Pode ser absurdo e paradoxal pensar que todo o hype em torno do vídeo das denúncias do influencer Felca (a adultização de crianças e jovens nas redes sociais) só beneficia o negócio das big techs. O chamado “Efeito Felca” (capaz de pautar a política nacional com projetos de lei na Câmara dos Deputados e uma PL do presidente Lula) rendeu a urgência da regulamentação das redes sociais. “Regulamentação”, reivindicação reativa das nações frente ao poder global das big techs. Mas uma reivindicação compatível aos negócios do Vale do Silício, porque tira de pauta aquilo que mais temem: o impacto geopolítico da ideia da soberania digital. Como a China, por exemplo, que possui suas próprias plataformas e redes. Assim como tentar que um leão vire vegetariano, tentar regulamentar redes sociais é ir contra a própria natureza mercadológica e lucrativa do negócio: ódio e perversões engajam muito mais do que o amor! Aprenderam que na Internet o produto é o próprio usuário. Efeito Felca: um não-acontecimento com características de sincronismo e timing, além de revelar um fenômeno comportamental típico das redes sociais: o reposicionamento de discurso, como nos casos de Felipe Neto e Reinaldo Azevedo.
EXTRA! EXTRA! PAREM AS MÁQUINAS! as redes sociais estão
sexualizando crianças e promovendo a adultização da infância! Com a ajuda dos
algoritmos das Big Techs! O youtuber Felipe Bressanim Pereira, o “Felca”,
denuncia um segredo de Polichinelo e alcança 30 milhões de views... e deu até no
Jornal Nacional!
Se a pauta política nacional estava ocupada pela crise diplomática
e econômica do tarifaço de Trump e o motim dos deputados da base bolsonarista
da Câmara que bloquearam o trabalho da Casa tomando a mesa diretora do
presidente Hugo Motta, a pauta teve que ceder lugar ao vídeo (elevado à
categoria de “documentário” pela grande mídia) das denúncias do influencer
Felca. Que viralizou, alcançando 33 milhões de visualizações.
Que, em questão de horas, deu uma espécie de cavalo de pau na
agenda política nacional. Nada menos que 32 projetos de lei surgiram na Câmara
dos Deputados após a denúncia do youtuber. Variando entre a proibição da
monetização de conteúdos produzidos por crianças nas redes e até tipificar como
crime o processo de "adultização" citado por Felca.
Enquanto o presidente Lula anuncia envio imediato de projeto de
lei para regulamentar big techs. Apoiada pela primeira-dama Janja que defende “ação
urgente para proteger menores” e elogia a mobilização causada pelo youtuber.
Querendo demonstrar desprendimento financeiro e que a única coisa
que o move é a indignação com a exploração e assédio das crianças brasileiras
nas redes, Felca apressa-se a dizer que o vídeo não foi monetizado. Mas o
estoico denunciante ganhou, da noite para o dia, mais de 11 milhões de
seguidores. O que não é nada desprezível em termos de rendimentos futuros
dentro do negócio de ser influencer na Internet.
Para prosseguir esse debate, temos que estar atentos a três
pontos:
a) Antes de mais nada, o vídeo do influencer abriu uma excelente
oportunidade para ir além do conceito-fetiche de “regulamentação” como a
solução mágica para todos os vícios das redes. Ir além seria elevar o debate à questão
da soberania digital – já que a palavra “soberania” está tão a moda. Soberania
no sentido de construir uma rede realmente de natureza pública, sem estar
submetida aos interesses privados do lucro. Em última instância, a raiz de
todos os problemas: no século XXI as big techs descobriram que os vícios privados
(ódio, perversões etc.) engajam, viralizam e, portanto, geram mais lucro. O
ódio engaja muito mais do que o amor – voltaremos a esse tema à frente.
b) Conceitualmente, o vídeo de Felca expandiu a discussão com o
conceito de “adultificação”, que vai além da “sexualização”. Adultificação: exposição
precoce de crianças a comportamentos, responsabilidades e expectativas típicas
de adultos, antes que elas tenham a maturidade emocional, física e psicológica
para lidar com tais situações. A sexualização é apenas uma das consequências do
processo de adultificação.
Por exemplo, o vídeo do influencer abre com o fenômeno dos coachs-mirins
que ensinam como enriquecer rapidamente desprezando a educação formal (a escola
formaria apenas perdedores ou empregados com CLT que se espremem em ônibus
lotados), iniciando jovens incautos às promessas pós-meritocráticas neoliberais:
games, mercado financeiro, criptomoedas, bets etc.
c) Um segredo de Polichinelo. Por que de repente uma denúncia, que
até as pedras do cais do porto de Santos sabiam, ganhou essa repercussão toda?
O que nos leva a suspeita de que estamos diante de um não-acontecimento –
um acontecimento com sincronismo e timing.
Um não-acontecimento
Isso porque é um não-acontecimento com inegável conveniência
diversionista: deu uma guinada 180 graus numa semana politicamente complicada
com o bloqueio da pauta da base bolsonarista no Congresso e o início do
tarifaço de Trump: dois eventos creditados na conta do bolsonarismo, conspirando
contra o país nos EUA e travando pautas necessárias à Nação com um verdadeiro motim
no Congresso. E o que é pior: ver o presidente da Câmara Hugo Motta sendo
acusado de prevaricação (virar “Hugo Mole”). Sabendo-se que Motta é um ativo
importante para a grande mídia em 2026.
Além disso, é sincrônico que a repercussão do vídeo de Felca
aconteça na semana em que Lula concedeu entrevista exclusiva ao jornalista
Reinaldo Azevedo – ao lado do influencer Felipe Neto, um representante de um
fenômeno comportamental das redes sociais pós-jornalismo de guerra da época do
Mensalão e Lava Jato: o reposicionamento de discurso como estratégia de sobrevivência
nas redes, marcadas pelas tendências com datas de validade cada vez mais
apertadas.
Dos tempos de inimigo visceral do “lulo-petismo” e criador da
expressão “petralha”, Reinaldo Azevedo hoje se posiciona como “tio rei defensor
da democracia”.
Com Felca ocorre o mesmo fenômeno: surgido do universo dos vídeos
sobre games e NPC, reacts, humor satírico autodepreciativo de tendências na
Internet e tretas com outros influencers, certamente o jovem influenciador
digital pressentiu que estava num ecossistema volátil com prazos de validade
apertadíssimos.
E se reposicionou buscando mais seriedade: primeiro, criticou
influenciadores de sites de apostas. E agora, como os algoritmos das redes
estão promovendo a adultização em crianças.
Como certa vez disse Felipe Neto no talk show The Noite, em 2016, quando o apresentador Danilo Gentille perguntou se o Felipe Neto do futuro não recriminaria o que Felipe Neto estava fazendo naquele momento. “qualquer coisa eu falo que eu era um babaca. O negócio é viver o presente...” – clique aqui.
Jornalismo corporativo confunde adultificação com sexualização
É sintomático como a grande mídia cobriu o (não?) acontecimento:
em primeiro lugar, parecia cobrir mais o fenômeno em si (a rapidez da viralização
e engajamentos nas redes e o chamado “Efeito Felca” no Congresso e na política.
Muitas vezes, parecia que a notícia não era a denúncia, mas o “Efeito
Felca”.
Quando a cobertura do jornalismo corporativo tratou do conteúdo da
denúncia, os conceitos de “adultificação” e “sexualização” se converteram em sinônimos.
Preferiu repercutir os aspectos mais sensacionais (meninas em trajes menores, menores
assediados sexualmente por adultos etc. que eram designados como “adultificação”)
do que a, digamos assim, adultificação neoliberal: o fenômeno dos coachs-mirins
estimulando a panaceia pós-meritocrática.
Quando sabemos, esse “adultificação neoliberal” leva à ostentação
e à sexualização – dinheiro e sexo são as duas faces da mesma moeda da
indústria pornográfica.
Muitas vezes parece que a cobertura jornalística está mais
fascinada pelo fenômeno viral do Efeito Felca do que preocupada pelo conteúdo
da denúncia.
Pode parecer paradoxal, mas o “Efeito Felca”, apesar de tudo, só
beneficia as próprias big techs, aquelas que lucram com a adultificação. Por
dois motivos:
a) a onipresença das redes sociais que substituiu o tempo
presencial pelo tempo real on line, contamina o tempo da política: a
viralização de um tema é repercutida pela grande mídia (mais fascinada pelo
efeito viral do que pelo conteúdo) que acaba pautando os atores políticos. Que
tentam surfar na onda, propondo a solução mais simples, reflexa, para um
problema complexo: a “regulamentação” que se torna a reivindicação fetiche, o
equivalente geral para qualquer tema – da corrupção em setores do mercado
financeiro à lucrativa sexualização de crianças nas redes.
b) a extrema direita completa o ardil opondo-se a qualquer projeto
de regulamentação das redes, ameaçando obstruir qualquer votação alegando ser
tudo um movimento de “censura” à internet. O que faz aumentar a gana da
esquerda em defender as tais “regulamentações”.
“Regulamentação”, a palavra mágica
“Regulamentação” é a palavra mágica, a formação reativa judicializada
das nações frente ao poder global das big techs.
Por que beneficia as big techs? Por que tira do debate o tema da soberania
digital: a nação desenvolver sua própria tecnologia digital, exercendo
autodeterminação, poder e controle sobre ativos digitais como dados softwares,
hardwares, infraestruturas de armazenamento e processamento e redes de
telecomunicações.
Até chegar à criação das suas próprias redes sociais (seguindo o
exemplo, por exemplo, da China), substituindo as plataformas das big techs que,
sabidamente, são armas de guerra híbrida para desestabilização de governos –
tal como no Brasil (impeachment de Dilma) ou na Venezuela, tentando empoderar a
oposição golpista ao regime de Nicolas Maduro.
Além do fato de que as big techs descobriram, após o fracasso da
Internet 1.0 no final do século passado (a utopia da world wide web se
tornar uma biblioteca digital universal e a base para uma inteligência
coletiva), que a riqueza da Internet não era exatamente vender a informação
como produto. Mas descobrir que o usuário era o próprio produto - seus hábitos,
atitudes, disposições etc.
Com isso descobriram também que os instintos mais baixos da
natureza humana (ódio, perversões, vício, compulsividade etc.) eram mais lucrativos
por engajarem, viralizarem, mobilizarem pessoas virtualmente. Muito mais do que
o amor, solidariedade, temas de efetiva relevância pública etc.
Sob o imperativo mercadológico do lucro das big techs, as redes
sociais se tornam intrinsecamente entrópicas, avessas a qualquer tipo de construção
de uma “inteligência coletiva”.
Para esse humilde blogueiro, falar em “regulamentação” para big
techs é a mesma coisa que tentar convencer um leão a adotar uma dieta
vegetariana.
Mas, pelo menos, os debates sobre “regulamentação” (que surgem em
ondas, a cada denúncia impactante como o “Efeito Felca”) servem como estratégia
de prestidigitação para entreter o distinto público. E evitar que o
verdadeiramente incômodo tema da soberania digital entre no debate público.