamento famoso, o do influenciador Felipe Neto após fazer a mea culpa ), cumprindo o check list das boas práticas para reconstrução de imagem em gestão de crise, já fez recuperar 200 mil seguidores. Abrindo o viés de “narrativa de superação”...

Num sistema tautista como o BBB não há “recorde de rejeição” ou “máscaras caindo”, mas oportunidades. Assim como no mercado financeiro não existem “crises” ou “crashs”, mas jogo especulativo nas compras em baixa para lucros fabulosos nas vendas em alta.

Do BBB nada se tira, NÃO é um jogo de soma zero (o ganho de um jogador implica necessariamente perda para outro jogador), mas de ganha-ganha num sistema de retro-alimentação. Portanto, não há nem lição de moral a ser ensinada (como simulava Pedro Bial) e nem um “jogo” com vitoriosos e rejeitados (como simula Tiago Leifert).

É nessa cilada que a esquerda (identitária ou não) cai em toda edição. Assim como na vitória da Gleici Damasceno em 2018 a esquerda comemorou ser “boa de voto”, também no BBB21 consegue ver “máscaras caindo dos falsos influenciadores”.

A única coisa real no BBB é a ecologia maléfica colocada a serviço da guerra semiótica.

 

Postagens Relacionadas


Do Projeto Biosfera 2 ao reality show Big Brother: a ecologia maléfica



Wokexploitation é a fronteira final do reality show em “Esta é Sua Morte”



O espectro do tautismo ronda a TV Globo



Se a Globo fosse uma pessoa, como ela seria?


 

Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review