O Jornalismo possui duas funções no Sistema: alarme (“jornalismo de guerra”) e autorregulação sistêmica (unir o jornalismo à linguagem publicitária e do entretenimento em períodos de “paz” - de cemitério - para manter o equilíbrio e normalidade do cotidiano). Desde o desfecho bem-sucedido da guerra híbrida brasileira com o impeachment de 2016, a função de alarme deu lugar ao de autorregulação na grande imprensa dos jornalões e telejornais – manter na normalidade o moral do distinto público e a agenda neoliberal nos trilhos. As bombas semióticas do período de guerra dão espaço a cinco novas ferramentas do kit semiótico de manipulação da opinião pública: Naturalização, Empirismo, Contaminações Metonímicas, Rocamboles Informativos e Metalinguagem - autorreferência. É como se diariamente o jornalismo afirmasse para nós: “Não olhe muito de perto!”; “Aqui não há nada demais para se ver!”; “1 + 1 é sempre igual a 3”; “A culpa é mesmo do povo” e, diariamente, “Tenha um bom infotenimento!”
“Todas as noites quando vejo o noticiário eu fico feliz... Por que? Porque no noticiário da Globo o mundo está um caos, e o Brasil está em paz... É como tomar um calmante depois de um dia de trabalho”. Essa foi a fala do General Emílio Garrastazu Médici, então o terceiro presidente na ditadura militar, na Festa da Uva de 1972, primeiro evento televisivo transmitido em cores para os poucos proprietários desse tipo de aparelho naquela época.
O Jornalismo, em particular o telejornalismo, vive da presunção da catástrofe. Afinal, dentro do sistema o jornalismo possui a função de alarme: quando necessário (conjunturas de dispersão social que ameacem o equilíbrio sistêmico), o jornalismo dispara os mecanismos de chantagem, paranoia, ameaça e açodamento para provocar a necessidade de autorregulação do sistema – mediante golpes ou conflagrações políticas ou militares.
Mas após a ameaça ser afastada e o sistema se reequilibrar, o jornalismo tende a se aproximar da linguagem dos outros subsistemas do contínuo midiático para reforçar e manter o equilíbrio operacional: os subsistemas das indústrias do entretenimento e da publicidade. Produzindo aquele efeito que o general-presidente Médici admirava no Jornal Nacional da Globo: o efeito relaxante após um dia de trabalho.
Ou então, o efeito das primeiras páginas dos jornais lembrado por Edward Bernays (o pai das relações públicas e sobrinho de Freud): “a cada cinco notícias, quatro são propaganda... se que saber das coisas, é preferível ir a uma biblioteca pública...” (TYE, Larry, The Father of Spin, Picador, 1998, p.102).
Após o golpe político brasileiro do impeachment de 2016 (depois dos anos do chamado “jornalismo de guerra” no qual a grande imprensa exerceu exemplarmente sua função de alarme), o jornalismo foi “acalmando-se” e aos poucos voltando a se aproximar da linguagem da publicidade e do entretenimento. É o momento da manutenção do equilíbrio operacional de todo o sistema... até o próximo alarme.
Edward Bernays: quatro em cada cinco notícias é propaganda |
Em postagem anterior discutíamos as dez táticas de manipulação midiática das notícias detalhadas pelo linguista Noam Chomsky e o crítico de mídia Edward Herman: Distração, Método Problema-Reação-Solução, Gradação, Sacrifício Futuro, Discurso Infantilizado, Sentimentalismo e Temor, Valorizar a ignorância, Desprestigiar a Inteligência, Introjeção da Culpa e Monitoramento – clique aqui.
As técnicas apontadas pelos pesquisadores, em sua maioria, referem-se a contextos de crise sistêmica quando a grande mídia assume o modo alarme para alertar de forma manipulativa o público (chantagens, paranoia etc.).
Depois do jornalismo de guerra
Diferente desse cenário, hoje a grande mídia brasileira é premida pela necessidade de manutenção do equilíbrio operacional após o bem-sucedido jornalismo de guerra: o atual governo pode até ter uma retórica belicosa de extrema-direita - confirmada pelo discurso ao estilo Facebook de Bolsonaro na ONU. Afinal, nada mais é do que uma estratégia diversionista de guerra criptografada. Aliás, reforçada pela própria mídia corporativa.
Porém, e o mais importante, Bolsonaro mantém firme as diretivas neoliberais de privatizações, desregulamentações e submissão ao xadrez geopolítico de Trump.
Por essa razão, para a grande imprensa, tudo vai bem e deve ser mantido no equilíbrio e normalidade – como revelou candidamente a deputada Tábata Amaral, podemos até continuar a criticar Bolsonaro pelas questões ambientais, de gênero e da cultura... mas devemos enaltecer os “acertos na economia e infraestrutura” – clique aqui.
Vamos elencar cinco técnicas de manipulação da grande mídia em tempos de “paz” (de cemitério), nos quais não importam os fatos ou notícias: tudo deve ser encarado como normal, mantendo o distinto público esperançoso, fleumático e até confiante. Algo assim como o efeito neurolépticos do Jornal Nacional nos anos 1970, tão agradável para o General Médici.
São técnicas que comprovam aquele mote do premonitório vídeo publicitário do Jornal Folha, lá em 1988: “é possível contar um monte de mentiras dizendo só a verdade”.
1- Naturalização ou “não olhe muito de perto!”
A “naturalização” é uma técnica de tratamento dos fatos no sentido de tirar deles peso, impacto ou dramaticidade. Por meio de eufemismos, sorrisos e efeitos de contaminação gestáltica, dilui-se o impacto de acontecimentos cuja causalidade está na crise sócio-política nacional. Dissimulada pela “naturalização” dos fatos.
Os exemplos são diários. Mas podemos destacar três casos exemplares.
(a) Primeiras horas da manhã. Milhares de pessoas estão no Vele do Anhangabaú, em São Paulo, numa gigantesca fila do “Mutirão do Emprego” organizado por 42 empresas. A extensão da fila é impressionante e os rostos na fila entre a tensão e o cansaço. Sorridente e com a câmera em close (evitando enquadrá-lo no contexto), o repórter fala exultante: “manhã agitada no Anhangabaú!”... como se estivesse cobrindo algum convescote de pessoas que se divertem procurando emprego por diletantismo...
(b) As tarifas de ônibus na grande São Paulo foram reajustadas acima dos índices de inflação. Usuários reclamam. Numa inventiva guinada de 180 graus no “frame” da cobertura jornalística, a Globo transforma um serviço público numa relação de consumo, blindando a luta judicial do governo Bruno Covas para que a tarifa aumentasse de 4,30 para 4,57.
Diariamente começam a entrevistar usuários para saberem se os ônibus chegam nos horários, se são novos e se possuem ar-condicionado. Pronto! Tudo está normalizado, desde que a “qualidade da prestação de serviço” justifique o aumento das tarifas.
Você pode até tirar o dinheiro para pagar a tarifa do seu almoço... mas, pelo menos, o serviço do transporte é de qualidade...
(c) O assassinato da menina Ágatha, de 8 anos, com um tiro nas costas disparado por um policial no Complexo do Alemão, RJ, foi outro impactante resultado da política de segurança à base de “snipers” e “tiros nas cabecinhas” defendida eloquentemente pelo governador Wilson Witzel.
Mas na primeira página do jornal popular "O Dia", a selvageria cotidiana é amenizada por uma inacreditável contaminação gestáltica: a mancha gráfica, cores e ícones se sobrepõem e contaminam qualquer dramaticidade do conteúdo – cores, e sorrisos exultantes por todos os lados contaminam a caixa de texto em fundo negro sobre a notícia da morte de Ágatha. Até a vítima está sorrindo, ao lado da sorridente empreendedora, jogador de futebol, uma atriz-modelo e do colunista que faz crônicas “prá cima” dos subúrbios cariocas.
2- Empirismo ou “Aqui não há nada demais pra se ver!”
Sob o álibi da informação imparcial e objetiva, o jornalismo se rende ao mais ingênuo empirismo, fragmentando os fatos e renunciando a qualquer investigação sobre relações causais ou, simplesmente, recorrências ou dúvidas justificadas.
Busca por recorrências (regularidades mensuráveis que criam padrões) é uma das principais abordagens do método científico, da Teoria da Informação até a Psicanálise (p.ex, as “coincidências significativas” de Carl G. Jung). Mas no jornalismo dos tempos de paz, isso é “teoria da conspiração”.
Ônibus são incendiados, simultaneamente, em três pontos diferente na mesma região da cidade? Praticamente toda semana uma favela pega fogo na cidade de São Paulo? Dúvidas justificáveis: por que os fios desencapados de São Paulo produzem mais incêndios do que em qualquer capital brasileira? Por que ônibus ou chacinas ocorrem simultaneamente ou sequencialmente?
Não há curiosidade investigativa da imprensa – nem ao menos para fazer perguntas a autoridades e secretários. Tudo é apenas “empírico”. Portanto, não se deve “brigar” com os fatos. Eles apenas são isolados, fragmentados.
3 – Contaminação Metonímica ou “1 + 1 = 3”
Técnica semiótica engenhosa de indução de relações causais na consciência de espectadores ou leitores. Se a figura da metonímia é tomar o todo pela parte ou a parte pelo todo, nada como criar aproximações de notícias isoladas para criar surpreendentes relações causais: uma notícia + outra notícia acaba criando um terceiro significado.
(a) Manhã de caos (mais uma!) na linha azul do metrô e nos trens da CPTM em São Paulo. Imagens nos telejornais da manhã de usuários perdidos, sem saber para onde ir e como proceder na busca de alternativas.
Sob a mesma manchete “Manhã de transtornos na CPTM e Metrô”, um repórter da Globo relata roubo na madrugada de cabos elétricos na estação Chácara Klabin do metrô – que sequer havia sido inaugurada – ainda estava em testes.
Fato que deveria ter sido reportado em outro bloco de notícias, é inserido no meio da rubrica “Manhã de transtornos...”, induzindo a pensarmos na conexão entre o vandalismo do roubo dos cabos elétricos e black out nos trens. óbvio, blindando Metrô e CPTM de quaisquer responsabilidades gerenciais ou administrativas.
(b) Queimadas no Norte do País crescem exponencialmente e são motivos de protestos em todo o planeta. Até as reportagens chegam a relatar “suspeitas” de incêndios “criminosos”. Mas sempre depois dessas notícias, contíguo, entra o bloco da meteorologia e previsão do tempo: descrição de secas, altas pressões no Centro e Norte do Brasil.
Óbvia relação causal com a construção de um terceiro significado: devem ser os “incêndios espontâneos” aos quais se referiu Bolsonaro no seu discurso na ONU...
4- Rocambole informativo ou “A culpa é mesmo do povo...”
Essa ferramenta de manipulação possui uma operação semiótica parecida com a contaminação metonímica pela estratégia de colocar informações de maneira contígua. A diferença é a estrutura informativa confusa como um “rocambole”: as possíveis causas de um fato são misturadas e enroladas, fazendo o espectador perder de vista a possível causalidade mais comprometedora, certamente para os governos municipais, estaduais ou federal.
Ao final, sobra a percepção de que a culpa é mesmo do povo.
Por exemplo, em telejornais da emissora a notícia sobre a falta de vacinas contra meningite e sarampo nos postos de saúde é justaposta, na mesma reportagem com o mesmo repórter e locução of, com outra notícia: a de que os pais supostamente estariam deixando de vacinar os filhos pelas razões as mais diversas – medo de efeitos colaterais, boatos, etc - edições dos telejornais locais SP1 e SP2 da Globo em agosto de 2018.
A estrutura narrativa dessas reportagens é rocambolesca: inicia descrevendo o não cumprimento das metas de vacinação por um suposto medo ou esquecimento dos pais, inserindo em meio à reportagem declarações sobre problemas na distribuição das vacinas em postos municipais. Para, no meio da matéria (numa bizarra guinada temática) vermos depoimento de uma mãe que teme efeitos colaterais da vacina. E terminando a matéria com um gestor de saúde falando em problemas “pontuais” de distribuição.
Por que as campanhas de vacinação “estranhamente” não estão cumprindo as metas no Estado de São Paulo? A grave notícia dos problemas de distribuição das vacinas nos postos parece estar perdida dentro desse rocambole narrativo.
5 – Metalinguagem e autorreferência ou “Tenha um bom infotenimento!”
Como analisamos em postagem anterior sobre uma série de edições do telejornal local Bom Dia São Paulo, das duas horas do noticioso quase metade do tempo (46%) é ocupado por muita metalinguagem e autorreferencialidade – discursos de natureza fática: função não mais informativa, mas de contato e interação com espectadores que apenas tautologicamente repercutem a própria pauta do telejornal. Sem acrescentar novas informações – clique aqui.
Conversas travadas entre os apresentadores, nas quais se confundem a opinião com enunciados referenciais;piadas, observações engraçadas e “piadas internas” entre apresentadores e a produção como os operadores de câmeras do estúdio, assistentes e diretores;repórter que vira protagonista da informação (andando de bike numa ciclovia, andando numa scotter dentro de uma loja que vende veículos alternativos etc.).
Estratégia autopromocional que faz aproximar o jornalismo da linguagem publicitária e do entretenimento – “infotenimento”.
Na “paz de cemitério” atual de uma terra arrasada dominada pelo pensamento único e triunfante neoliberal (mas que mantém a esquerda e a opinião pública entretidas com as tosquices do Clã Bolsonaro e sua guerra santa ideológica e cultural), os subsistemas linguísticos do jornalismo, entretenimento e publicidade se unificam para manter a “normalidade” (ou a tranquila autorregulação sistêmica) – de um lado o ritmo das privatizações e venda do patrimônio público na bacia das almas sem sobressaltos; e do outro, a “normalização” do dia-a-dia para manter alta o moral da patuléia.
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