domingo, abril 17, 2011
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Arquétipo milenar, o mito do Herói apresenta um movimento pendular entre a sua face épica e trágica. Na atualidade a indústria do entretenimento cria uma nova face para o mito: o herói amoral. As origens dessa nova atualização do mito podem ser encontradas na propaganda nazifascista na II Guerra Mundial e na contrapropaganda norte-americana com a criação dos super-heróis Capitão América e Super-Homem.
O tema desse post foi motivado por duas coisas: primeiro, a lembrança do filme “Team America: Detonando o Mundo” (Team America: World Police, 2004), uma comédia politicamente incorreta onde os personagens são marionetes em cenas explicitamente violentas com mísseis, artes marciais e tiroteios associados à luta de heróis americanos contra o terrorismo internacional. O Team America (a polícia mundial do título cuja missão é proteger o mundo dos terroristas) é comicamente catastrófica em seus rompantes de heroísmo.
É impagável a sequência inicial. Terroristas muçulmanos aparecem em uma praça em Paris onde estão muitas crianças, mulheres e idosos. Um deles carrega uma mala-bomba. Derrepente, aparece o Team America numa blitz com mísseis e bazucas. Ironicamente, quem destrói Paris (a torre Eiffel cai sobre o Arco do Triunfo e o Museu do Louvre vai pelos ares) é o Team America na luta desajeitada contra os terroristas. No final, falam para os franceses aturdidos: “Não se preocupem, tudo acabou”. Literalmente, acabaram com os terroristas junto com Paris! Hilário!
A segunda coisa foi uma questão originada em uma aula de Comunicação Visual na Universidade Anhembi Morumbi (São Paulo). Discutia com os alunos a propaganda nazista pelo ponto de vista da criação das modernas técnicas no campo da publicidade e linguagem visual. A certa altura apresentei a contra-propaganda norte-americana: a criação de super-heróis como Capitão América e Super-Homem. Se os heróis nazistas possuíam um “destino manifesto” (representantes de uma raça superiora cuja supremacia já havia sido programada desde o início dos tempos), os super-heróis americanos eram dotados de super poderes conferidos pela ciência ou por poderes alienígenas.
Um aluno me perguntou qual seria a característica moderna do herói nazi, visto que o herói é um arquétipo milenar. Isto é, diferente de toda a narrativa tradicional do herói desde a antiguidade, qual seria a novidade do herói moderno do século XX, seja nazista ou norte-americano?
O início da resposta pode ser encontrado no humor incorreto do filme Team America. A “world Police” representa os EUA como os únicos heróis do mundo interessados em destruir o terror. A truculência catastrófica dos heróis do filme se origina em uma visível indiferença com os civis, com a História e com os próprios tesouros da civilização ao redor: sem o menor cuidado, nas suas ações contra o terrorismo destroem o patrimônio cultural da humanidade (pirâmides, torre Eiffel, o Big Ben etc.) e civis inocentes que estejam na hora errada e no lugar errado. Efeitos colaterais. Como diz a música do filme “Free is not Free” (Liberdade não é de graça).
Por trás da paródia aos clichês dos filmes sobre heróis hollywoodianos, Team América sugere algo mais sério: o traço da amoralidade presente no herói moderno.
Do Trágico ao Amoral
O mito do herói possui um movimento pendular entre o épico e o trágico. Nas suas dimensões épicas, o herói (para os gregos, aquele que vive numa posição intermediária entre os deuses e os homens, em geral filho de um deus e uma mortal – Hércules, Perseu) reúne atributos que transcendem as condições do homem comum: fé, coragem, determinação, renúncia (martírio), paciência etc. Um herói tipicamente guiado por ideais nobres (liberdade, fraternidade, sacrifício, moral, paz) com atributos necessários para superar problemas de dimensões épicas.
Édipo Rei: o herói trágico entregue a uma maldição
Já o herói trágico é aquele que encontra o infortúnio por um erro de julgamento. Vivendo entre o crime e o castigo, descobre que o a sua queda foi o resultado de suas próprias ações, e não por causa de acontecimentos aleatórios. Como um nobre estoico, aceita a queda com dignidade e aprende com ela.
Tanto no aspecto épico como trágico as ações e julgamentos do herói estão inseridos num cosmos ou no interior de uma ordem ética ou moral que o transcende. Suas decisões e juízos são confrontados com essa ordem superior: o destino. A “falha trágica” está na luta do herói contra o destino conferido por profecias ou pela vontade dos deuses.
Para Gerd Bornheim (“Breves observações sobre o sentido e a evolução do trágico” In: O Sentido e a Máscara, São Paulo: Perspectiva, 1975), a tragédia como gênero literário foi cultivada em dois momentos da história: no século V A.C. na Grécia e na Europa nos tempos modernos. São momentos históricos de crise das respectivas crenças religiosas: crise do mundo homérico e a crise da religiosidade medieval. A subjetividade ou a hybris do herói (dúvidas, dilemas etc) torna-se cada vez mais importante nas narrativas. O herói questiona o destino, empreende uma luta prometéica contra os deuses até ser castigado.
Na modernidade a tragédia chega a debilidade pela importância dada cada vez mais à subjetividade, sobretudo no seu aspecto moral. Na cultura moderna a subjetividade é cada vez mais reflexiva (o Romantismo literário, a Psicanálise, o Existencialismo etc.) enfraquecendo, dessa forma, a experiência trágica: o herói não se confronta mais contra uma ordem divina ou transcendente.
Indo mais além, no caso de Kafka, a própria existência é levada ao absurdo cósmico. Não há mais crime, castigo ou luta prometéica, mas, agora, um herói perplexo que se move num universo imperfeito, corrompido, caótico e aleatório. A paranóia domina a subjetividade do herói, porém uma subjetividade de natureza especial, gnóstica: a suspeita de que a realidade é falsa.
Diante do cosmos em ruínas e a crise do cristianismo Nietzsche vai decretar a morte de Deus e o prenuncio do que ele chamou “super-homem”, o homem do futuro: aquele que viveria para além do bem e do mal (niilista), livre das amarras morais religiosas (culpa, castigo) com o seu desejo de potência interior liberta para alcançar os únicos valores superiores da existência: a verdade e a justiça.
Ironicamente essa profecia de Nietzsche seria realizada pela modernidade, mas de forma perversa. Diante da bifurcação aberta com o enfraquecimento do senso trágico do herói (de um lado, o herói gnóstico cuja paranoia vai por em xeque a própria existência do real; e, do outro, um herói livre das coerções éticas e morais de uma ordem divina e transcendente), a modernidade vai optar pela segunda opção: o herói que, finalmente libertado, torna-se amoral. O herói que ignora as noções de certo/errado, bom/mal. Para ele, tudo isso não passa de ilusão que deprime a força para alcançar o objetivo maior: a verdade e a justiça.
O Nazi-fascismo com o conceito de “guerra total” (extermínio e destruição em massa) e a ideologia do “destino manifesto” de uma nação que deveria alcançar os ideais místicos da raça ariana superiora não importando os meios vai colocar em prática de forma perversa o heroísmo amoral. Na sua propaganda de massa o herói nazi é aquele cujas ações se orientam unicamente pelos ideais de verdade e justiça que devem ser buscados, nem que seja ao custo da morte de milhões de vítimas. Paciência, efeito colateral. Diante dos corpos dos campos de concentrações, o herói nazi nada deve lamentar, a não ser a perda de tempo em alcançar o objetivo final.
A Consolidação do Herói Amoral
No esforço de contrapropaganda durante da II Guerra Mundial, os super-heróis norte-americanos vão assimilar várias características ideológicas dos heróis nazis, como o traço e a estética, o biotipo dos super-heróis seguindo o modelo físico ariano(veja imagens ao lado) até a amoralidade.
A amoralidade é principalmente percebida na ação do super-herói na luta contra o inimigo. Como o filme “Team America” mostra de uma forma hiperbólica, os super-heróis parecem não ter consciência das consequências de um conflito aberto no interior de metrópoles ou áreas densamente povoadas. Por exemplo, no filme “Homem Aranha 3” (Spider-Man 3, 2007) o super-herói não faz qualquer cerimônia em lutar contra o monstro de areia nas ruas congestionadas de pessoas e carros. Carros vão pelos ares, explosões para todos os lados. Imagine as perdas materiais e humanas em larga escala. Efeitos colaterais em nome da verdade e da justiça.
Esse traço amoral dos super-heróis repete-se em “Transformers – A Vingança dos Derrotados” (Transformers- Revenge of the Fallen, 2009) onde na luta contra os inimigos (os “Decepticons”) as pirâmides e riquezas arquitetônicas do Egito não são poupadas. É o mesmo subtexto presente na doutrina do “destino manifesto” no discurso que legitima a “guerra ao terror” norte-americano: o mundo não passa de palco para uma batalha contra a injustiça.
Para finalizar, outro traço marcante desse novo herói amoral moderno é a paranóia narcísica. Filmes como “Jumper” (Jumper, 2008) e o recente “Eu Sou o Número 4” (I Am Number Four, 2011) e mesmo “Crepúsculo” (Twilight, 2008) temos a presença de heróis dotados de poderes naturais ou sobrenaturais e que são perseguidos por organizações ou grupos ocultos que tentam matá-los. Se, como vimos, o gênero trágico evoluiu na modernidade com a desconfiança do herói de que ele poderia estar prisioneiro de uma realidade falsa, ilusória (a paranóia de uma conspiração não voltada especificamente contra o herói, mas contra todos, prisioneiros de uma realidade absurda como nos exemplos de filmes gnósticos como Matrix - Matrix, 1999 - “A Ilha do Medo”- Shutter Island, 2010 - ou a literatura de ficção científica de Philip K. Dick) , agora temos conspirações que visam destruir especificamente o herói.
O caráter narcísico dessa paranóia apenas reforça as ações amorais do herói capaz de detonar o mundo em nome da verdade e da justiça.
Ficha Técnica
Título: Team America: Detonando o Mundo (Team America: World Police)
Diretor: Trey Parker
Roteiro: Trey Parker, Matt Stone
Elenco (vozes): Try Parker, Matt Stone, Kristen Miller, Masasa Moyo
Produção: Paramount Pictures, Scott Rudin Productions
Cinegnose participa do programa Poros da Comunicação na FAPCOM
Este humilde blogueiro participou da edição de número seis do programa “Poros da Comunicação” no canal do YouTube TV FAPCOM, cujo tema foi “Tecnologia e o Sagrado: um novo obscurantismo?
Esse humilde blogueiro participou da 9a. Fatecnologia na Faculdade de Tecnologia de São Caetano do Sul (SP) em 11/05 onde discutiu os seguintes temas: cinema gnóstico; Gnosticismo nas ciências e nos jogos digitais; As mito-narrativas gnósticas e as transformações da Jornada do Herói nas HQs e no Cinema; As semióticas das narrativas como ferramentas de produção de roteiros.
Publicidade
Coleção Curtas da Semana
Lista semanalmente atualizada com curtas que celebram o Gnóstico, o Estranho e o Surreal
Após cinco temporadas, a premiada série televisiva de dramas, crimes e thriller “Breaking Bad” (2008-2013) ingressou na lista de filmes d...
Sábado, 29 de Março
Bem Vindo
"Cinema Secreto: Cinegnose" é um Blog dedicado à divulgação e discussões sobre pesquisas e insights em torno das relações entre Gnosticismo, Sincromisticismo, Semiótica e Psicanálise com Cinema e cultura pop.
A lista atualizada dos filmes gnósticos do Blog
No Oitavo Aniversário o Cinegnose atualiza lista com 101 filmes: CosmoGnósticos, PsicoGnósticos, TecnoGnósticos, AstroGnósticos e CronoGnósticos.
Esse humilde blogueiro participou do Hangout Gnóstico da Sociedade Gnóstica Internacional de Curitiba (PR) em 03/03 desse ano onde pude descrever a trajetória do blog "Cinema Secreto: Cinegnose" e a sua contribuição no campo da pesquisa das conexões entre Cinema e Gnosticismo.
Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
Neste trabalho analiso a produção cinematográfica norte-americana (1995 a 2005) onde é marcante a recorrência de elementos temáticos inspirados nas narrativas míticas do Gnosticismo.>>> Leia mais>>>
"O Caos Semiótico"
Composto por seis capítulos, o livro é estruturado em duas partes distintas: a primeira parte a “Psicanálise da Comunicação” e, a segunda, “Da Semiótica ao Pós-Moderno >>>>> Leia mais>>>