domingo, setembro 15, 2019
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Por trás de uma grande fortuna há um crime. O que você faria se tivesse a oportunidade de voltar no tempo e consertar decisões erradas? Essas duas ideias são combinadas em um curioso filme sobre viagem no tempo, sem o tradicional tom sci-fi e muito mais com uma atmosfera de conto de fantasia ao estilo “Alice no País das Maravilhas”. É o filme alemão “A Porta” (“Die Tür”, 2009) sobre um artista plástico bem-sucedido remoído pela culpa com a morte da sua filha, destruindo seu casamento e a si mesmo. À beira do suicídio, descobre uma estranha porta nos fundos de um jardim que o conduz ao dia exato da morte da sua filha. É a chance de consertar o erro. Mas também descobrirá que há um preço sombrio a pagar pela felicidade. Filme sugerido pelo nosso colaborador Felipe Resende.
Die Tür (A Porta, 2009) junta dois interessantes conceitos que já renderam roteiros dos mais variados gêneros: primeiro, a frase de Honoré De Balzac, “Por trás de uma grande fortuna há um crime”; Segundo, um conceito presente em nove de cada dez filmes sobre viagens no tempo: o que faria se você tivesse a chance de voltar no tempo para consertar tudo com a vantagem da retrospectiva?
Estrelado por Mads Mikkelsen (Cassino Royale, A Caça) e dirigido por Anno Saul, o thriller alemão é baseado no livro “Die Demalstuer” de Akif Pirincci, a versão germânica do escritor Stephen King.
A narrativa é ambientada num típico bairro de classe média alta suburbana: grandes sobrados com imensos jardins, piscinas, cercas floridas, garagens com reluzentes SUVs e calçadas ornadas com vicejantes gramados. E habitadas por famílias aparentemente felizes, monogâmicas, com seus filhos bonitos e saudáveis com pais bem-sucedidos profissionalmente.
Roteiristas simplesmente adoram figurar esse tipo de cenário para colocar em prática o conceito de Balzac: sempre há algo de errado por trás de tanta felicidade! Como no filme Poltergeist: um feliz condomínio de subúrbio fruto da especulação imobiliária que não respeitou um antigo cemitério indígena, trazendo a maldição para uma típica família de classe média norte-americana.
Em A Porta, uma aparentemente feliz família se desfaz após uma tragédia que revela o ápice de uma crise conjugal. E um marido arrependido, corroído pela culpa e arrependimento, se auto destrói até de repente vislumbrar a chance de consertar os erros do passado.
A novidade desse filme é converter o tema sci-fi da viagem no tempo em um conto de fantasia que poderia muito bem ser ou um episódio da série clássica Além da Imaginação, ou algo análogo a Alice no País das Maravilhas.
O problema é que não apenas o protagonista descobre um jeito de burlar a seta do tempo para consertar o passado. O problema é quando um bairro inteiro de famílias aparentemente felizes descobre que pode remediar suas disfuncionalidades voltando ao passado.
Dessa maneira, os crimes de Balzac podem se tornar literais.
O Filme
David (Mads Mikkelsen) é um artista plástico de sucesso que perde o controle da sua vida depois da trágica morte de sua pequena filha pela qual sente-se culpado. Isso irá destruir a si mesmo e o seu casamento com Maja (Jessica Schwarz).
David é um homem que ficou entediado com a vida conjugal e desdenhoso com sua própria vida. Ocupado em trair sua esposa com a vizinha, recusa o convite da filha para brincar de caçar borboletas no jardim. Prefere furtivamente fazer mais uma visita a Gia (Heike Makatsch), sua atraente vizinha.
Mas o desprezo de David pela própria família é punido: nesse meio tempo, sua filha tropeça e cai na piscina do jardim, morrendo afogada. O que deixa sua vida em descontrole, em permanente estado de luto e desespero.
Então, encontramos David cinco anos depois, com o casamento desfeito e transformado numa sombra de si mesmo, incapaz de deixar o passado e corroído pela culpa.
Decidido a se matar na própria piscina que levou a vida de sua filha, sua atenção é desviada por uma borboleta que o conduzirá a uma estranha porta esquecida nos fundos do jardim. Uma porta que conduz a um túnel. Lá no outro lado está o mesmo dia da morte da sua filha, cinco anos atrás.
Cheio de alegria com essa segunda chance (afinal, ele tem o conhecimento retrospectivo para evitar todos os erros daquele fatídico dia), tentará alterar o passado e recuperar tudo o que perdeu. Mas David descobrirá que as coisas não são tão simples como aparentam ser e que há um preço sombrio a pagar pela felicidade.
A Porta parece uma versão prolongada de algum episódio de Além da Imaginação, mas há também alusões a filmes como Efeito Borboleta e o clássico do terror sci-fi Invasores de Corpos – há uma qualidade no filme de uma constante atmosfera de pesadelo que mantém o espectador no limite o tempo todo, sem sabermos qual o próximo dilema moral ou o horror à espera de David.
A grande questão aqui se trata da angústia da escolha – ver a vida em perspectiva nos torna conscientes de que agimos sempre em situações que nos oferecem múltiplas alternativas. E, a posteriori, parece que sempre fizemos a pior das escolhas.
Como vimos na postagem anterior sobre a série televisiva Lucifer, esses loops espaço-tempo parecem sempre criar a melhor metáfora do Inferno: corroídos pela culpa, repetimos a cena do arrependimento ad infinitum, tornando-nos prisioneiros de um inferno íntimo – clique aqui.
A estrutura do Tempo – alerta de spoilers à frente
Nada mais existencialista ou sartreano: o problema é que não assumimos a responsabilidade do livre-arbítrio e agimos de má-fé – nos eximimos da responsabilidade das escolhas por meio do arrependimento, culpa e autoindulgência. É a angústia, a condição humana da qual o filósofo francês Jean-Paul Sartre tanto falava.
A questão também colocada em A Porta é que a própria estrutura do Tempo funciona como uma espécie de horizonte de eventos dos buracos negros cósmicos: a memória ou viagem no tempo a posteriori nada muda e é condicionado pelo limite estrutural da entropia – vamos acabar encontrando o outro eu, lá no passado, agindo da mesma forma.
Esse é o drama de David: encontrar o outro David lá no dia fatídico, que cometerá o mesmo erro. Pois então, o David atual será obrigado a assassinar o David de cinco anos atrás.
Mas o pior é que o filme revela que toda aquela comunidade, aparentemente feliz e bem-sucedida, têm também seus infernos internos. E todos acabam descobrindo aquela porta, para tentar consertar o passado de cada um... matando seu antigo eu ignorante do futuro...
A Porta é mais uma evidência da atual inventividade dos filmes sobre viagens no tempo: do tom épico ou utópico do século XX para a atualidade na qual o tema torna-se cada vez mais introspectivo, existencial e angustiante.
Ficha Técnica
Título: A Porta
Diretor: Anno Saul
Roteiro:Jan Berger baseado em livro de Akif Pirincci
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No Oitavo Aniversário o Cinegnose atualiza lista com 101 filmes: CosmoGnósticos, PsicoGnósticos, TecnoGnósticos, AstroGnósticos e CronoGnósticos.
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Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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