sábado, setembro 14, 2019

Satanás é o último dos humanistas na série "Lucifer"


Séculos de desinformação e mentiras, das religiões até filmes e livros, fizeram nos confundir a figura de Lúcifer com o próprio Mal – com “Satanás” ou o “Diabo”, o príncipe dos infernos e da perdição. Como um produto audiovisual mainstream, a série “Lucifer” (2015-) parte dessa visão estereotipada para, ao longo dos episódios das quatro temporadas, retornar ao significado original dos antigos ensinamentos gnósticos: Lúcifer como a “Estrela da Manhã”, “o portador da Luz” – o anjo da Luz que com seu intelecto individual se rebela contra autoridades obscuras externas. Na série, Lúcifer volta à Terra depois de se entediar como governante do Inferno, um castigo imposto pelo seu Pai, o Criador. Vai para Los Angeles e se torna dono de uma badalada casa noturna e consultor de uma detetive da LAPD. Torna-se então um estudioso da natureza humana, um "humanista": seus crimes e sentimentos de culpa. Ou seja, aquilo que nos faz criar o Inferno dentro de nós mesmos.
  
Vamos reproduzir um trecho do monólogo final de Milton (Al Pacino), o próprio Diabo encarnado como presidente de um importante escritório de advocacia em Nova York, tentando convencer seu filho Kevin (Keanu Reeves) a assumir seus negócios na Terra, no filme O Advogado do Diabo (1997):
Milton: Deus somente gosta de observar, é um brincalhão (...) Ele apenas rola de tanto rir (...) Adorar aquilo? Nunca! Melhor reinar no Inferno do que servir ao Céu. Estou enfiado nisso até o pescoço desde o princípio. Alimentei todas as sensações que o homem possa ter. Preocupei-me com o que ele desejava sem nunca julgar! Porque nunca o rejeitei, apesar de todas as suas imperfeições... Sou seu admirador! Sou um humanista, talvez o último!




Essa autodescrição do Diabo como o última humanista diante de um Pai indiferente com o destino da sua Criação feita pelo filme O Advogado do Diabo é uma ótima introdução para compreender o núcleo do argumento da série Lucifer ( 2015-), desenvolvida por Tom Kapinos baseada em personagem criado por Neil Gaiman na série de HQ The Sandman, da DC Comics.
Porém, assim como em O Advogado do Diabo, também a série Lucifer, como um produto audiovisual mainstream, partilha da confusão entre as figuras de Satanás e Lúcifer. Uma confusão resultante de séculos de desinformação e mentiras propagadas pelos diversos concílios e disputas doutrinárias dentro da história da Igreja Católica, além de muitos livros e filmes. A tal ponto que chegamos a igualar Lúcifer com o próprio Mal.
Como veremos, a graça da série Lucifer é justamente confundir o protagonista como a própria encarnação do Mal. O Diabo em pessoa que de repente surge em Los Angeles e passa a conviver normalmente entre os humanos como proprietário de uma casa noturna e que, nas horas vagas, ajuda a polícia da cidade a resolver misteriosos crimes.


Mas ao longo das quatro temporadas, acompanhamos como Lúcifer aproxima-se muito mais do significado trazido pela tradição esotérica: como a “estrela da manhã” ou o “portador da Luz”. Tal como no filme O Advogado do Diabo, aquele que ajuda os humanos a se libertar dos “sacos de tijolos” da culpa, tirar as camadas de álibis que racionalizam as ações e entregar ao homem o verdadeiro livre-arbítrio: se porventura alguém vai para o Inferno, é apenas causa e efeito do próprio inferno pessoal.

O Filme

Lúcifer (Tom Ellis) é um anjo que foi expulso do céu pelo seu Pai, o próprio Criador, após uma briga familiar que ao longo das temporadas os detalhes vão sendo revelados, principalmente com a entrada em cena de seus irmãos Amenadiel (D.B. Woodside) e Uriel (Michael Imperioli). Expulso, Lúcifer foi condenado a governar o Inferno.
Entediado de tanto punir humanos incautos, Lúcifer decide dar uma pausa na sua carreira e foge para Los Angeles. Lá torna-se um charmoso e cativante proprietário de uma casa noturna badalada chamada Lux, tornando-se o mestre de cerimônias da diversão, sexo, sodomia e drogas no mundinho de modelos, atrizes e socialites. Ele agora se chama Lucifer Morningstar – o sobrenome é simbólico, por liga-lo às origens ocultistas do nome “Lúcifer”.
Mas acaba ficando também entediado com Los Angeles ao promover essas festas intermináveis. Afinal, Lúcifer é um especialista em punição e precisa exercer esse seu talento. Por isso, acaba conhecendo a detetive da LAPD, Chloe Decker (Lauren German) – filha de uma atriz, no passado tentou uma carreira como atriz pornô em produções B. Mas abandonou tudo para se tornar uma respeitável investigadora da polícia.


Imediatamente Lúcifer sente algo diferente nela – ela parece ser imune aos encantos dele. A saber: revelar seu verdadeiro rosto para assustar seus inimigos e, sob uma espécie de hipnose, fazer as pessoas revelarem seus desejos ocultos. 
Lúcifer é um “enfant terrible”, um bad boy incompreendido, com muito senso de humor negro e inteligência afiada, que não consegue se conter. Por isso, irrita Chloe, cativa sua pequena filha Trixie (Scarlett Stevez), além de despertar ciúmes e desconfianças no ex-marido e também detetive Dan (Kevin Alejandro) – uma reação normal de soubesse que sua filha estivesse na companhia do próprio Satanás.
Apesar das suas diferenças, Lucifer e Chloe acabam se tornando uma dupla de investigadores imbatíveis. E, a cada episódio, a detetive vai sendo cativada pelo senso de humor cínico e o sotaque britânico charmoso do promotor de festas memoráveis na Lux.
Finalmente, a ausência de Lúcifer no comando do Inferno começa a ser sentida, atrapalhando o equilíbrio cósmico. Deus, o Pai, envia o seu filho, o anjo Amenadiel que se alia a Maze (Lesley-Ann Brandt – um demônio sem alma que trabalha como guarda-costas na Lux) para convencer Lúcifer a retornar às suas antigas atividades.
E nesse meio tempo, Lúcifer atrai a atenção da psicóloga Linda (Rachael Harris) que se transforma na sua conselheira e terapeuta – e eventualmente parceira sexual.


De volta ao Lúcifer gnóstico

Esse é o primeiro interessante simbolismo na série: Lúcifer vai revelando seus dramas edipianos e familiares celestes, que se assemelham em muito aos dramas de qualquer humano na Terra – de certa forma Lucifer figura os dramas cósmico descritos na Bíblia como metáforas dos nossos próprios dramas nos relacionamentos humanos.
Assim como em O Advogado do Diabo, Lúcifer se apresenta como um “humanista”: ele transforma-se num consultor civil da LAPD não pelo prazer em punir os criminosos, mas porque nutre uma profunda curiosidade pelo psiquismo humano – suas motivações, culpas e racionalizações. Enquanto seu Pai é indiferente e tudo o que pretende é manter o equilíbrio cósmico, Lúcifer ama os humanos: o seu livre-arbítrio mas, principalmente, tenta entender porque eles desprezam sua liberdade procurando sempre jogar a culpa de seus mal feitos em alguém – principalmente nele: o Diabo!
Lúcifer procura libertar os humanos do sentimento de culpa: razão que acaba conduzindo a maioria para o Inferno – para reviver ad infinitum a cena do pecado e remoer na eternidade o sentimento de culpa. Afinal, como disse certa vez o escritor Stephen King, “o Inferno é a repetição”.


Por isso Lúcifer exerce um poder hipnótico sobre as pessoas ao fazer a pergunta, olhando fixamente nos olhos: “qual o seu maior desejo?”. Dessa maneira, Lúcifer acaba revelando ao longo das quatro temporadas que todas formas de crimes são, em última instância, formas oblíquas, indiretas ou pervertidas de realização de desejos profundos que nunca foram assumidos. Por causa da culpa.
Dessa forma, Lúcifer vislumbra uma surpreendente maneira de não voltar mais ao governo do Inferno: que tal libertar os humanos da culpa para, dessa maneira, esvaziar o Inferno, tornando-o inútil? Tornando ele, Lúcifer, livre do castigo que o seu Pai manipulador impôs.
Portanto, Lúcifer nada mais é do que “o portador da Luz” – o anjo da Luz que com seu intelecto individual se rebela contra autoridades obscuras externas. O anjo que procura nos livrar das camadas e camadas de racionalizações e culpas reforçadas pelo mundo material externo, que tenta nos afastar da verdadeira luz dentro de cada um de nós.

Lúcifer como a “Estrela da Manhã”, significando Vênus, o ponto focal do céu do amanhecer.
Dessa maneira, a série vai de encontro aos antigos ensinamentos gnósticos esquecidos pelas religiões ao confundir Lúcifer com Satanás ou a própria presença do Mal.
Claro que, como um produto mainstreamLucifer faz uma concessão ao figura-lo, de início, como o próprio Satanás, senhor dos infernos e mestre nas punições. Mas ao longo das temporadas, Lúcifer vai se tornando mais matizado. Para se tornar, como fala Al Pacino em O Advogado do Diabo, no “último humanista” que se rebela contra um Criador indiferente à sua própria criação.


Ficha Técnica 


Título: Lucifer (série)
Criador: Tom Kapinos 
Roteiro: Tom Kapinos, Neil Gaiman, Sam Kieth
Elenco: Tom Ellis, Lauren German, Kevin Alejandro, D.B. Woodside, Rachael Harris
Produção: Aggressive Mediocrity, Vertigo Entertainment
Distribuição: Fox, Netflix
Ano: 2015-
País: EUA

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