Um robô velho e enferrujado desperta em um depósito de ferro-velho. Ele se levanta e vai em direção a um deserto para dar início a sua caminhada solitária em busca do seu criador. O curta metragem “Rust in Peace” (2018) adiciona um novo ângulo ao tema clássico das relações disfuncionais entre criador e criatura. Robôs, androides ou replicantes são revivals modernos do impulso humano da “teurgia”: tentar aproximar-se de Deus ao criar vida, assim como a Alquimia e a Cabala idealizavam seres como o “Homúnculo” e o “Golem”. Mas desde Frankenstein de Mary Shelley, o homem decepcionou-se com o seu criador, ao descobrir que, na verdade, ele é um Demiurgo que nos rejeita. Assim como o pobre robô de “Rust in Peace” descobrirá na sua jornada solitária: ele revive a própria condição humana gnóstica.
Animar o inanimado. Essa era o sonho da Teurgia, a primeira forma de manipulação da matéria no mundo helenístico – a crença de que que se dermos vida e alma a uma forma inferior de matéria, ficaríamos mais próximos do Deus criador, imitando-o – imitar Deus criando vida.
A Alquimia deu continuidade a essa busca da redenção da matéria, buscando a criação do “homunculus” ou pequeno homem, também chamado de “mannikin”. O sonho da criação da vida humana artificial de materiais inanimados.
Na tradição judaica da Cabala, a figura do “golem” é outro ser artificial, um gigante de pedra ativado pelo nome de Deus escrito na sua testa. Homúnculo, Mannikin ou Golem, todas essas criaturas fantásticas foram manifestações da esperança teúrgica humana de retornar a Deus exercendo as mesmas habilidades reservadas aos deuses.
Mas “Frankenstein”, de Mary Shelley, foi o ponto de viragem nessa tradição ao constituir-se num Prometeu moderno: numa combinação de Alquimia com eletricidade, o doutor Victor Frankenstein dá vida a uma criatura remendada, feita de pedaços de corpos humanos. Horrorizado diante da abominação, Victor tenta destruí-lo. Mas tudo que a criatura quer do criador é o seu amor e reconhecimento.
E o Gnosticismo foi o elemento que inspirou essa viragem – a criatura como uma abominação que a todo custo o criador quer destruir. Como uma metáfora da condição humana diante de um deus inferior que não nos ama, um Demiurgo.
Nove em cada dez filmes sobre robôs, autômatos, replicantes, androides etc. partilham dessa metáfora gnóstica. Como em Prometheus (2012), de Ridley Scott, no qual os “engenheiros” (raça alienígena que nos criou) são divindades enlouquecidas que pretendem nos destruir.
O curta de Will Welles Rust in Peace (2018) é um exemplo deste viés gnóstico do impulso teúrgico humano: a criação de um ser servo-mecânico que insistentemente tenta conquistar o amor de seu criador. Mas tudo o que recebe é o desprezo e a obsolescência programada.
Mas Rust in Peacevai mais além: o pobre robô protagonista parece ser prisioneiro de um ciclo vicioso de morte, renascimento e esquecimento. Algo análogo à condição humana: renascer, cruzar a vida em busca de Deus para unicamente encontrar a punição e a morte... para reiniciar tudo outra vez.
O Curta
O curta foi um trabalho de conclusão de curso em Direção da Escola de Artes da Universidade de Columbia e produzido através de recursos por crowdfunding.
Em sua essência, Rust In Peace é um filme sobre amor. É claro que também é um filme sobre o futuro, robôs e tecnologia. Mas, no fundo, trata-se de amor. É sobre aquele momento em que você sabe que o objeto do seu afeto não o quer mais, mas você vai à casa dele de qualquer maneira, porque é cego demais para desistir.
O robô chama-se X-On. Ele não conhece nada além de amor pelo seu criador. Mas as sua paixão o levará ao renascimento ou à destruição?
X-On é um robô desgastado e enferrujado que desperta sob uma pilha de metais retorcidos num depósito de ferro-velho no meio de uma paisagem desértica e desolada. Aqui não há um personagem construído por efeitos de computação gráfica, como domina o gênero sci-fi. Mas apenas uma inteligente solução prática para criar um robô convincente e perfeitamente integrado a um set real – uma parceria do diretor com Tim Martin, um especialista em construção de criaturas e que está trabalhando em projetos de filmes como Predator e Godzilla.
A renúncia do CGI em favor de uma materialização real do robô através de um elaborado traje vestido por Douglas Tait foi uma decisão crucial do diretor, para estabelecer credibilidade e complexidade emocional a X-On.
Depois de reiniciar seu sistema operacional, X-On se livra do monte de sucata e caminha para o deserto, em busca do seu criador. No caminho, o robô observa maravilhado os pássaros e a paisagem, como se olhasse para tudo pela primeira vez.
O robô e a condição existencial gnóstica – alerta de Spoilers à frente
Welles estabelece um clima meditativo e melancólico com a ajuda de uma bela trilha sonora e uma impressionante fotografia.
Tudo faz lembrar Paris, Texas de Wim Wenders: ao invés de vermos Henry Dean Stanton vagando pela desolação em busca do seu passado, temos X-On se arrastando pela poeira, meditativo, buscando suas origens.
Até chegar à residência do seu criador chamado Devin (Rhys Coiro) – um cientista emocionalmente isolado. Os diálogos são escassos, mas percebemos que, como na maioria dos relacionamentos que perderam o prazo de validade, de um lado X-On demonstra seu amor incondicional a Devin, enquanto este tira proveito do amor autodestrutivo do robô por absoluta conveniência.
Há uma sugestão que Devin está produzindo uma versão mais sofisticada de um autômato, enquanto para X-On o futuro será retornar mais uma vez ao depósito de ferro-velho. Seu futuro é a obsolescência planejada.
Rust in Peace flerta com o tema Criador versus Criadora ao estilo Frankenstein – o criador é um Demiurgo insensível ao amor da criatura que almeja a humanidade. Equipara-se à suposta humanidade do criador, que na verdade revela-se insensível e manipulador.
O curta revela a mesma perplexidade do androide David no filme Prometheus, ao perguntar para a doutora Shaw por que o fizeram: “Porque nós podemos!”, respondeu a cientista, para a decepção de David – ele veio ao mundo sem nenhum propósito nobre, a não ser confirmar o poder manipulador do criador.
Mas o curta revela algo mais perturbador: o ciclo vicioso a que X-On parece estar condenado: despertar sempre naquele ferro-velho, reiniciar como se fosse pela primeira vez, ir atrás do seu criador. Para depois ser mais uma vez rejeitado.
E a travessia do deserto, como metáfora da vida humana: à procura da sua humanidade e de Deus. Para ser rejeitado por Ele, morrer e renascer no esquecimento.
X-On é prisioneiro da gnóstica condição humana.
Ficha Técnica
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Título: Rust in Peace (curta metragem)
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Diretor: Will Welles
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Roteiro: Will Welles
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Elenco: Rhys Coiro, Douglas Tait
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Produção: First Picture LLC
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Distribuição: Vimeo
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Ano: 2018
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País: EUA
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