O bem-sucedido técnico português de futebol Luís Mourinho. O historiador e palestrante corporativo Leandro Karnal. E o influenciador preso preventivamente Hytalo Santos, denunciado por outro influenciador (Felca) por produzir conteúdo sexualizado de crianças e adolescentes nas redes sociais. São diversas facetas do novo espírito do tempo que emerge em mais um salto mortal do capitalismo: a Pós-meritocracia. O primeiro, em um comercial da SportyBet, revela o paroxismo do individualismo do século XXI; o segundo, performa um personagem que ri da própria meritocracia no comercial do Bradesco para Pessoas Jurídicas; e o terceiro minimizado pela grande mídia como fosse uma notícia policial: um influenciador amoral que vê no conteúdo sexualizado um empreendimento não como outro qualquer, mas que possibilita enriquecimento rápido. Três facetas de um mesmo “zeitgeist”: a perda da confiança no futuro através da miragem da recompensa aqui e agora de um novo tipo de individualismo.
Era uma vez uma ideologia chama da de “meritocracia”. Foi
popularizada por um livro publicado em 1958 chamado "The rise of the
meritocracy” (A ascensão da meritocracia) pelo sociólogo britânico Michael
Young. Postulava que o sucesso e a posição social de um indivíduo deveriam ser
determinados por suas habilidades, méritos e esforços.
Como toda ideologia teve o seu momento de verdade, era bem-intencionada
no esforço de superar a desigualdade e o passado de privilégios, quando o
princípio da seleção por família determinava quem seriam os poderosos.
Foi macroeconomicamente reforçada com a “Teoria do Capital Humano”,
surgida na década de 1960, especialmente com os trabalhos de Theodore Schultz e
Gary Becker. Propunha que esse tipo de capital era crucial para o
desenvolvimento econômico: investimentos em educação, saúde e treinamento
aumentam a produtividade e o valor econômico dos indivíduos, levando a um maior
crescimento econômico.
Isso foi lá no século passado. Hoje, meritocracia e capital humano
subsistem como farsa. Principalmente quando acompanhamos uma revolução diária,
exibida nas telas de TV, em vídeos nos intervalos comerciais. Ou residualmente
nas notícias dos telejornais: a “revolução” da pós-meritocracia. Na
verdade, a gestação de um novo zeigeist para mais um salto mortal do
capitalismo no sentido de fugir das suas próprias contradições: o capitalismo
de choque, grande reset do capitalismo etc.
Pós-meritocracia: Em vez de enfatizar o esforço, a capacidade e o
mérito, a valoriza o risco e a audácia, argumentando que o sucesso pode ser
alcançado através da superação dos limites ou constrangimentos pessoais
(morais, psíquicos) e do próprio sistema (regras, normas éticas). Ou seja, o
sucesso não mais sublimado visando o futuro, mais alcançado aqui e agora.
O curioso é o momento de transição em que estamos vivendo. De um
lado, nos telejornais da grande mídia ou nos intervalos publicitários, vemos
matérias sobre empreendedorismo valorizando, foco, resiliência, iniciativa etc.
Ou vídeos publicitários anunciando eventos ou cursos de formação sobre
empreendedorismo e inovação de instituições como Sebrae, FECAP ou Fundação
Bradesco.
Do outro, muitas vezes no mesmo intervalo publicitário, os
diversos comerciais de bets, exortando exatamente o oposto: ter a “visão”, “grana
na mão”, “se dar bem” e assim por diante. De um lado, mensagens que exortam
você a ser resiliente, investir em você e no negócio para o futuro. Enquanto do
outro lado, prometendo recompensa imediata. Superar suas limitações para ser
feliz aqui e agora.
Ou até diálogos autorreferenciais e metalinguísticos entre esses
dois paradigmas opostos. Muitas vezes com efeitos involuntários entre o irônico
e o cômico.
Ou então, quando os jornais dão notícias sobre personagens desse
novo ecossistema pós-meritocrático (zeitgeist + ambiente tecnológico)
pelo viés da criminalidade, procurando descrever os fatos como anormalidade ou
ilegalidade. Quando na verdade são manifestações do “novo normal”
pós-meritocrático.
Vamos analisar três casos exemplares: o comercial da SportyBet,
estrelando a irascível figura do técnico e ex-jogador de futebol português Luís
Mourinho; o comercial “Autoajude-se”, vídeo publicitário do Bradesco voltado
para o segmento de Pessoa Jurídica com o historiador e palestrante corporativo
Leandro Karnal; e a notícia da prisão do influenciador Hytalo Santos (acusado
de exploração e exposição de menores de idade em redes sociais) depois de
denúncia em vídeo de outro influencer (Felca), que viralizou causando grande
repercussão, até política.
SportyBet: o paroxismo do individualismo
O português Luís Mourinho é o mais bem-sucedido técnico português
do futebol europeu e conhecido não só pelo conhecimento tático, mas também pela
personalidade controversa, com opiniões diretas e sem levar desaforos para
casa. Não por acaso, virou o embaixador das operações da plataforma de apostas
no Brasil: sua imagem de liderança e autoconfiança controvertida cai muito bem
para esse ecossistema digital pós-meritocrático.
Sua narração no vídeo comercial é bem didática sobre os pontos
nodais desse espírito do tempo pós-meritocrático.
O título do vídeo já é sintomático: “O maior desafio é enfrentar a
si próprio”. Se a ideologia meritocrática via uma competição por méritos entre
competidores (o que sugere uma preocupação sobre regras, regulamentações e critérios
éticos entre participantes), na pós-meritocracia encontramos o paroxismo do
individualismo: você está apenas competindo consigo mesmo – tentando superar
limites, pruridos, auto constrangimentos (vergonha, timidez, medo, pessimismo
etc.).
Como enfrentas o maior dos rivais? Respeita as regras estabelecidas? Ou semeias o caos? Aceitas as peças do tabuleiro ou forma uma equipe de guerreiros? O maior desafio não está nos seus olhos. Mas na tua cabeça... Porque o primeiro passo para a vitória, é enfrentar-te a ti próprio.
Temos nessa fala de Mourinho a própria concepção de engenharia do
caos, práxis política alt-right notabilizada por Trump e Bolsonaro – disseminar
o caos para confundir o adversário.
Mas, para além da política, está aqui a escalada do ideário da
autoajuda para o messianismo e misticismo (até a estética surrealista em
efeitos de computação gráfica do vídeo sugere essa ideia): liberar os poderes mais
dormentes e recônditos da sua mente e ficar livre para agir disruptivamente – não
respeitar as regras estabelecidas e “semear o caos”.
“Atreva-se”, exorta o protagonista no final.
O comercial é autoconsciente. Sabe que o negócio das bets é alvo
de críticas e denúncias: criação da viciosidade, destruição das finanças de
famílias, comportamento compulsivo que corrói relações interpessoais etc.
Por isso, para vencer, o jogador deve ir além dessas constrições,
limitações que impõem regras e limites. Que em última instância emergem da
própria sociabilidade: as regras éticas e morais.
A pós-meritocracia cria uma zona cinza entre a legalidade e a
contravenção. Uma espécie de amoralidade. Para além do Bem e do Mal. O “Super-Homem”
nietzschiano ironicamente realizado numa plataforma de apostas! - voltaremos a
esse ponto à frente.
O outro (o rival) não existe. Existe apenas você contra o seu próprio
psiquismo – ou os aspectos negativos dele, que precisa superar, derrotar.
Em caso de derrota, temos a introversão exponencial da culpa,
muito maior do que na ideologia meritocrática. Na meritocracia, a derrota é
racionalizada pela insuficiência – não estudou o suficiente, não trabalhou o
necessário etc.
Enquanto na pós-meritocracia, a derrota nem consegue ser
racionalizada. É encarada quase como uma fatalidade, a derrota para um
arcabouço de limitações psíquicas inexplicavelmente herdadas. Se na meritocracia,
pelo menos, a racionalização encontra razões objetivas, na pós-meritocracia tudo
é subjetivo, na qual o velho ideário do pensamento positivo da autoajuda evolui
perversamente para uma espécie de misticismo pop.
“Autoajude-se” ou meritocracia ri de si mesma
Já na nova campanha do Bradesco, voltada para o segmento PJ, é
protagonizada pelo historiador e palestrante corporativo Leandro Karnal, que
assume o papel de conselheiro do empreendedor moderno. No comercial, ele
contrapõe frases clássicas de autoajuda ao cotidiano de quem empreende com os
serviços e ferramentas para os clientes PJ.
O Bradesco exorta para aos empreendedores irem para além dos
livros e conteúdo de autoajuda, partindo para a prática: abrir uma conta PJ no
banco.
“Quer ver seu negócio crescer e prosperar?...Ler livro de
Autoajuda, Pensamento crítico, resiliência e foco”, diz Karnal, “até ajuda”. “Mas
o que ajuda mesmo é cinco dias sem juros no cheque empresarial, receber
pagamento pelo celular, especialistas em crédito”, completa Karnal como uma lev
e ponta de ironia.
Produzida pela agência de publicidade AmappBBDO, parece que a peça
publicitária faz essa verdadeira muleta da ideologia meritocrática, a
literatura de autoajuda, rir de si mesma. E também que a agência de publicidade
soube capturar o atual zeitgeist: frente à pós-meritocracia em ascensão, a
velha literatura de autoajuda se transformou, quem diria, em mera “teoria”.
O vídeo mostra os serviços e ferramentas do mercado financeiro (no
caso, os do banco Bradesco) com muito mais eficientes do que a “teoria” da
literatura de autoajuda. Que se resume, no comercial, a meros clichês que a
gente ouve em todo lugar como diagnósticos para qualquer coisa.
A questão é que o próprio sistema financeiro está cada vez mais se
integrando a esse novo ecossistema digital meritocrático com a oferta de
diversificação das carteiras de investimentos. O day trader cada vez mais se
assemelha a um apostador no capitalismo de cassino.
Investir nesse capitalismo global cada vez mais parece apostar. Um
jogo de azar sujeito ao imponderável: uma decisão do FED aumentar ou descer as
taxas de juros nos EUA, uma simples frase de Lula repercutida pela presunção
midiática da catástrofe etc.
Assim como o marketing das bets fala em “teste seus conhecimentos
esportivos”, os bancos falam em “consulte seu gerente de investimentos”, cada
vez parecido com um bookmaker de Las Vegas.
“Faça seu negócio prosperar” é apenas um álibi para aquilo que
realmente interessa na pós-meritocracia: esqueça o futuro e seja recompensado
aqui e agora!
Mídia quer transformar pós-meritocracia em crime comum
Após o vídeo do youtuber Felca com milhões de visualizações, denunciando
a adultização e exploração de crianças e adolescentes nas redes sociais mirou
no influenciador paraibano Hytalo Santos, acusado de utilizar menores de idade
em conteúdos de teor sexualizado.
A pedido da prisão preventiva do Ministério Público da Paraíba, além
de ser alvo de investigação do Ministério do Trabalho, Hytalo e seu marido
foram encontrados e presos em Carapicuíba/SP.
Reportagens do jornalismo corporativo sugerem que ambos estavam se
preparando para fugir do País.
Mas a casa em que foram encontrados não parece condizer com uma
dupla desesperada pela possibilidade de a qualquer momento serem emitidos mandados
de prisão. E tentando se esconder e evadir.
O local era uma residência grande, com piscina e churrasqueira e
amplo espaço de convivência e socialização. Parecia não só que pretendiam
passar algum tempo ali, como também voltar à atividade de produção de conteúdos
sexualizados.
O que revela uma faceta importante da pós-meritocracia: a
amoralidade. Se fossem simples libertinos imorais, sentir-se-iam culpados e tentariam
escapar a todo custo dos longos braços da lei.
Ao que a situação sugere, é exatamente o contrário: deveriam se
sentir como uma espécie de empreendedores digitais. Apenas produtores de
conteúdo. Mas, um conteúdo especial, que engaja e viraliza rapidamente.
Conseguindo enriquecimento rápido.
O jornalismo corporativo tenta tipificá-los como imorais comuns,
criminosos. Porém, como “empreendedores”, sentem-se para além do Bem e do Mal
ou de qualquer julgamento ético e moral.
Eles vivem o paroxismo do individualismo, numa realização nietzschiana
irônica: se autodescrevem apenas como produtores de conteúdo. De uma XP
Investimentos à produção de vídeos sexualizados nas redes sociais a lógica é a
mesma: a pós-meritocrática.
É uma geração que não crê mais em nenhum mecanismo de sublimação
pulsional ou mediação social ética ou moral. Entenderam que a meritocracia é
apenas uma ideologia, uma miragem de futuro. O que importa é a recompensa no
aqui e agora.
Aqueles mais religiosos também ouvirão isso em igrejas
neopentecostais motivacionais.
Perceberam que a promessa meritocrática do empreendedorismo “não
vira”. Ou, se preferirem, é um constante investimento em futuro que nunca
chega.
A pós-meritocracia atinge em cheio os adultos infelizes millenials
e os impacientes nativos digitais da Geração Z. E querem se atirar de cabeça
junto com esse novo salto mortal do capitalismo.