Desde que o filósofo e matemático Nick Bostron sugeriu em 2003 que o universo poderia ser uma simulação produzida por algum supercomputador quântico alienígena (ou mesmo por uma civilização humana avançada que estaria no futuro), físicos, matemáticos e astrofísicos vêm procurando evidências dessa hipótese.
Em algumas postagens anteriores, o Cinegnose vem se interessando pelos desdobramentos dessas pesquisas – veja links ao final dessa postagem. Primeiro, por serem mais uma manifestação do espírito do tempo da virada para o século XXI, principalmente porque o advento da era digital dos games computacionais e mundos simulados criou essa hipótese com reflexos no imaginário cinematográfico em filmes como A Origem, Dark City, 13o Andar e a trilogia Matrix das Wachowski.
E segundo, que essa hipótese sobre a existência de mundos simulados remonta à cosmologia gnóstica dos mundos dentro de mundos como uma espécie de cebola cósmica, proposição do professor gnóstico Basilides na antiguidade (viveu em Alexandria entre 117 e 138 DC) sobre um universo composto por 365 mundos, onde um plano desconhece a existência do outro. Aqui temos um ponto de contato com a hipótese de que o Gnosticismo seria a motivação secreta e mística por trás da agenda tecnológica a partir do século XX como apontada por pesquisadores como Hermínio Martins (“Hegel, Texas” e outros ensaios de teoria social, Lisboa, Século XXI, 1996), Victor Ferkiss (que cunhou o termo “gnosticismo tecnológico” no artigo “Technology and Culturegnosticism, naturalism and incarnational integration” – clique aqui) e Erik Davis (Techgnosis, Londos: Serpents Tail, 2004): o imaginário tecnológico que associa as tecnologias de simulação e virtualização com a ascensão espiritual: os sucessivos planos de simulação como o percurso para a ascese, isto é, a simulação computacional como metáfora da transcendência mística.
O que faltava era um documentário sobre essa teoria com sabor gnóstico e fílmico. O diretor Rodney Ascher anteriormente já havia mergulhado em nas teorias e simbolismo em torno do filme O Iluminado, de Kubrick, com o documentário Room 237. Agora, Ascher explora a “teoria da simulação” como A Glitch of the Matrix (“Uma Falha na Matrix”, 2021), lançado nesse início de ano no Sundance Festival de Cinema.
Para aqueles que procuram um documentário que explique as diversas pistas de que o Universo seria um gigantesco game de computador (princípio antrópico, paradoxo de Fermi, mecânica quântica, universo pixelado, assinaturas da modelagem da simulação etc.) A Glitch of the Matrix vai decepcionar. Ascher apenas se limita a entrevistar Nick Bostrom e o pesquisador tecnognóstico Erik Davis.
A maior parte é composta por entrevistas com vários programadores e desenvolvedores e artistas digitais narrando suas jornadas pessoais em direção à teoria da simulação ou, no mínimo, como chegaram à suspeita da inconsistência daquilo que entendemos como realidade.
Porém, o mais curioso no documentário é a sua abordagem metalinguística e o sincronismo com o atual momento da pandemia, no qual nossas relações pessoais e profissionais passaram a ser mediadas por plataformas digitais.
O filme defende de forma tão fervorosa que nosso mundo é apenas uma simulação à la Matrix que a própria narrativa é marcada pela simulação: todas as entrevistas foram feitas por computador, muitos dos seus entrevistados se apresentam através de avatares fantasiosos (um leão estilizado, uma divindade egípcia etc.) em estilo vídeo-game, no documentário não há nenhuma sequência live-action (reconstituições de acontecimentos são feitos em computação gráfica 3D), quando vemos o mundo exterior é através do Google Street View ou imagens de arquivos de telejornais e nem há presença física de câmeras.
E para completar, o documentário sobre a vida virtual, feito virtualmente, também estreou da mesma maneira – por causa da pandemia, nenhuma presença física de espectadores em uma sala de exibição do festival, nenhuma tela grande e nenhum diretor para bate papo com o público, a não ser a exibição on line... Será que o filme poderia ser uma ilusão, assim como a própria vida?
O Documentário
Ascher estrutura os subtemas do documentário em torno da filmagem de uma palestra de 1977 do escritor de ficção científica assumidamente gnóstico, Philip K. Dick, que declara para um atônito grupo de escritores e fãs de sci-fi em Metz, França, de que estamos vivendo numa realidade programada por computador. Na verdade, apenas um dos diversos mundos simulados – Dick lia um texto da sua autoria intitulado “Se você acha que esse mundo é ruim, deveria ver os outros”.
O discurso de Metz é conhecido pelos fãs do PKD por ter previsto os temas de Matrix (1999), incluindo o papel do déjà vu. O livro “Simulacros e simulação” de Jean Baudrillard, citado pelos diretores de Matrix, Lana e Lilly Wachowski, que tiveram uma influência direta, não seria publicado até 1981 no francês original e só apareceria em inglês 13 anos depois.
Philip K. Dick assume o microfone na convenção de ficção científica em Metz e profere o discurso para um público que no início pensa ser alguma brincadeira, para depois se demonstrar preocupado. No entanto, Dick continuou defendendo sua tese: que vários de seus romances, incluindo O homem no castelo alto (1962) e Flow My Tears, the Policeman Said (1974), "são, em um sentido literal, verdadeiros. Eu não estou brincando!”, diz ao público. E ele falava sério. Dick havia descoberto que os eventos descritos nessas obras, entre outras, eram “memórias reprimidas” não de vidas passadas, mas de uma “vida presente diferente, muito diferente”, de outros mundos igualmente simulados, que ele acessou em 1974 em uma anamnese ou epifania repentina e possivelmente divina – sobre isso, clique aqui).
Através desse discurso, Dick pontuou o trabalho de uma vida preocupada com a tensão entre alucinação e conhecimento real com um apelo final à verdade. Na filmagem ela está ensimesmado, tenso, ocasionalmente corre seus olhos pela sala enquanto lê seu texto anteriormente preparado,
Bem diferente dos extrovertidos entrevistados de Ascher (artistas digitais, cientistas e pesquisadores) em A Glitch in the Matrix.
Paul Gude, vestido digitalmente como um leão cintilante enfeitado com joias, fala sobre como, enquanto crescia em uma pequena cidade em Illinois, passou a ver as pessoas ao seu redor como falsas e os edifícios como cenografias de filmes de faroeste e as casas como fachadas vazias.
Laeo Mystwood, vestido com um avatar parecido com uma divindade egípcia Anúbis-robô de gravata-borboleta rosa, explica que mapeou os eventos de sua vida e descobriu que tudo acontece de acordo com um padrão - coisas relacionadas ao seu trabalho acontecem em certos dias coisas que têm a ver com a família em outros dias, etc. Lembrando o protagonista de Jim Carrey em Show de Truman ao desconfiar que seu cotidiano seguia estranhos padrões ou recorrências até descobrir que sua existência era um reality show televisivo.
Alex LeVine, em uma roupa digital de xamã neon com o que parece ser um cérebro flutuando dentro de sua máscara, descreve um incidente revelador em Cuernavaca, no México, quando ele escapou fácil após um passeio de carro bêbado e um confronto com policiais locais corruptos e se convenceu de que o mundo estava zelando por ele.
Na segunda metade do filme, Ascher inclui uma entrevista com Joshua Cooke, um jovem da Virgínia que ficou tão obcecado por Matrix e pela crença de que seu mundo era uma simulação que matou seus pais suspeitando que faziam parte da conspiração - Cooke não ganha um avatar, já que ele está na prisão e a entrevista foi por telefone.
Alguma coisa entre o Céu e a Terra
Todos os entrevistados são inteligentes, articulados e divertidos. Mas o objetivo de Ascher não é duvidar, ridicularizar ou defender a teoria da simulação. As histórias dessas pessoas não são assim tão bizarras ou surreais; são, em geral, universais e relacionáveis. São impressões que qualquer um de nós poderíamos ter, mas esses entrevistados as processam de maneiras diferentes.
O documentário não é sobre se estamos vivendo ou não em uma simulação, mas sobre as muitas razões que levam alguém a pensar sobre isso.
Como sugere um entrevistado, mesmo que você tenha decidido que a realidade é uma simulação, você ainda precisa vivê-la e continuar a resolver seus problemas do dia-a-dia. Sobre isso, nada temos a fazer, a não ser cultivar essa ideia gnóstica de buscar a fuga da simulação (a gnose) após a morte – isso por um ponto de vista do gnosticismo de Samael Weor – clique aqui.
Ascher acredita que a teoria do universo simulado é mais uma metáfora da autodescrição humana, de acordo com cada etapa tecnológica. Como coloca no início do documentário: na época dos grandes aquedutos que conduziam água para cidades, acreditava-se que o corpo humano era governado por humores e diferentes líquidos; quando veio o telégrafo rapidamente passamos a pensar que os impulsos nervosos corriam através de linhas eletrificadas pelo corpo; na era do computador, o cérebro passa a ser visto como um hardware no qual roda uma programação binária de bytes; e, finalmente, a teoria da simulação surge no momento em que temos PS4, PSVR, óculos de realidade virtual ou realidade aumentada e assim por diante.
Por isso, para o diretor a questão é a solidão e o solipsismo que esses mundos virtuais e bolhas na Internet estão criando e que a única coisa capaz de destruir esses muros digitais seria o amor, a principal “vulnerabilidade” humana: a necessidade de nos conectarmos com o outro.
Ao final, Nick Bostron confessa que o argumento do universo como simulação é mais uma versão de que “há mais coisas entre o Céu e a Terra do que pensa a nossa vã Filosofia”, a crença de que ainda somos muito limitados sobre compreendermos a verdadeira natureza da existência.
Ficha Técnica |
Título: A Glitch in the Matrix |
Diretor: Rodney Ascher |
Roteiro: Rodney Ascher |
Elenco: Nick Bostrom, Erik Davis, Joshua Cooke, Philip K. Dick, Laeo Mystwood, Alex LeVine |
Produção: Campfire, Valparaiso Pictures |
Distribuição: Magnolia Pictures |
Ano: 2021 |
País: EUA |