As
críticas do jurista Dalmo Dallari de que a experiência da transmissão ao vivo
das sessões do Supremo Tribunal Federal foram nefastas por gerar “vedetismo e
deslumbramento” entre os ministros, retirando a sobriedade das decisões, vai de
encontro a um fantasma que assombra as ciências sociais: o declínio da vida
pública, ameaçada pelas supostas “experiências imediatas” que as imagens
transmitidas ao vivo ou em tempo real poderiam proporcionar. A ideologia de uma
suposta “transparência” das decisões do Estado por meio das imagens televisivas
seria a ponta do iceberg de um processo mais geral de crise esfera pública: se
a vida pública foi o auge de um processo civilizatório onde graças as mediações
(papéis sociais e a cultura do escrito e do impresso) não sobrecarregaríamos o
outro com o eu de alguém, agora numa suposta sociedade onde as imagens se
confundem com informação seríamos sufocados pela tirania da intimidade alheia.
Certa vez o comentarista
político Robert Lincoln O’Brien fez uma curiosa observação em 1904 na revista Atlantic Monthly: “Não é raro
nas cabines de datilografia do Capitólio, em Washington, ver congressistas
ditando cartas e gesticulando vigorosamente, como se os métodos retóricos de
persuasão pudessem ser transmitidos para
a página impressa”. Atento observador da vida política norte-americana, O’Brien
testemunhou nessa insólita passagem o choque de dois imaginários ligados a duas
mídias distintas: a tradição da escrita e do impresso de um lado e a obsessão pela
impressão cênica que a fotografia e o cinema reforçaram na vida pública.
As críticas do jurista Dalmo
Dallari (clique
aqui para ler), aproximando a experiência da transmissão ao vivo televisiva
das sessões do Supremo Tribunal Federal com o “vedetismo e deslumbramento” dos
seus integrantes que prejudicariam a “impessoalidade e serenidade das
decisões”, foram na jugular dessa questão que assombra muitos estudiosos das
ciências sociais: a vida pública, estrutura de sociabilidade onde a escrita e o
impresso ajudaram a solidificá-la, estaria ameaçada com as experiências
imediatas (o “ao vivo” ou “em tempo real”) proporcionadas pelas imagens
audiovisuais e eletrônicas.
Pesquisadores como Daniel
Boorstin, Richard Sennett, Christopher Lasch, Umberto Eco e, mais recentemente,
Neal Gabler e Jean Baudrillard já descreveram um cenário muito semelhante às
críticas de Dallari de como as transmissões ao vivo (mais precisamente, a
consciência dos personagens de um evento sobre a presença de meios técnicos de
captação e transmissão de imagens) alteram o comportamento dos ministros com
“rompantes de destempero emocionais e verbais”.
Dallari fala em
“interferência nefasta” e “desvios emocionais”, mas perde de vista um aspecto
mais profundo que os pesquisadores acima observaram: a presença de meios
técnicos de transmissão não apenas afeta psicologicamente, mas cria uma espécie
de autoconsciência, como se os personagens vissem a si próprios como atores
onde cada gesto, esgar de olhos, levantamento de sobrancelhas e tom de voz
devessem ser calculados visando determinado efeito. Os efeitos não são
meramente comportamentais ou inconscientes, mas principalmente cognitivos e de
autopercepção.
Essa judicialização da
política em andamento no Brasil (o País é o único do mundo em que sessões do
Tribunal Superior são transmitidas ao vivo) apenas amplia um fenômeno mais
amplo que seria o próprio declínio geral da vida pública pela hegemonia da
sociedade do espetáculo baseada num modelo de sociabilidade que Christopher
Lasch denominava como “narcisista” onde se substituiria a experiência mediada da
informação pela “experiência imediata” da imagem - leia LASCH, Christopher. A Cultura do Narcisismo. R. de Janeiro: Imago, 1983.
Os diálogos ásperos e
exaltados entre os ministros do STF que fizeram Dallari falar em “transmissões
ao vivo degradantes e desmoralizantes para o STF”, são a ponta do iceberg de um
processo social mais amplo de mudança estrutural da esfera pública – a passagem
de uma sociabilidade baseada na cultura escrita e impressa para a sociedade do
espetáculo atual baseada na experiência imediata da transmissão ao vivo e das
redes de comunicação em tempo real.
Para entendermos esse
movimento que está colocando em xeque as tradicionais instituições da vida
pública, é necessário entender a diferença entre informação e comunicação
cuja confusão que fazemos parece ser a base da ilusão da “experiência imediata”
criada pela sociedade do espetáculo.
O “êxtase da comunicação”
A imagem não é a realidade, é o signo da realidade |
Muitos argumentos que são
mobilizados a favor das transmissões ao vivo do Supremo se apegam na questão da
transparência: sem a transmissão não saberíamos como funciona o STF; como
saberíamos das chicanas jurídicas que marcaram o julgamento do processo 470?;
ou ainda a necessidade de transparência das ações do Estado. A consequência
dessa lógica é que o problema então não estaria na transmissão em si, mas a
falha de caráter de alguns ministros.
Nesse argumento há um mal
entendido sobre a natureza das imagens e, principalmente, das transmissões ao
vivo:
(a) a imagem não é a
realidade, é o signo da realidade;
(b) de todos os signos, a
imagem, principalmente eletrônica e digital, possui uma natureza peculiar: a de
ser a simulação de uma presença. Embora o objeto esteja distante e mediado
tecnologicamente (câmera, switcher, delay etc.) ele simula estar presente
criando a sensação de experiência imediata – técnicas como teleprompter,
multimídia, imersões em 3D e realidade virtual acabam reforçando essa ilusão;
(c) a transmissão ainda
produziria o chamado “efeito Heisenberg”, como denomina Neal Glaber: efeito
secundário onde s mídias não estão na
verdade relatando o que as pessoas fazem, ou seja, estão relatando o que as
pessoas fazem para obter a atenção da mídia. Em outras palavras, à medida que a
vida está sendo vivida cada vez mais para a mídia, esta está cada vez mais
cobrindo a si mesma e o seu impacto sobre a vida (sobre esse tema clique
aqui).
A sociedade do espetáculo e
o seu fascínio pelas imagens viria desse equívoco em ver nelas decalques da
realidade, experiências imediatas e “autênticas” porque aparentemente sem
mediações e, por isso, transparentes. Desde as imagens dos paparazzis às
transmissões dos tribunais, é como que, de repente, nos tornássemos testemunhas
oculares da História. É aquilo que o pensador francês Jean Baudrillard chamava
de “êxtase da comunicação”.
O declínio da vida pública
Porém, a imagem não é
informação e muito menos transparência. A sociedade do espetáculo estaria
fazendo profundas alterações na vida pública e suas instituições que
historicamente se basearam na cultura do escrito e do impresso. A base de
julgamento da chamada opinião pública estaria substituindo a informação
simbolicamente mediada pela imagem que supostamente tornaria o mundo
transparente, superando a aparente opacidade das letras, palavras e conceitos.
As mídias escritas e
impressas trouxeram um importante elemento civilizatório no qual se fundamentou
a esfera pública: o texto separou o enunciado da enunciação, o emissor do
receptor, tornando o texto autônomo como uma mediação através da qual as ideias
seriam discutidas sem a presença persuasiva e sedutora do emissor e sem a
identificação apaixonada do receptor.
A vida pública como uma
sociabilidade mediada baseou-se numa necessidade simples, como declara Richard
Sennett: não sobrecarregar o outro com o
eu de alguém. Evitar a sobrecarga da personalidade através de papéis
sociais, normas, mídias simbólicas e outros diversos dispositivos de mediação
para poupar cada um do inferno pessoal do outro. Evitar a “tirania da
intimidade”, nas palavras de Sennett – leia SENNETT, Richard. O Declínio do Homem Público, São Paulo:
Companhia das Letras, 1988.
O funcionamento rotineiro de
papéis sociais e normas jurídicas garantiria uma sociabilidade possível,
resguardando as idiossincrasias de cada um na esfera privada. Todos esses
dispositivos transcritos em textos, livros e outras mediações simbólicas,
garantiram em certo período (sécs. XVII e XVIII, segundo Sennett) o auge do
funcionamento da esfera pública.
O
primeiro duro golpe contra a esfera de mediações públicas foi em 1855 quando,
na Exposition Universelle de Paris (a primeira exposição industrial com
exposição de fotos), um fotógrafo alemão espantou a multidão ao apresentar duas
versões de um mesmo retrato – uma retocada e outra não. Estava inventada a
simulação e a autoconsciência por meio das imagens. Foi a base do chamado
“efeito Heisenberg”: as imagens deixaram de ser informações, registros objetivos
da realidade, para se inserirem no campo
da encenação do eu para os outros.
A vida pública dominada por atores canastrões
Vida pública: atores canastrões em performances overacting |
Mas
isso não significa que os papéis e dispositivos públicos desapareceram. Eles
agora são reinterpretados pelo princípio da “transparência” e da “autenticidade”.
Os papéis agora são encenados em overacting.
O exemplo dos eventos transmitidos no julgamento do Mensalão (discussões
ríspidas entre Barbosa versus Lewandowsky e Gilmar Mendes versus Barbosa,
estrelismos, exibicionismos, acusações grosseiras, trocas de ofensas e diversas
performances over para catalisar o foco das câmeras e da opinião pública) é uma
amostra da transformação da vida pública, dessa vez no campo do Direito, dispositivo
simbólico por excelência da antiga cultura da mídia escrita e impressa.
Da
mesma forma na vida pública, profissionais nas mais diversas áreas não podem
apenas cumprir de forma competente seus papéis: devem encenar a imagem do homem
bem sucedido em ações bem calculadas como vestir-se, falar, ter “inteligência
emocional”, atitudes positivas e demais encenações de sucesso como fosse um
ator canastrão.
A
hegemonia das mídias visuais acabou transformando a vida pública em um palco
para as encenações, onde os antigos papéis sociais são agora vividos da forma
mais exagerada e mal produzida.
Sob
o pretexto de que a sociabilidade deve ser mais transparente e autêntica
paradoxalmente a vida torna-se cada vez mais opaca: quanto mais as imagens
querem tornar a Política e o Estado supostamente mais transparentes para o
cidadão, mais acompanhamos shows de demonstrações de personalidade e de
idiossincrasias pessoais; e quanto mais se exige nas relações sociais uma “inteligência
emocional”, mais a tirania da intimidade do outro sufoca cada um de nós.
Num
exercício irônico de extrapolação, poderíamos imaginar um futuro muito breve onde,
tal qual no esporte, os tribunais teriam que se adaptar ao timing televisivo:
da mesma forma que o vôlei aboliu a vantagem na contagem de pontos e adotou o tie braker para encurtar os sets e se
encaixar nos blocos de programação televisiva, os tribunais acabarão com a “liturgia
jurídica” e o ritmo processual para ter um ritmo mais célere e a condenação ser
anunciada no horário nobre, no meio do Jornal Nacional – já vimos o início
disso com a execução das penas dos condenados do Mensalão ao vivo, em rede
nacional, em pleno feriadão da Proclamação da República no ano passado.
Algo
como já ocorreu nas modernas igrejas eletrônicas neopentecostais onde a liturgia
cristã foi eliminada para, no lugar, adotar o thriller das sessões de descarrego e o frenesi histérico dos fiéis
celebrando a teologia da prosperidade.