quinta-feira, agosto 14, 2025

'Efeito Felca': não-acontecimento, reposicionamento de discurso e big techs

 


Pode ser absurdo e paradoxal pensar que todo o hype em torno do vídeo das denúncias do influencer Felca (a adultização de crianças e jovens nas redes sociais) só beneficia o negócio das big techs. O chamado “Efeito Felca” (capaz de pautar a política nacional com projetos de lei na Câmara dos Deputados e uma PL do presidente Lula) rendeu a urgência da regulamentação das redes sociais. “Regulamentação”, reivindicação reativa das nações frente ao poder global das big techs. Mas uma reivindicação compatível aos negócios do Vale do Silício, porque tira de pauta aquilo que mais temem: o impacto geopolítico da ideia da soberania digital. Como a China, por exemplo, que possui suas próprias plataformas e redes. Assim como tentar que um leão vire vegetariano, tentar regulamentar redes sociais é ir contra a própria natureza mercadológica e lucrativa do negócio: ódio e perversões engajam muito mais do que o amor! Aprenderam que na Internet o produto é o próprio usuário. Efeito Felca: um não-acontecimento com características de sincronismo e timing, além de revelar um fenômeno comportamental típico das redes sociais: o reposicionamento de discurso, como nos casos de Felipe Neto e Reinaldo Azevedo.

  

EXTRA! EXTRA! PAREM AS MÁQUINAS! as redes sociais estão sexualizando crianças e promovendo a adultização da infância! Com a ajuda dos algoritmos das Big Techs! O youtuber Felipe Bressanim Pereira, o “Felca”, denuncia um segredo de Polichinelo e alcança 30 milhões de views... e deu até no Jornal Nacional!

Se a pauta política nacional estava ocupada pela crise diplomática e econômica do tarifaço de Trump e o motim dos deputados da base bolsonarista da Câmara que bloquearam o trabalho da Casa tomando a mesa diretora do presidente Hugo Motta, a pauta teve que ceder lugar ao vídeo (elevado à categoria de “documentário” pela grande mídia) das denúncias do influencer Felca. Que viralizou, alcançando 33 milhões de visualizações.

Que, em questão de horas, deu uma espécie de cavalo de pau na agenda política nacional. Nada menos que 32 projetos de lei surgiram na Câmara dos Deputados após a denúncia do youtuber. Variando entre a proibição da monetização de conteúdos produzidos por crianças nas redes e até tipificar como crime o processo de "adultização" citado por Felca.

Enquanto o presidente Lula anuncia envio imediato de projeto de lei para regulamentar big techs. Apoiada pela primeira-dama Janja que defende “ação urgente para proteger menores” e elogia a mobilização causada pelo youtuber.

Querendo demonstrar desprendimento financeiro e que a única coisa que o move é a indignação com a exploração e assédio das crianças brasileiras nas redes, Felca apressa-se a dizer que o vídeo não foi monetizado. Mas o estoico denunciante ganhou, da noite para o dia, mais de 11 milhões de seguidores. O que não é nada desprezível em termos de rendimentos futuros dentro do negócio de ser influencer na Internet.

Para prosseguir esse debate, temos que estar atentos a três pontos:

a) Antes de mais nada, o vídeo do influencer abriu uma excelente oportunidade para ir além do conceito-fetiche de “regulamentação” como a solução mágica para todos os vícios das redes. Ir além seria elevar o debate à questão da soberania digital – já que a palavra “soberania” está tão a moda. Soberania no sentido de construir uma rede realmente de natureza pública, sem estar submetida aos interesses privados do lucro. Em última instância, a raiz de todos os problemas: no século XXI as big techs descobriram que os vícios privados (ódio, perversões etc.) engajam, viralizam e, portanto, geram mais lucro. O ódio engaja muito mais do que o amor – voltaremos a esse tema à frente.



b) Conceitualmente, o vídeo de Felca expandiu a discussão com o conceito de “adultificação”, que vai além da “sexualização”. Adultificação: exposição precoce de crianças a comportamentos, responsabilidades e expectativas típicas de adultos, antes que elas tenham a maturidade emocional, física e psicológica para lidar com tais situações. A sexualização é apenas uma das consequências do processo de adultificação.

Por exemplo, o vídeo do influencer abre com o fenômeno dos coachs-mirins que ensinam como enriquecer rapidamente desprezando a educação formal (a escola formaria apenas perdedores ou empregados com CLT que se espremem em ônibus lotados), iniciando jovens incautos às promessas pós-meritocráticas neoliberais: games, mercado financeiro, criptomoedas, bets etc.

c) Um segredo de Polichinelo. Por que de repente uma denúncia, que até as pedras do cais do porto de Santos sabiam, ganhou essa repercussão toda? O que nos leva a suspeita de que estamos diante de um não-acontecimento – um acontecimento com sincronismo e timing.

Um não-acontecimento

Isso porque é um não-acontecimento com inegável conveniência diversionista: deu uma guinada 180 graus numa semana politicamente complicada com o bloqueio da pauta da base bolsonarista no Congresso e o início do tarifaço de Trump: dois eventos creditados na conta do bolsonarismo, conspirando contra o país nos EUA e travando pautas necessárias à Nação com um verdadeiro motim no Congresso. E o que é pior: ver o presidente da Câmara Hugo Motta sendo acusado de prevaricação (virar “Hugo Mole”). Sabendo-se que Motta é um ativo importante para a grande mídia em 2026.

Além disso, é sincrônico que a repercussão do vídeo de Felca aconteça na semana em que Lula concedeu entrevista exclusiva ao jornalista Reinaldo Azevedo – ao lado do influencer Felipe Neto, um representante de um fenômeno comportamental das redes sociais pós-jornalismo de guerra da época do Mensalão e Lava Jato: o reposicionamento de discurso como estratégia de sobrevivência nas redes, marcadas pelas tendências com datas de validade cada vez mais apertadas.



Dos tempos de inimigo visceral do “lulo-petismo” e criador da expressão “petralha”, Reinaldo Azevedo hoje se posiciona como “tio rei defensor da democracia”.

Com Felca ocorre o mesmo fenômeno: surgido do universo dos vídeos sobre games e NPC, reacts, humor satírico autodepreciativo de tendências na Internet e tretas com outros influencers, certamente o jovem influenciador digital pressentiu que estava num ecossistema volátil com prazos de validade apertadíssimos.

E se reposicionou buscando mais seriedade: primeiro, criticou influenciadores de sites de apostas. E agora, como os algoritmos das redes estão promovendo a adultização em crianças.

Como certa vez disse Felipe Neto no talk show The Noite, em 2016, quando o apresentador Danilo Gentille perguntou se o Felipe Neto do futuro não recriminaria o que Felipe Neto estava fazendo naquele momento. “qualquer coisa eu falo que eu era um babaca. O negócio é viver o presente...” – clique aqui. 

Jornalismo corporativo confunde adultificação com sexualização  

É sintomático como a grande mídia cobriu o (não?) acontecimento: em primeiro lugar, parecia cobrir mais o fenômeno em si (a rapidez da viralização e engajamentos nas redes e o chamado “Efeito Felca” no Congresso e na política.

Muitas vezes, parecia que a notícia não era a denúncia, mas o “Efeito Felca”.

Quando a cobertura do jornalismo corporativo tratou do conteúdo da denúncia, os conceitos de “adultificação” e “sexualização” se converteram em sinônimos. Preferiu repercutir os aspectos mais sensacionais (meninas em trajes menores, menores assediados sexualmente por adultos etc. que eram designados como “adultificação”) do que a, digamos assim, adultificação neoliberal: o fenômeno dos coachs-mirins estimulando a panaceia pós-meritocrática.

Quando sabemos, esse “adultificação neoliberal” leva à ostentação e à sexualização – dinheiro e sexo são as duas faces da mesma moeda da indústria pornográfica.



Muitas vezes parece que a cobertura jornalística está mais fascinada pelo fenômeno viral do Efeito Felca do que preocupada pelo conteúdo da denúncia.

Pode parecer paradoxal, mas o “Efeito Felca”, apesar de tudo, só beneficia as próprias big techs, aquelas que lucram com a adultificação. Por dois motivos:

a) a onipresença das redes sociais que substituiu o tempo presencial pelo tempo real on line, contamina o tempo da política: a viralização de um tema é repercutida pela grande mídia (mais fascinada pelo efeito viral do que pelo conteúdo) que acaba pautando os atores políticos. Que tentam surfar na onda, propondo a solução mais simples, reflexa, para um problema complexo: a “regulamentação” que se torna a reivindicação fetiche, o equivalente geral para qualquer tema – da corrupção em setores do mercado financeiro à lucrativa sexualização de crianças nas redes.

b) a extrema direita completa o ardil opondo-se a qualquer projeto de regulamentação das redes, ameaçando obstruir qualquer votação alegando ser tudo um movimento de “censura” à internet. O que faz aumentar a gana da esquerda em defender as tais “regulamentações”.

“Regulamentação”, a palavra mágica

“Regulamentação” é a palavra mágica, a formação reativa judicializada das nações frente ao poder global das big techs.

Por que beneficia as big techs? Por que tira do debate o tema da soberania digital: a nação desenvolver sua própria tecnologia digital, exercendo autodeterminação, poder e controle sobre ativos digitais como dados softwares, hardwares, infraestruturas de armazenamento e processamento e redes de telecomunicações.



Até chegar à criação das suas próprias redes sociais (seguindo o exemplo, por exemplo, da China), substituindo as plataformas das big techs que, sabidamente, são armas de guerra híbrida para desestabilização de governos – tal como no Brasil (impeachment de Dilma) ou na Venezuela, tentando empoderar a oposição golpista ao regime de Nicolas Maduro.

Além do fato de que as big techs descobriram, após o fracasso da Internet 1.0 no final do século passado (a utopia da world wide web se tornar uma biblioteca digital universal e a base para uma inteligência coletiva), que a riqueza da Internet não era exatamente vender a informação como produto. Mas descobrir que o usuário era o próprio produto - seus hábitos, atitudes, disposições etc.

Com isso descobriram também que os instintos mais baixos da natureza humana (ódio, perversões, vício, compulsividade etc.) eram mais lucrativos por engajarem, viralizarem, mobilizarem pessoas virtualmente. Muito mais do que o amor, solidariedade, temas de efetiva relevância pública etc.

Sob o imperativo mercadológico do lucro das big techs, as redes sociais se tornam intrinsecamente entrópicas, avessas a qualquer tipo de construção de uma “inteligência coletiva”.

Para esse humilde blogueiro, falar em “regulamentação” para big techs é a mesma coisa que tentar convencer um leão a adotar uma dieta vegetariana.

Mas, pelo menos, os debates sobre “regulamentação” (que surgem em ondas, a cada denúncia impactante como o “Efeito Felca”) servem como estratégia de prestidigitação para entreter o distinto público. E evitar que o verdadeiramente incômodo tema da soberania digital entre no debate público.

 

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