Arquétipo milenar, o mito do Herói apresenta um movimento pendular entre a sua face épica e trágica. Na atualidade a indústria do entretenimento cria uma nova face para o mito: o herói amoral. As origens dessa nova atualização do mito podem ser encontradas na propaganda nazifascista na II Guerra Mundial e na contrapropaganda norte-americana com a criação dos super-heróis Capitão América e Super-Homem.
É impagável a sequência inicial. Terroristas muçulmanos aparecem em uma praça em Paris onde estão muitas crianças, mulheres e idosos. Um deles carrega uma mala-bomba. Derrepente, aparece o Team America numa blitz com mísseis e bazucas. Ironicamente, quem destrói Paris (a torre Eiffel cai sobre o Arco do Triunfo e o Museu do Louvre vai pelos ares) é o Team America na luta desajeitada contra os terroristas. No final, falam para os franceses aturdidos: “Não se preocupem, tudo acabou”. Literalmente, acabaram com os terroristas junto com Paris! Hilário!
A segunda coisa foi uma questão originada em uma aula de Comunicação Visual na Universidade Anhembi Morumbi (São Paulo). Discutia com os alunos a propaganda nazista pelo ponto de vista da criação das modernas técnicas no campo da publicidade e linguagem visual. A certa altura apresentei a contra-propaganda norte-americana: a criação de super-heróis como Capitão América e Super-Homem. Se os heróis nazistas possuíam um “destino manifesto” (representantes de uma raça superiora cuja supremacia já havia sido programada desde o início dos tempos), os super-heróis americanos eram dotados de super poderes conferidos pela ciência ou por poderes alienígenas.
Um aluno me perguntou qual seria a característica moderna do herói nazi, visto que o herói é um arquétipo milenar. Isto é, diferente de toda a narrativa tradicional do herói desde a antiguidade, qual seria a novidade do herói moderno do século XX, seja nazista ou norte-americano?
O início da resposta pode ser encontrado no humor incorreto do filme Team America. A “world Police” representa os EUA como os únicos heróis do mundo interessados em destruir o terror. A truculência catastrófica dos heróis do filme se origina em uma visível indiferença com os civis, com a História e com os próprios tesouros da civilização ao redor: sem o menor cuidado, nas suas ações contra o terrorismo destroem o patrimônio cultural da humanidade (pirâmides, torre Eiffel, o Big Ben etc.) e civis inocentes que estejam na hora errada e no lugar errado. Efeitos colaterais. Como diz a música do filme “Free is not Free” (Liberdade não é de graça).
Por trás da paródia aos clichês dos filmes sobre heróis hollywoodianos, Team América sugere algo mais sério: o traço da amoralidade presente no herói moderno.
Do Trágico ao Amoral
O mito do herói possui um movimento pendular entre o épico e o trágico. Nas suas dimensões épicas, o herói (para os gregos, aquele que vive numa posição intermediária entre os deuses e os homens, em geral filho de um deus e uma mortal – Hércules, Perseu) reúne atributos que transcendem as condições do homem comum: fé, coragem, determinação, renúncia (martírio), paciência etc. Um herói tipicamente guiado por ideais nobres (liberdade, fraternidade, sacrifício, moral, paz) com atributos necessários para superar problemas de dimensões épicas.
Édipo Rei: o herói trágico entregue a uma maldição |
Já o herói trágico é aquele que encontra o infortúnio por um erro de julgamento. Vivendo entre o crime e o castigo, descobre que o a sua queda foi o resultado de suas próprias ações, e não por causa de acontecimentos aleatórios. Como um nobre estoico, aceita a queda com dignidade e aprende com ela.
Tanto no aspecto épico como trágico as ações e julgamentos do herói estão inseridos num cosmos ou no interior de uma ordem ética ou moral que o transcende. Suas decisões e juízos são confrontados com essa ordem superior: o destino. A “falha trágica” está na luta do herói contra o destino conferido por profecias ou pela vontade dos deuses.
Para Gerd Bornheim (“Breves observações sobre o sentido e a evolução do trágico” In: O Sentido e a Máscara, São Paulo: Perspectiva, 1975), a tragédia como gênero literário foi cultivada em dois momentos da história: no século V A.C. na Grécia e na Europa nos tempos modernos. São momentos históricos de crise das respectivas crenças religiosas: crise do mundo homérico e a crise da religiosidade medieval. A subjetividade ou a hybris do herói (dúvidas, dilemas etc) torna-se cada vez mais importante nas narrativas. O herói questiona o destino, empreende uma luta prometéica contra os deuses até ser castigado.
Na modernidade a tragédia chega a debilidade pela importância dada cada vez mais à subjetividade, sobretudo no seu aspecto moral. Na cultura moderna a subjetividade é cada vez mais reflexiva (o Romantismo literário, a Psicanálise, o Existencialismo etc.) enfraquecendo, dessa forma, a experiência trágica: o herói não se confronta mais contra uma ordem divina ou transcendente.
Indo mais além, no caso de Kafka, a própria existência é levada ao absurdo cósmico. Não há mais crime, castigo ou luta prometéica, mas, agora, um herói perplexo que se move num universo imperfeito, corrompido, caótico e aleatório. A paranóia domina a subjetividade do herói, porém uma subjetividade de natureza especial, gnóstica: a suspeita de que a realidade é falsa.
Diante do cosmos em ruínas e a crise do cristianismo Nietzsche vai decretar a morte de Deus e o prenuncio do que ele chamou “super-homem”, o homem do futuro: aquele que viveria para além do bem e do mal (niilista), livre das amarras morais religiosas (culpa, castigo) com o seu desejo de potência interior liberta para alcançar os únicos valores superiores da existência: a verdade e a justiça.
Ironicamente essa profecia de Nietzsche seria realizada pela modernidade, mas de forma perversa. Diante da bifurcação aberta com o enfraquecimento do senso trágico do herói (de um lado, o herói gnóstico cuja paranoia vai por em xeque a própria existência do real; e, do outro, um herói livre das coerções éticas e morais de uma ordem divina e transcendente), a modernidade vai optar pela segunda opção: o herói que, finalmente libertado, torna-se amoral. O herói que ignora as noções de certo/errado, bom/mal. Para ele, tudo isso não passa de ilusão que deprime a força para alcançar o objetivo maior: a verdade e a justiça.
O Nazi-fascismo com o conceito de “guerra total” (extermínio e destruição em massa) e a ideologia do “destino manifesto” de uma nação que deveria alcançar os ideais místicos da raça ariana superiora não importando os meios vai colocar em prática de forma perversa o heroísmo amoral. Na sua propaganda de massa o herói nazi é aquele cujas ações se orientam unicamente pelos ideais de verdade e justiça que devem ser buscados, nem que seja ao custo da morte de milhões de vítimas. Paciência, efeito colateral. Diante dos corpos dos campos de concentrações, o herói nazi nada deve lamentar, a não ser a perda de tempo em alcançar o objetivo final.
A Consolidação do Herói Amoral
No esforço de contrapropaganda durante da II Guerra Mundial, os super-heróis norte-americanos vão assimilar várias características ideológicas dos heróis nazis, como o traço e a estética, o biotipo dos super-heróis seguindo o modelo físico ariano(veja imagens ao lado) até a amoralidade.
A amoralidade é principalmente percebida na ação do super-herói na luta contra o inimigo. Como o filme “Team America” mostra de uma forma hiperbólica, os super-heróis parecem não ter consciência das consequências de um conflito aberto no interior de metrópoles ou áreas densamente povoadas. Por exemplo, no filme “Homem Aranha 3” (Spider-Man 3, 2007) o super-herói não faz qualquer cerimônia em lutar contra o monstro de areia nas ruas congestionadas de pessoas e carros. Carros vão pelos ares, explosões para todos os lados. Imagine as perdas materiais e humanas em larga escala. Efeitos colaterais em nome da verdade e da justiça.
Esse traço amoral dos super-heróis repete-se em “Transformers – A Vingança dos Derrotados” (Transformers- Revenge of the Fallen, 2009) onde na luta contra os inimigos (os “Decepticons”) as pirâmides e riquezas arquitetônicas do Egito não são poupadas. É o mesmo subtexto presente na doutrina do “destino manifesto” no discurso que legitima a “guerra ao terror” norte-americano: o mundo não passa de palco para uma batalha contra a injustiça.
Para finalizar, outro traço marcante desse novo herói amoral moderno é a paranóia narcísica. Filmes como “Jumper” (Jumper, 2008) e o recente “Eu Sou o Número 4” (I Am Number Four, 2011) e mesmo “Crepúsculo” (Twilight, 2008) temos a presença de heróis dotados de poderes naturais ou sobrenaturais e que são perseguidos por organizações ou grupos ocultos que tentam matá-los. Se, como vimos, o gênero trágico evoluiu na modernidade com a desconfiança do herói de que ele poderia estar prisioneiro de uma realidade falsa, ilusória (a paranóia de uma conspiração não voltada especificamente contra o herói, mas contra todos, prisioneiros de uma realidade absurda como nos exemplos de filmes gnósticos como Matrix - Matrix, 1999 - “A Ilha do Medo”- Shutter Island, 2010 - ou a literatura de ficção científica de Philip K. Dick) , agora temos conspirações que visam destruir especificamente o herói.
O caráter narcísico dessa paranóia apenas reforça as ações amorais do herói capaz de detonar o mundo em nome da verdade e da justiça.
Ficha Técnica
- Título: Team America: Detonando o Mundo (Team America: World Police)
- Diretor: Trey Parker
- Roteiro: Trey Parker, Matt Stone
- Elenco (vozes): Try Parker, Matt Stone, Kristen Miller, Masasa Moyo
- Produção: Paramount Pictures, Scott Rudin Productions
- Distribuição: United International Pictures (UIP)
- Ano: 2004
- País: EUA, Alemanha
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