sábado, outubro 05, 2019
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Quem surgiu primeiro: os deuses? A humanidade? Nós os criamos ou fomos criados por deidades cósmicas. Essas questões perpassam as duas temporadas da série da Amazon "American Gods" (2017-): acompanhando um protagonista ex-presidiário, vamos descobrindo as camadas mágicas que compõem o mundo no qual deuses antigos caminham livremente sobre a Terra misturados com os humanos em atividades banais como, por exemplo, uma garçonete de beira de estrada – divindades nórdicas, celtas, hindus, eslavas, egípcias, africanas e babilônicas. Pagãs e sagradas. Todas encontram-se nos Estados Unidos, trazidas pelos corações e mentes dos imigrantes de todo o mundo, e que lá descobriram os novos deuses: os deuses do Mercado, da Mídia e do Dinheiro. Deuses impiedosos que querem destruir as antigas deidades, numa batalha cósmica travada no plano astral da humanidade. A série é uma grande metáfora parapolítica dos tempos atuais: a propaganda política e o marketing das marcas e do consumo manipulam formas-pensamentos que se transformaram em entidades invisíveis e autônomas. O controle ideológico-político ou psíquico tiraria sua força e letalidade de uma luta travada no plano astral humano.
No documentário Secrets of Brands, da BBC, é destacada a descoberta por neurocientistas de que o culto da marca Apple pelos seus usuários é neurologicamente análogo aos adeptos de uma religião – a mesma parte do cérebro é iluminada, desencadeando os mesmos sentimentos e reações de uma pessoa em um culto.
Por exemplo, sintomaticamente as lojas da Apple geralmente apresentam pedra ou outros tipos de pisos simples e austeros, como uma igreja, com produtos montados em pedestais, como altares individuais.
Os lançamentos das lojas da Apple tambémsão como experiências religiosas - funcionários de olhos vidrados são levados a um frenesi de excitação, pulando para cima e para baixo, batendo palmas e gritando.Quando as portas finalmente se abrem, eles histericamente se cumprimentam e aplaudem centenas de clientes delirantes que entram pelas portas.
Parece que Steve Jobs é realmente um Deus para muitas pessoas.
Se os “Pensamento são coisas”, capazes de criar “formas-pensamento” como diz a Teosofia, então o homem seria capaz de criar entidades etéricas que ganhariam vida própria e exigiriam de nós adoração para poderem sobreviver? De alguma maneira nossos pensamentos criariam um inconsciente coletivo em algum plano etérico habitado por entidades astrais que alimentamos como deuses?
Dos antigos deuses milenares aos modernos criados pelas estratégias de marcas transnacionais, será que ainda a humanidade convive com essas poderosas formas-pensamento diante das quais oferecemos idolatria em troca da realização dos nossos desejos?
Então, quem surgiu primeiro: nós ou os deuses? Essa é a questão central da série American Gods (2017-), disponível no Prime Video da Amazon. Dirigida na primeira temporada por Bryan Fuller (Hannibal) e Michael Green (Logan), a série é baseado no livro “American Gods” de 2001 do aclamado escritor britânico Neil Gaiman no qual misturam-se as várias vertentes da mitologia antiga e moderna, com vários temas previamente vislumbrados na série de HQs Sandman – 1989-1996.
A parceria com a Amazon e a participação da produção de uma série foi uma das poucas coisas que Gaiman ainda não havia feito – não sem resultar em tensões entre os diretores da série e a fidelidade da adaptação. Principalmente na segunda temporada, cujos resultados ficaram mais evidentes.
Através do protagonista chamado Shadow Moon, somos introduzidos num mundo onde deuses antigos caminham livremente sobre a Terra misturados com os humanos em prosaicas atividades como uma garçonete de beira de estrada ou um contraventor que vive de pequenos golpes – divindades nórdicas, celtas, hindus, eslavas, egípcias, africanas e babilônicas. Pagãs e sagradas.
Todas encontram-se nos Estados Unidos, involuntariamente trazidas pelos corações e mentes dos imigrantes de todo o mundo, e que lá descobriram os novos deuses: os deuses do Mercado, da Publicidade e da Sociedade de Consumo.
Filmes recentes como Branded (2012) ou Generation P (2011) já se aproximaram desse tema: seja o marketing político ou de consumo, criam slogans e marcas que ganham vida como fossem divindades autônomas em um plano astral da humanidade – sem sabermos, travam batalhas nesse plano do inconsciente coletivo. Disputam a nossa adoração, através da qual se alimentam e sobrevivem, como parasitas psíquicos.
Mas como as antigas divindades se sentiriam ao verem esses novos deuses monopolizando a atenção dos mortais, em novas catedrais como, por exemplo, as lojas da Apple? O resultado seria uma batalha de dimensões cósmicas, como descreve a série American Gods. E como nós, inconscientes e ignorantes, mal entendemos como os resultados dessa guerra arbitrariamente nos afeta no dia-a-dia.
A Série
Na América, antigos deuses de todos os lugares do mundo ocupam espaço nas cidades com seres humanos. Eles vieram juntos com os imigrantes, com a força das suas crenças e culturas, seja na busca de uma vida melhor ou trazidos à força, como os escravos negros.
Temos aqui o tema da imigração: nunca houve uma separação entre os “verdadeiros americanos” e estrangeiros. América é um continente de imigrantes, cujos verdadeiros americanos foram chacinados desde que os primeiros colonizadores colocaram seus pés aqui.
O problema é que as antigas crenças estão perdendo sua força, diante dos novos deuses promovidos pelos meios de comunicação e a sociedade de consumo.
Odin (Mr. Wednesday, deus nórdico do conhecimento e sabedoria que tenta reunir os velhos deuses para uma guerra contra os novos deuses usurpadores), os eslavos Czernobog e as irmãs Zorya (deus eslavo da escuridão e as irmãs que vigiam o cão do julgamento final que poderá devorar o mundo), Bilquis (Rainha de Sabá de acordo com a Bíblia, surge como uma prostituta que devora os homens através da vagina), Mama-Ji (Kali, deusa hindu do tempo e da destruição), Esater (a deusa pagã da Páscoa que celebra a Primavera, as novas colheitas e a fertilidade) e uma enorme galeria de deus egípcios como Tot e Anúbis e africanos como Mr. Nancy – o trapaceiro que se aproveita da estupidez das pessoas.
Acompanhamos o inocente Shadow Moon (Rick Whittle), prestes a sair da penitenciária para reencontrar com sua esposa Laura Moon (Emily Browning). Até saber que sua espessa morreu num acidente de carro ao lado do seu amante e ver sua vida cair em pedaços, sem família ou emprego.
Até ter uma oferta de emprego de Mr. Wednesday (Ian McShane), para Shadow ser uma espécie de guarda-costas particular. A partir desse ponto, o desiludido e agnóstico Shadow entra no buraco do coelho para descobrir as diversas camadas mágicas do mundo: ele segue Wednesday em sua cruzada de carro pelos EUA na busca dos velhos e esquecidos deuses. Quer reuni-los numa batalha final de dimensões épicas para derrotar os novos deuses e recuperar o lugar perdido no panteão da idolatria da humanidade.
Mas os novos deuses sabem do plano de Wednesday e também se articulam para a batalha. E quem são eles? De início conhecemos o Technical Boy (Bruce Langlay), o deus da Tecnologia e da Internet, dos códigos binários – um nerd adolescente amoral, arrogante e que anda numa limusine e vestido como um personagem do filme Matrix. Em tudo parecido com a personalidade dos geeks do Vale do Silício.
Ele é capaz de criar exércitos de arcontes digitais – como os “Agentes Smith” de Matrix.
Também conhecemos a deusa Mídia em constante mutação (Gillian Anderson e Kahyun Kim), já que vivemos na era da convergência tecnológica – da personificação de David Bowie e Marilyn Monroe da primeira temporada, dá lugar a uma espécie de cosplay japonês na segunda temporada.
Porém, os mais sombrios e poderosos são Mister World (Grispin Glover - o deus da Globalização, agências secretas, espionagem, sociedades secretas e teorias da conspiração) e The Intangible – o deus do dinheiro virtual e da especulação financeira. A própria personificação da “mão invisível” do mercado que prefere não se confrontar diretamente com os velhos deuses: deixa as “forças do mercado” tratarem do assunto...
Deuses e Demiurgos
Na primeira temporada acompanhamos como Shadow vai aos poucos abandonando o ceticismo e que os deuses são reais. Para na segunda temporada, mergulhar na batalha cósmica das deidades e descobrir que eles não são exatamente aquilo que ele pensava.
Dessa maneira American Gods revisita o tema do filme Êxodo: Deuses e Reis (2014), de Ridley Scott, no qual Moisés é um anti-herói amargurado no fogo cruzado de uma guerra entre deuses e reis. E nenhum deles parece se importar com a vulnerabilidade humana. A clássica abordagem gnóstica, na qual os deuses são na verdade Demiurgos, entidades manipuladoras mais preocupadas com si próprias.
Uma ambiguidade perpassa as duas temporadas da série: os deuses existiam antes e nos criaram? Ou são as nossas crenças e a idolatria que fazem eles existirem até se transformarem em entidades autônomas e manipuladoras no plano astral – as “formas-pensamento dos teosóficos”?
Parapolítica
Esse é o plano que chamamos de “parapolítica”, discutida, por exemplo, no filme Branded: na verdade a propaganda política e o marketing das marcas e do consumo manipulam pensamentos que se transformam em “coisas” para dominar a humanidade. Ou seja, a dominação política não ocorreria apenas no plano ideológico-político ou psíquico. Tudo isso vai ser alimentado pelas forças etéricas das formas-pensamento.
Mas também percebemos que esses novos deuses não surgiram do nada: nasceram sob os escombros do antigo e sobrevivem da mesma energia dos deuses decaídos: também precisam ser adorados. Por isso, Mr. World, Mídia e Technical Boy escravizam alguns antigos deuses como Easter e Bilquis.
Assim como o Império Romano converteu a comemoração pagã da Páscoa na figura da ressurreição de Cristo (para a mitologia católica roubar a energia da adoração da deusa pagã Easter), também a deusa Mídia explora Bilquis que vive a ilusão de achar que voltou a ser idolatrada, dessa vez nas plataformas de relacionamentos como o Tinder. A Páscoa de coelhinhos e ovos de chocolate e as plataformas de relacionamento são instrumentos terceirizados para explorar antigos deuses e os incautos humanos.
Ao final, podemos considerar American Gods uma grande metáfora política dos tempos atuais de escalada da xenofobia, racismo e intolerância capitalizados por novos líderes populistas de direita: os deuses católicos, cristãos ou do capitalismo se alimentam e exploram a antiga necessidade humana de idolatrar deuses.
A América com a sociedade de consumo, mídia e tecnologia só existem porque são novas versões de velhas crenças das mais variadas origens, raças e culturas.
Porém, o reprimido sempre retorna. Essa foi a velha lição de Freud. Tudo que é antigo (a Natureza e seus deuses) retorna, cobrando os seus “direitos autorais” de um mundo tecnológico e de mercado supostamente ateu ou agnóstico. Mas também alimentado pela manipulação da idolatria cega.
Ficha Técnica
Título: American Gods (série)
Criador: Bryan Fuller, Michael Green
Roteiro:Bryan Fuller, baseado no livro de Neil Gaiman “American Gods”
Elenco:Ricky Whittle, Emily Browning, Crispin Glover, Ian McShane, Yetide Badaki, Pablo Schreiber
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Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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