sábado, fevereiro 27, 2021

Nos abismos metalinguísticos e gnósticos da série 'WandaVision'


Não fosse a vinheta que abre cada episódio, com o logotipo da Marvel Studios e o desfile da galeria de super-heróis acompanhado de uma orquestração épica, acharíamos que estamos assistindo à série errada – saem super-heróis esculpidos de forma épica, violência bombástica e música enfática sinalizando alguma reviravolta catastrófica, e temos agora elementos gnósticos e psicanalíticos para narrar os traumas interiores de um super-herói. A série “WandaVision” (2021- ) coloca, dessa vez, dois super-heróis do Universo Marvel (a  Feiticeira Escarlate e Visão) nos abismos metalinguísticos de um pastiche das sitcoms dos anos 1950 e 1960, explorando altos conceitos já vistos em produções como “A Vida em Preto e Branco” (“Pleasantville”) e “Show de Truman”.

Sabemos que o conceito de super-herói é historicamente bastante problemático. Em postagem anterior discutíamos como arquétipo milenar do herói sofreu uma drástica transformação no século XX: de personagem trágico (para os antigos gregos, aquele que vive numa posição intermediária entre os deuses e os homens, em geral um filho mestiço de um mortal com um deus e que luta contra o destino imposto pelos deuses) ao conceito de super-herói – aquele que ignora as noções éticas ou morais (certo/errado, bom/mau) porque é guiado por algo que está além dessas categorias: a Justiça e a Verdade – clique aqui.

É o “super-homem” previsto por Nietzsche e perversamente realizado pela propaganda política nazista com a noção de “guerra total”: um super-herói porque (a) é ariano e intrinsecamente superior e (b) por ser amoral, ignora a morte a destruição de milhões – são apenas efeitos colaterais na busca da Justiça e da Verdade.

Num esforço de contrapropaganda, os EUA criaram também sua galeria de super-heróis, emulando a amoralidade nazi: os superpoderes ou estão na tecnologia (Homem de Ferro), ou nas mutações (X-Men) ou em extraterrestres benéficos (Super-Homem).

Uma série como The Boys questiona radicalmente essa natureza perigosamente amoral dos super-heróis: se não há mais deuses, destino ou uma ordem cósmica acima deles (o herói trágico), quem os controlará? Eles podem ser perigosamente onipotentes.

Depois da franquia de filmes da Marvel com Vingadores e Agentes da SHIELD, exibindo super-heróis esculpidos de forma épica, violência bombástica e orquestras com músicas extra-diegéticas sinalizando alguma reviravolta catastrófica, parece que a Marvel Studios quer dar uma guinada com a oportunidade da parceria corporativa com a Disney +. E parecem querer recomeçar do zero.

Por isso, a estranheza dos fãs dos super-heróis do Universo Marvel com a nova série WandaVision(2021- ) que coloca os dois super-heróis mais poderosos e trágicos do universo cinemático Marvel, emprestados da franquia Vingadores. Mas, agora, num cenário totalmente diferente com referências a séries como Legion, os episódios metaficcionais de Os Simpsons e ecos dos clássicos A Vida em Preto e Branco (Pleasantville) e Show de Truman.



Wanda Maximoff (a Feiticeira Escarlate) e o homem sintético Vision não morreram após os eventos da Guerra Infinita (Vingadores: Guerra Infinita). Wanda foi trazida de volta à vida em Vingadores: Ultimato (Endgame), mas não conseguir salvar Vision.

Em WandaVision vemos o par romântico reunido, mas dentro de um mistério: um abismo metalinguístico, como fosse um show dentro de um show: uma perfeita réplica dos sitcoms em preto e branco dos anos 1950 e 60 como A Feiticeira, Dick Van Dyke Show, I Love Lucy com uma alegre música tema: “Como essa dupla se encaixará?”.

Eles vivem no idílio dos subúrbios do sonho da classe média americana (uma pequena cidade chamada Westview), em estilo cômico, tentando esconder seus superpoderes dos vizinhos e tentando levar uma vida banal. Lembrando até a animação Os Incríveis sobre as situações engraçadas em que se metem super-heróis com empregos normais.

Não fosse a vinheta que abre cada episódio, com o logotipo da Marvel Studios e o desfile da galeria de super-heróis acompanhado de uma orquestração épica, acharíamos que somos espectadores desavisados.

WandaVision parece querer conduzir os super-heróis da narrativa épica convencional para o eu-lírico: através do abismo metalinguístico, mergulhar no interior trágico de Wanda e Vision. Consequentemente, de forma inédita utilizando muitos elementos gnósticos e alusões psicanalíticas.



A Série

O primeiro episódio deixa realmente confusos os fãs mais aferrados do Universo Marvel: não há bases militares, speedsters galácticos de alta tecnologia em cantos longínquos da Terra que serviram de cenários para a franquia Os Vingadores. Ao invés disso vemos Wanda (Elizabeth Olsen) e Vision (Paul Bettany) abrindo caminho por todos os tropos dos sitcoms clássicos sem que seus vizinhos intrometidos suspeitem que estão morando ao lado da Bruxa Escarlate com poderes telecinéticos e telepáticos e a personificação ambulante da Inteligência Artificial mais poderosa da galáxia.

Vemos Visão lutando para entender o seu trabalho numa empresa de “serviços computacionais” e comédias de erros e mal-entendidos com a vizinha presunçosa e amigável Agnes (Kathryn Hahn) e com o chefe de Vision num jantar em sua casa.

Há uma vaga percepção de que eles não pertencem àquele lugar. Mas os minutos finais da estreia dão uma pista de que algo está errado: quando o chefe de Vision pergunta ao casal como eles se conheceram e de onde vieram antes de se mudarem para Westview, ficam imóveis. A claque de risadas silencia e a câmera dá um close nos rostos de Wanda e Vision, imóveis, sem esboçar uma resposta. O quê eles escondem? Como vieram para ali?

Os dois episódios subsequentes darão pistas, até a revelação abrupta sobre o que está acontecendo: o que há fora da metalinguagem – é quando a quarta parede será quebrada.

Aos poucos o pastiche de comédia clássica vai ficando mais sinistro quando Wanda chega ao fundo do abismo metalinguístico: a quarta parede é quebrada quando alguém por trás das câmeras se comunica com Wanda. Assustada, ele exclama “não era para acontecer isso!”.




Wanda e Vision se retiraram para aquela série nostálgica que evolui por décadas, até chegar à versão dos anos 1980-1990, lembrando Pleasantville com seus protagonistas prisioneiros na TV em preto e branco. Porém, chegamos ao ápice com o momento Show de Truman – com seus poderes telecinéticos e telepáticos, Wanda abduziu a cidade inteira de Westview e transformou seus habitantes e casas numa sitcom que evolui a partir dos anos 1950. E mantém Vision também prisioneiro naquele mundo simulacro, como seu par romântico.

Como o Truman de Jim Carrey, Visão começa a desconfiar da irrealidade daquilo tudo. A vizinha Agnes é o alívio cômico que auxilia Wanda a manter Visão preso à ilusão, assim como faz o amigo de Jim Carrey, Marlon, sempre com uma pack de latas de cervejas à mão para desviar a atenção de Truman.

Mundo gnóstico e onírico - Alerta de Spoilers à frente

Lá fora da Westview-simulacro está  o tropo familiar para os fãs: a agência secreta S.W.O.R.D, a “Divisão de Resposta de Observação de Arma Senciente” que, junto com militares, tenta se infiltrar naquela gigantesca bolha de energia na qual Wanda criou um paraíso idílico e romântico para ela e Vision. Ao custo da escravização das mentes dos próprios moradores da Westview real.



Surpreendentemente, WandaVision mergulha em elementos gnósticos do eu-lírico de Wanda: a sitcom como um microcosmo gnóstico do cosmos como uma prisão, uma criação de um Demiurgo que captura as energias de seus prisioneiros para manter funcionando todo aquele microcosmo simulacro. Todos estariam prisioneiros no interior da fantasia retro de felicidade de Wanda? 

O labirinto metalinguístico de Westview revela também elementos oníricos quando agentes da S.W.O.R.D tentam se infiltrar no simulacro. Como na chamada “Teoria das Sentinelas” de Freud, apresentado na abertura da “Interpretação dos Sonhos” - os sonhos possuem elaborados mecanismos de proteção do sono contra fatores perturbadores internos (desde dores de cabeça ou preocupações) ou externos (barulhos de trovões ou sons de relógios despertadores).

Por exemplo, se o despertador toca é muito comum o sonho disfarçar a campainha de alarme, tecendo com ela uma história qualquer...Você está na igreja, com os sinos tangendo; ou então num escritório, onde um telefone estridente reclama que o atendam". Dado o estímulo, o sonho cria o cenário, fornece atores e adereços para as cenas, tudo isso extraído das experiências e impressões do dia a dia de quem está dormindo.

Quando uma agente da S.W.O.R.D, Monica Rambeau (Teyonah Parris), consegue se infiltrar no simulacro de Westview , imediatamente ela é “encaixada” nos anos 1970 – roupas, cabelo, maquiagem etc. Ou quando a bolha energética se expande para  evitar a fuga de Visão, absorvendo os blindados militares do mundo externo, que se transformam em caminhões de um circo e os militares em artistas circenses, na periferia de Westview.

Para evitar a quebra da ilusão onírica, qualquer elemento externo que penetre é transfigurado e encaixado na narrativa da sitcom.

Sem dúvida, a série WandaVision trabalha com altos conceitos. Mas a grande novidade é narrativa: coloca em segundo plano o tom épico (a marca registrada dos super-heróis) para, através da metalinguagem, se embrenhar no mundo interior de Wanda: seus traumas, desejos e ilusões.


 

Ficha Técnica 

Título: WandaVision

Criador: Jac Schaeffer

Roteiro: Jac Schaeffer, Laura Donney, Mackenzie Dohr

Elenco: Elizabeth Olsen, Paul Bettany, Kathryn Hahn, Teyonah Parris

Produção: Marvel Studios

Distribuição:  Disney +, Walt Disney Television

Ano: 2021

País: EUA

 

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