O cineasta Mike Cahill (“Another Earth” e “I Origins”) é obcecado em discutir as linhas que separam a ilusão da realidade. E a produção da Amazon Prime “Bliss: Em Busca da Felicidade” (2021) não é diferente: recém-divorciado e após receber o comunicado de demissão do seu chefe, Greg se vê num abismo emocional até conhecer uma misteriosa mulher sem-teto que tenta convencê-lo de que o mundo ao seu redor não passa de uma simulação computacional. Ao lado de “Wanda Vision” e do documentário “A Glitch in The Matrix”, é o terceiro lançamento nesse início de ano sobre o tema do universo como um game de computador. Qual sintoma cultural pode representar essa recorrência temática em tão poucas semanas?
Não sei se o leitor do Cinegnose está percebendo, mas só nas primeiras semanas de 2021 temos três lançamentos em torno da teoria da simulação: a minissérie americana Wanda Vision (Wanda Maximoff e Visão vivem numa vida perfeita em um subúrbio, mas começam a suspeitar que nem tudo é real), o documentário A Glitch in The Matrix (“Uma Falha na Matrix”, onde filósofos e cientistas desenvolvem a teoria de que o Universo pode ser um game de computador) e a produção da Amazon Studios Bliss – Em Busca da Felicidade (Bliss, 2021).
Vinte anos depois dos clássicos Show de Truman e da Trilogia Matrix e de uma tendência de filme em torno de protagonistas prisioneiros em mundos simulados (Cidade das Sombras, Vanilla Sky etc.), será que acompanhamos um revival em torno desse tema tão gnóstico? Se for verdade, o que essa tendência sinaliza? Será que depois de um ano de medo e ansiedade trazidos pela pandemia e isolamento social temos a secreta esperança nada seja real e que tudo seja uma grande simulação? Mais um cenário de angústia, da mesma forma como foi a virada de século? – a ameaça do “bug do milênio”, a desconfiança diante dos mundos virtuais que potencialmente poderiam ser criados pela ciência computacional etc.
Bliss: Em Busca da Felicidade (escrito e dirigido por Mike Cahill, um autor obcecado em explorar a linha entre a realidade e a ilusão em filmes como Another Earth e I Origins) parece se inspirar numa passagem do primeiro filme da Trilogia Matrix em que o Agente Smith interroga Morpheus e explica por que a primeira versão da Matrix foi rejeitada pela natureza humana escravizada pelas máquinas.
Segundo o Agente Smith, a primeira versão era um mundo humano perfeito em que ninguém sofreria e onde todos seriam felizes. Foi um desastre e ninguém aceitou o programa como algo real. “Eu acho que os seres humanos definem a realidade a partir da desgraça e do sofrimento”, refletiu o Agente.
Esse é o núcleo do argumento de Bliss, resgatado dessa linha de diálogo de Matrix: e se todo o sofrimento e desgraças que enfrentamos nessa vida for o centro da programação para que aceitemos a simulação como real? Por que a felicidade só pode ser apreciada pelo contraste? – obrigatoriamente teríamos que experimentar a infelicidade para saber apreciar o seu contrário.
Enquanto Matrix tratava de um mundo simulado que representaria o auge da civilização humana em 1999, em Bliss vivemos a nossa realidade do desemprego, manifestantes nas ruas, sem tetos vivendo sob viadutos das highways de Los Angeles, trabalho burocrático sem sentido (“bullshit jobs”), a alienação gerada pelas drogas, prostitutas nas esquinas, drug dealers e cafetões violentos.
E um Owen Wilson recém-divorciado em estado catatônico, deprimido, vendo suas relações familiares caírem em pedaços, num trabalho sem sentido e prestes a ser demitido, enquanto coleciona obsessivamente esboços que faz em papéis sobre algum paraíso idílico escapista (um tipo de resort mediterrâneo chamado “Hotel Plêiades”) recorrente em sua cabeça.
Porém, o conflito do protagonista nesse mundo nada tem de épica como no clássico Matrix: ele não é o “escolhido” e nem há uma luta épica pela libertação da humanidade – a noção de felicidade é explorada de forma solipsista, narcisista e com pouco envolvimento intelectual. Essa é a principal observação que a crítica especializada vem fazendo sobre Bliss.
Porém, nas estórias de Mike Cahill as fronteiras entre ficção e realidade são sempre ambíguas: a busca pela felicidade se dá através de uma dupla de protagonistas com os quais não nos envolvemos e não nutrimos a menor empatia. Afinal toda a dor desse mundo não passa de uma simulação gráfica para uma elite de artistas e cientistas aprenderem a valorizar o mundo tedioso em que vivem.
O Filme
Wilson interpreta Greg Wittle, um recém-divorciado cuja única âncora emocional é sua filha Emily (Nesta Cooper) que tenta manter algum vínculo emocional paterno, enquanto seu irmão Arthur (Jorge Lendeborg Jr.) é arredio e pensa apenas em cuidar da própria vida.
Ele trabalha num “bullshit job” em uma empresa chamada “Dificuldades Técnica”, um SAC cujos atendentes passam o dia ao telefone pedindo desculpas aos clientes. Ao invés de trabalhar, Greg vive trancado em sua sala fazendo esboços sobre um paraíso fora desse mundo e solicitando refil de seus comprimidos antidepressivos para uma farmácia de manipulação. Quando finalmente Greg atende à ordem de comparecer à sala de seu chefe, é imediatamente demitido. E numa típica sequência de humor negro, acidentalmente Greg mata seu chefe.
Ele esconde o corpo atrás da cortina, apoiado à janela, e foge para um bar próximo para afogar as mágoas em um dia terrível. Lá encontra uma mulher misteriosa chamada Isabel (Salma Hayek) que tentará convencê-lo que o mundo não passa de uma simulação computacional e que ela e Greg são as únicas pessoais “reais”. Os restantes não passariam de PFGs (“Personal Fake Generated”), como fossem personagens de um game de computador.
Ela é uma sem-teto e tenta convencê-lo que tem poderes telecinéticos, assim como Greg. Ela o leva para patinar, durante o qual ambos se divertem, causando estragos físicos e derrubando pessoas com o mero aceno de um dedo. Ele não precisa se preocupar se eles estão realmente machucando alguém, ela o garante, já que tudo ao redor deles é apenas uma simulação de computador. "Não é real", declara ela.
Greg abandona o apartamento de um motel em que vive vai passar os dias numa comunidade de sem-tetos com Isabel, sob um imenso viaduto num entroncamento vário de Los Angeles. Lá saberá que o truque é ingerir alguns cristais amarelos, supridos por um traficante que se esconde em um prédio decadente.
O casal passa então a vagar pelas ruas como fossem uma dupla de punk superpoderosos, indiferentes e exercendo seus poderes telecinéticos. Essa é a principal ambiguidade para o espectador: o que é real? Tudo não passariam de alucinações provocada por aqueles cristais? Enquanto isso, a filha Emily tenta desesperadamente encontrar seu pai pelas ruas da cidade.
Uma narrativa propositalmente ambígua – Alerta de Spoilers à frente
Até que Isabel acredita ter chegado a hora de mostrar a Greg uma prova final de que o mundo não passa de uma simulação gráfica. Através da inalação de um outro tipo de cristal, dessa vez azul, o casal desperta em um mundo supostamente fora da simulação: um laboratório high tech, um espaço experimental de um dispositivo chamado “The Brain Box” no qual os participantes estão ligados a uma imensa caixa onde cérebros estão flutuando.
Este é o mundo real, informa Isabel. Greg desperta no mesmo mundo que obsessivamente desenhava, mas nada lembra da sua história. Assim como Isabel, ele também é um cientista que colabora com o experimento de sua esposa: em um mundo perfeito em que vivem, no qual todos parecem cínicos e entediados, sua “Brain Box” seria uma experiência imersiva na dor humana para aprenderem a valorizar a saberem fruir o mundo perfeito que foi construído fora da simulação.
O problema está em como a espécie humana conseguiu alcançar uma sociedade tão perfeita e harmoniosa: Isabel explica que três coisas aconteceram: a automatização robótica, biologia sintética e mineração em asteroides. A sociedade passou então a ser habitada somente por artistas e cientistas, enquanto a riqueza obtida nos asteroides foi distribuída igualitariamente pelo planeta. E o resultado, foi a superação de todos os problemas ambientais que ameaçavam a sobrevivência da humanidade.
Tudo parece um conto de fadas neoliberal, no qual a biotech construiu um mundo socialista e milionários abnegados distribuíram sua riqueza. Até mesmo o filósofo Slavoj Zizek faz uma ponta, como um holograma de “telepresença” (pessoas à distância podem interagir em eventos), num debate filosófico sobre o simbolismo do Céu e do Inferno.
O que parece ser proposital: aumenta ainda mais a ambiguidade entre qual mundo é o real, restando ao espectador três hipóteses: (a) o mundo real é esse resort estilo mediterrâneo chamado “Hotel Plêiades” e toda a dor e desigualdade da humanidade não passa de uma programação do “Brain Box” para que esse mundo solipsista saiba apreciar a felicidade conquistada pela ciência e empatia;
(b) A âncora emocional de Greg, sua filha Emily, é um personagem do game que ganhou senciência no interior das linhas de programação do “Brain Box” e passou a amar seu pai virtual Greg. Lembrando o filme 13oAndar (1999) no qual personagens de um game ganham senciência envolvendo-se no assassinato de um dos criadores do próprio jogo.
(c) Greg caiu em um abismo emocional após o divórcio e tornou-se um sem-teto viciado em drogas, ao lado de uma mulher chamada Isabel, cliente de um traficante de Los Angeles. Brian Box e todo o mundo do Hotel Plêiades não passam de alucinações lisérgicas escapistas.
Por isso Bliss não consegue fazer o espectador de fato se envolver emocionalmente com o relacionamento entre Greg e Isabel, seja em qual mundo estejam. Enquanto a única coisa verdadeira (o subtrama envolvendo os esforços desesperados de Emily para encontrar o seu pai desaparecido) é pouco desenvolvida.
Conhecendo-se os trabalhos anteriores de Mike Cahill, tudo pode ser proposital: não dar uma resposta ao espectador, deixando-o em suspensão sem conseguir desenvolver algum grau de empatia ou identificação com Greg e Isabel – que muitas vezes soam apenas como narcisistas e manipuladores.
Ficha Técnica |
Título: Bliss: Em Busca da Felicidade |
Diretor: Mike Cahill |
Roteiro: Mike Cahill |
Elenco: Owen Wilson, Salma Hayek, Nesta Cooper, Jorge Lendeborg Jr., Ronny Chieng |
Produção: Amazon Studios, Endgame Entertainment |
Distribuição: Amazon Prime Video |
Ano: 2021 |
País: EUA |